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Para uma compreensão multifactorial do abuso sexual em díades (4ª Parte)

1998
acampospt@yahoo.ca
Finalista da licenciatura de Psicologia da Universidade do Porto.

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Para uma compreensão multifactorial do abuso sexual em díades (4ª Parte) A

Índice

Introdução

Conhecimento da realidade do abuso e agressão sexuais

Definições e concepções do abuso sexual

Factores associados à presença do abuso sexual
 

1ª Parte
   1. Variações das percepções de abuso sexual e consequente comportamento abusivo
        As diferenças nas percepções do abuso sexual
        A Teoria da Socialização do Papel Sexual
        A Hipótese da Atribuição Defensiva
        A "má comunicação" entre os sexos
        Outras variáveis que afectam as percepções de abuso sexual
 
2ª Parte
   2. Diferenças e semelhanças entre os sexos
        As diferenças de género na sexualidade: algumas teorias distintas
        Os papéis de género e as atitudes
        A Teoria do Estatuto Sexual e a “Cultura de Violação"
3ª Parte
        A “Token Resistance”
        Expressividade e Instrumentalidade
        Abuso psicológico e abuso físico
        As agressões directa e indirecta
 
 4ª Parte
   3. Estilos de vinculação e a agressão e abuso nas relações

   4. Poder, domínio e conflito nas relações
 

5ª Parte
Instrumentos utilizados na investigação neste domínio

Reflexões finais

Bibliografia

6ª Parte

 

A “Token Resistance”

Outra perspectiva que pretende explicar o “abuso sexual” prende-se com o conceito de “Token Resistance” ou seja, a crença de que as mulheres dizem “não” ao sexo mesmo quando querem dizer “sim” e que os seus protestos não são para serem levados a sério.10

Esta crença está fortemente baseada no já referido guião sexual tradicional segundo o qual o papel das mulheres é o de mostrarem resistência ao sexo enquanto que o papel dos homens é o de persistirem nos seus avanços sexuais apesar da resistência feminina (Check e Malamuth, 1983; cit. in Muehlenhard e Hollabaugh, 1988). Ainda neste âmbito, a investigação apoia a ideia de que muitos homens não acreditam quando as mulheres dizem “não” ao sexo (Muehlenhard & Felts, 1987; ibid.). Shotland e Goodstein (1983; ibid.) observaram que mesmo quando uma mulher começa os seus protestos já na fase dos preliminares e o homem usa força física para obter sexo, as avaliações acerca de quanto a mulher desejava ter relações sexuais foram superiores a zero.

Foi possível definir, no estudo de Muehlenhard e Hollabaugh (1988), 26 razões ou motivos para as mulheres dizerem “não” quando, na realidade, queriam dizer11 “sim” (ver anexo 4). Estes motivos (e afinal a “token resistance”) prendem-se com o sentir-se desconfortável em reconhecer um interesse em sexo.

As razões definidas agruparam em três grandes categorias: motivos práticos, motivos relacionados com a inibição, e motivos relativos a manipulação.

Os motivos práticos assentaram, basicamente, na preocupação das mulheres com o não querer aparentar estar a violar as normas tradicionais. Para Schur (1983; ibid.) as mulheres que desenvolvem “token resistance” por estes motivos estão a responder a pressões reais tais como o já referido double-standard. Schur refere, por exemplo, que “é considerado socialmente desejável que uma mulher pareça ´sexy´ mas, contudo, ela irá defrontar estigmas se os seus esforços para projectar a sua imagem forem como excessivamente ´extremos´”; ainda, as mulheres que aparentam estar demasiadamente ansiosas por sexo são etiquetadas de “fáceis” ou “promíscuas”. Tanto o comportamento dos homens como o das mulheres é influenciado por consequências antecipadas (Eisler et al., 1978; Fiedler e Beach, 1978; ibid.). Logo, se as mulheres antecipam serem criticadas por tomarem a iniciativa ou parecem ansiosas por sexo, a “token resistance” poderá ser um comportamento racional neste contexto cultural. Se parecer que uma mulher não queria sexo mas foi convencida nesse sentido ou mesmo forçada a tal, poderá parecer-lhe mais aceitável envolver-se em sexo fora do conjunto restrito de guiões sexuais aprovados para as mulheres.

Os motivos relacionados com inibição têm por base o desconforto feminino com o/acerca do sexo. Encontram-se aqui preocupações emocionais, religiosas ou morais, medo do desconforto físico, e vergonha relativamente ao seu próprio corpo. Estes motivos correlacionaram-se positivamente com a já referida erotofobia, o que é concordante com as observações de Fisher et al. (1983; ibid.) acerca da maior tendência dos indivíduos erotofóbicos para referirem a moral, o conhecimento daquilo que está ´errado´, e o treino religioso como motivos que o impediam de expressar livremente a sua sexualidade.

Por último, os motivos relativos à manipulação, nomeadamente o ´jogo´, a raiva e vingança relativamente ao parceiro, e o desejo ´ter o controlo´. Ao contrário das razões anteriores, estas correlacionaram-se positivamente com a também referida erotofilia, e com a crença de que as mulheres gostam quando os homens usam a força durante o sexo (Muehlenhard e Hollabaugh, 1988).

Segundo Shotland e Hunter (1995) a maioria das mulheres que indicam serem “tokem resistors” não o fazem no sentido de manipular ou enganar. Contudo, e segundo estes autores, parece haver uma correlação positiva entre as mulheres que já estiveram envolvidas em relacionamentos sexuais activos e o uso da “token resistance” por motivos de manipulação. Nestes casos, a “token resistance” parece ser usada como uma ferramenta num conflito mais ou menos prolongado e/ou para activar sexualmente os parceiros.

No entanto coloca-se aqui uma questão: se a “token resistance” não é usada, de uma forma geral, com intentos de manipulação, resultando antes da mudança de intenções, porque é que as mulheres indicam comportar-se de uma forma “token resistant”? Com base nos já mencionados papéis tradicionais masculino (iniciador) e feminino (restrictor/protector) tudo nos leva a concluir que esta estratégia é usada para diminuir a persistência do parceiro masculino, onde o “não” é necessário (a não ser que a mulher tenha a certeza de que pretende um encontro sexual) já que a incerteza é um convite ao aumento da pressão sexual do parceiro (Shotland e Hunter, 1995).

Embora a ´token resistance´ possa ser uma resposta racional ao referido double-standard, ela não deixa de ter as suas consequências negativas, as quais legitimam o desenvolvimento deste conceito no presente trabalho.

Uma dessas consequências consiste no insucesso e afastamento nas relações onde os homens acreditam nas recusas femininas. Isto também acaba por perpetuar os papéis de género restritivos das mulheres e coloca o fardo de ser-se o agressor nos homens. Outra consequência poderá ser o provável encorajamento que é feito aos homens no sentido destes ignorarem as recusas femininas. Se um homem encontra uma mulher que diz ´não´ e ignora os seus protestos, além de considerar que aquela está verdadeiramente disposta a envolver-se em sexo, a sua crença de que as recusas femininas não são para serem levadas a sério será fortalecida (Muehlenhard e Hollabaugh, 1988).

Todos estes comportamentos resultam de um ´campo de batalha´ desequilibrado no qual é esperado que os homens iniciem a actividade sexual e que as mulheres actuem como “guardiãs” (Shotland e Hunter, 1995). A não ser que ambos homens e mulheres se sintam confortáveis em iniciar e recusar o sexo e sejam encorajados a serem mais comunicativos acerca das várias questões sexuais, este ´campo de batalha´ continuará perigoso para as mulheres (ibid.) e, de certa forma, frustrante e injusto para os homens. Neste sentido, uma última mas óbvia consequência será a deficiente comunicação no casal (explícito vs implícito), o que em nada contribui para a sua funcionalidade.

Estas consequências acabam por nos fazer esperar a continuação da já tão referida realidade de abuso sexual, o que tem particular interesse para as reflexões apresentadas neste trabalho. Aliás, parece existir uma relativa relação entre a “token resistance” e a violação: Os homens que acreditam que as mulheres são provocantes acerca do sexo tenderão a apresentar “crenças sexuais adversas” e também tenderão a fazer um erro que conduzirá à agressão sexual (ver Muehlenhard e Linton, 1987; Shotland, 1989, 1992; cit. in Shotland e Hunter, 1995). Neste sentido, e em tais circunstâncias, serão as mulheres resistentes (alternativamente às mulheres “token resistant”) as que tenderão a ser violadas embora o uso da “token resistante” por motivos de manipulação possa ser também um factor a ter em conta.

 

Expressividade e Instrumentalidade

A expressividade e a instrumentalidade12 são dois conceitos frequentemente associados aos sexos feminino e masculino. Além disso, é-nos fácil (pelo menos empiricamente) compreender que seja a instrumentalidade aquela que está mais ligada às situações de abuso sexual, por oposição à expressividade. Tal é observado por alguns dos traços da instrumentalidade presentes na escala: a personalidade forte, a força física, a agressividade, entre outras. Neste sentido, faz todo o sentido discutir estes conceitos no presente trabalho.

Segundo os guiões tradicionais definidos culturalmente, é esperado que os homens sejam instrumentais e assertivos enquanto que as mulheres sejam expressivas e carinhosas. De facto, os comportamentos instrumentais são frequentemente designados “masculinos“ enquanto os comportamentos expressivos de “femininos“, o que acaba por ser apoiado no próprio estudo de Lawrence et al. (1996) já que em todas as situações experimentais os atributos masculinos se mostraram mais instrumentais que os femininos, enquanto que as mulheres se mostraram sexualmente mais expressivas que os homens.

Outro ponto importante aqui realçado e sobre o qual urge reflectir prende-se com um resultado lógico destas afirmações: se os comportamentos instrumentais são frequentemente designados “masculinos“, então o “masculino” está mais ligado à agressividade e ao abuso (pelo menos ao nível das percepções e estereótipos, já que a literatura não parece defender esta relação na prática).

A instrumentalidade e a expressividade são vistas como conceptualmente independentes (Bem, 1974; cit. in Lawrence et al., 1996), pelo que todos os indivíduos (e os andrógenos em particular), poderão apresentar traços/comportamentos instrumentais e expressivos de acordo com as exigências percebidas da situação. Ainda, as expectativas para atributos e comportamentos apropriados para mulheres e homens diferem de situação para situação (Orlofsky, 1981; cit. in Lawrence et al., 1996).

Podem-se apresentar duas perspectivas que tentam explicar quanto o comportamento em situações sexuais obedece às prescrições de papel de género tradicionais:

Por um lado, alguns autores discutem que as expectativas comportamentais na situação sexual estão muito provavelmente ligadas a expectativas de papel de género mais gerais (Gagnon, 1990; cit. in Lawrence et al., 1996). Segundo o guião sexual tradicional, os homens são socializados para assumirem um papel activo, direccionado para o sexo, e instrumental nas situações sexuais, enquanto que as mulheres são socializadas para assumirem um papel passivo, sexualmente ingénuo, direccionado para o amor e expressivo (Byers, 1996; ibid.). Apesar dos argumentos dados de que as expectativas para homens e mulheres diminuíram em contextos sexuais, os homens continuam a mostrar-se mais mais activos do que as mulheres na iniciação das actividades sexuais (O´Sullivan & Byers, 1990; ibid.) e na perseguição dos seus desejos sexuais (Clark & Hatfield, 1989; ibid.).

Em contraste com esta perspectiva outros autores afirmam que as expectativas mudaram no sentido de se esperar que as mulheres, tal como os homens, sejam altamente sexuais e assumam um papel activo nas actividades sexuais (Macklin, 1983; cit. in Lawrence et al., 1996). Além disso, é também esperado que homens e mulheres sejam ternos, carinhosos e preocupados com o prazer do parceiro (McCabe, 1987; cit. in Lawrence et al., 1996). De facto, parece existir uma variedade de comportamentos sexuais que são percebidos como igualmente aceitáveis para homens e mulheres (Sprecher, 1989; cit. in Lawrence et al., 1996).

Os homens e as mulheres têm diferentes percepções dos atributos ideais de personalidade para homens e mulheres (Hatfield et al., 1988; cit. in Lawrence et al., 1996). De uma forma geral, os homens desejam que as mulheres actuem de forma mais consistente com o guião masculino, e as mulheres desejam que os homens actuem de forma mais consistente com o guião feminino. Por exemplo, os homens indicaram que desejavam que as suas parceiras fossem mais assertivas acerca dos seus desejos sexuais e assumissem um papel mais activo na iniciação e experimentação sexual (Hatfield et al., 1988; ibid.), enquanto que as mulheres queriam que os homens fossem mais ternos e emocionalmente íntimos quando estavam a fazer amor.

Com base nestes autores e nos resultados de Lawrence et al. (1996) pode-se afirmar que, em comparação com as descrições dos homens, as mulheres descrevem os homens como idealmente mais expressivos e menos instrumentais numa situação sexual, ao passo que, em comparação com as descrições femininas, os homens descrevem as mulheres como idealmente mais instrumentais e menos expressivas.

Por outro lado também se verificam diferenças entre os graus de expressividade e instrumentalidade reais e desejados em ambos jovens masculinos e femininas (ibid.).

Em apoio à perspectiva de que os traços expressivos tais como o carinho, a afeição e a consideração são valorizados pelos homens bem como pelas mulheres na situação sexual (McCabe, 1987; cit. in Lawrence et al., 1996), os homens relataram no estudo de Lawrence et al. (1996) serem mais expressivos na situação sexual do que o são globalmente. Ainda, os homens descreveram os atributos sexuais ideais para um homem como ainda mais expressivos do que o seu próprio papel sexual de género. No que diz respeito à instrumentalidade os homens descreveram os atributos ideais para um homem numa situação sexual como mais instrumentais do que o seu próprio papel de género naquela situação, mas como menos instrumentais do que os seus atributos globais. Assim, enquanto que os homens poderão não ser tão instrumentais quanto idealmente gostariam de ser em situações sexuais, as suas descrições dos atributos masculinos ideais em situações sexuais são, não obstante, menos instrumentais do que as suas descrições dos seus próprios atributos globais. No geral, estes resultados sugerem que os homens se comportam menos de forma típica do seu género em situações sexuais do que globalmente, e fazem-no porque acreditam que este tipo de comportamento representa o ideal para os homens.

No que diz respeito às jovens, estas (tal como as mulheres casadas no estudo de Rosenzweig & Daley, 1991; cit. in Lawrence et al., 1996) descreveram-se a si próprias como altamente expressivas tanto globalmente como nas situações sexuais. Contudo, à semelhança dos sujeitos masculinos deste estudo, as jovens descreveram os atributos ideais para a mulher numa situação sexual como mais expressivos do que os seus próprios atributos, tanto globalmente como na situação sexual. Em termos de atributos instrumentais, as mulheres relataram que, nas situações sexuais, deveriam idealmente ser mais instrumentais do que elas próprias eram. Estas jovens poderão não se comportar mais instrumentalmente porque receiam que o seu parceiro sexual responda de forma mais negativa a esse comportamento não tradicional. As universitárias do estudo de Lewin (1985; cit. in Lawrence et al., 1996) acreditavam que recusar envolver-se em actividades sexuais iniciadas pelo seu parceiro iriam despoletar aborrecimento da parte deste, enquanto que concordar com actividade sexual não desejada iria resultar em menos consequências negativas no geral. Outra explicação foi adiantada por O´Sullivan & Byers (1992; cit. in Lawrence et al., 1996) no seu estudo de “abordagens” sexuais. Estes autores observaram que as universitárias iniciavam a actividade sexual com menor frequência do que os colegas do sexo oposto e que ambos homens e mulheres relatavam menos prazer nas actividades sexuais que resultavam das abordagens promovidas pelas mulheres.

No global ambas as respostas de homens e mulheres indicam que o seu próprio comportamento em situações sexuais não corresponde aos seus ideais, tanto no que diz respeito aos comportamentos que são tradicionalmente descritos como dentro dos papéis de género (instrumentalidade para os homens, expressividade para as mulheres) como no que concerne aos comportamentos não tradicionais dentro dos papéis de género (expressividade para os homens, instrumentalidade para as mulheres). Para Lawrence et al. (1996), estas discrepâncias poderão ser um reflexo da nossa sociedade (sociedade Norte-Americana) sexualmente negativa, onde os/as jovens não sentem liberdade para exprimir-se a si próprios e os seus desejos de uma forma plena nas situações sexuais; poderão, ainda, ser um resultado de um guião sexual que limita a comunicação acerca das preferências sexuais.

Em qualquer caso, os resultados sugerem que os atributos que homens e mulheres exibem em situações sexuais tenderão a mudar à medida que os indivíduos lutem para alcançar os seus ideais e tenderão a mudar no sentido da convergência entre os papéis dos jovens masculinos e femininos nas situações sexuais (Lawrence et al., 1996). Contudo, observa-se uma maior tendência para existir maior convergência na expressividade do que na instrumentalidade, uma vez que tanto os homens como as mulheres avaliaram o homem ideal como igualmente expressivo em situações sexuais quanto a mulher ideal.

Contudo, de forma consistente com o guião sexual tradicional (Byers, 1996; cit. in Lawrence et al., 1996), homens e mulheres avaliaram o homem ideal como mais instrumental do que a mulher ideal. Apesar do facto das mulheres pensarem que, idealmente, estas deveriam ser mais instrumentais nas situações sexuais do que são na realidade, elas consideram que os homens deveriam ser ainda mais instrumentais. Logo, os homens tenderão a manter-se o parceiro mais activo e com mais iniciativa dentro dos encontros sexuais heterossexuais, pelo menos entre os jovens casais.

 

Abuso psicológico e abuso físico

Visando uma compreensão mais enriquecida das estratégias abusivas potencialmente utilizadas em díades com abuso sexual percepcionado, resta falar do abuso psicológico (tal como o abuso físico) como uma componente daquele conceito. Aliás, isto faz sentido se, por um lado, virmos o abuso sexual também como abuso físico e, por outro, ser um facto que o abuso psicológico é uma parte do abuso físico (Walker, 1984; cit. in Pipes e LeBov-Keeler, 1997). É frequente que as pessoas relatem o abuso psicológico mais por este estar associado ao abuso físico, e não por o sentirem como abuso psicológico independente do abuso físico.

Enquadrado ou não no abuso sexual, o abuso psicológico inclui elementos de aprendizagem social e cognição social, concretamente a ênfase do contexto social e história social (aprendizagem social), e percepções dos outros no ambiente social (cognição social). Estes elementos também efectuam uma ligação à perspectiva feminista através da já referida teoria da socialização do papel de género (Pratto, Stallworth, Sidanius, & Siers, 1997; cit. in Pipes e LeBov-Keeler, 1997).

Hoffman (1984; cit. in Pipes e LeBov-Keeler, 1997) é um dos poucos autores que ofereceram definições de abuso psicológico: “é o comportamento suficientemente ameaçador para a mulher de forma que esta acredita que a sua capacidade para trabalhar, para interagir na família ou na sociedade, e para gozar de boa saúde física e mental foi e/ou poderá ser ameaçada” e “ser-se abusado psicologicamente significa que o namorado/marido usa repetidamente uma ou mais de várias tácticas verbais e/ou não verbais (anexo 3) tendo como resultado a mulher sentir-se frequentemente magoada, ou receosa, ou sentir-se mal acerca de si própria, após o uso destas tácticas”.

Estas definições sugerem implicitamente que pode ser delineada uma distinção entre comportamento ocasional ofensivo, cujo o impacto é desagradável mas efémero, vs abuso psicológico, que tem efeitos debilitantes contínuos no parceiro. O que parece faltar na definição de Hoffman é “uma componente que se refira à experiência subjectiva do sentir-se “magoado” ou a experiência de perda de auto-estima – processos que são uma parte das implicações clínicas de se ser tratado mal numa relação interpessoal, o que aplica particularmente às mulheres que foram frequentemente socializadas para assumirem responsabilidades pelas falhas interpessoais.

É nítido que falar-se de “abuso psicológico” é bastante diferente de falar-se de “abuso sexual”. A definição apresentada envia-nos para toda uma situação onde é posto em causa o equilíbrio psicosocial da “mulher” em virtude de uma realidade de abuso constante. Se pensar-mos em situações de abuso sexual esporádicas ou isoladas não podemos falar nesta realidade (apesar destas situações constituírem uma forma de abuso psicológico); mas se nos centrar-mos em casos de abuso sexual prolongado em díades/casais esta definição de abuso psicológico poderá fazer algum sentido.

Não deixa de ser curioso o facto da definição de Hoffman se referir apenas à “mulher” enquanto vítima do abuso psicológico. Isto terá a ver, concerteza, com a predominância de relatos femininos (também mas não só devido à dificuldade masculina em relatarem ou admitirem a situação de abuso, ou mesmo devido à sua incapacidade em tomarem consciência do abuso) destas situações, relatos esses que tenderão, provavelmente, a esconder formas de abuso a homens não reconhecidos como tal pela população em geral. Curiosa é, também, a constante e forte associação destas teorias à perspectiva feminista, a qual poderá talvez explicar a esmagadora maioria de investigações dedicadas ao abuso diversificado a mulheres, empobrecendo desta forma o conceito de abuso sexual, já que este acaba por ser operacionalizado e estudado com base em critérios associados ao abuso (predominantemente físico e psicológico) a mulheres e não é alargado a outras formas de abuso sexual. Este é um dos objectivos do presente trabalho.

A ligação entre abuso sexual e abuso psicológico faz mais sentido ainda se considerarmos alguns dos comportamentos que foram descritos como abusivos, nomeadamente, e entre outros, a comunicação verbal hostil, pouco ou nenhuma ternura, o desrespeito e desconsideração pelos desejos ou sentimentos do outro, o isolamento social, e humilhação social (Hoffman, 1984; cit. in Pipes e LeBov-Keeler, 1997). A agressão verbal foi descrita como “a técnica coerciva mais poderosa experienciada numa relação abusiva” (Walker, 1984; cit. in Pipes e LeBov-Keeler, 1997).

Ao considerar-se o contributo que as já referidas variáveis de cognição social dão para os actos psicologicamente abusivos para com as mulheres levanta-se um factor que poderá contribuir para algumas mulheres se manterem nestas relações. Está-se a falar da presença de uma crença de que a maior parte das mulheres têm que resistir ao abuso psicológico (Pipes e LeBov-Keeler, 1997). Além disso, os indivíduos abusados psicologicamente mantêm-se em relacionamentos destrutivos por longos períodos de tempo em parte devido à sua pobre auto-imagem e/ou a uma imagem que é parcialmente dependente do ficar com o seu parceiro (Walker, 1984; cit. in Pipes e LeBov-Keeler, 1997).

Ainda, e com base nos resultados do estudo de Pipes e LeBov-Keeler (1997), é interessante observar que, apesar da maioria das mulheres considerarem que o abuso psicológico está muito disseminado, a maior parte não se vê como já tendo sida abusada alguma vez. Uma possível explicação poderá residir num mecanismo de double-standard (ibid.), segundo o qual talvez elas vejam aquilo que lhes parece como abuso psicológico noutras relações como inexistente na sua própria relação (negação).

 

As agressões directa e indirecta

Se limitarmos a agressão apenas a estratégias físicas, é certamente verdade que os homens são mais agressivos que as mulheres, pelo menos nas sociedades ocidentais. Mas, tal como estudos antropológicos como os de Fry (1990, 1992; cit. in Björkqvist, 1994) e Cook (1992; ibid.) mostraram, isto não é uma verdade universal ou seja, trata-se de algo que não é sustentado para todas as culturas. Ainda, e se virmos esta realidade à luz do conceito de agressão directa, onde estão incluídas as formas de agressão física e agressão verbal, a referida supremacia masculina na agressividade será menos notória.

Para Björkqvist (1994) não existe nenhum motivo para acreditar que as mulheres deverão ser menos hostis e menos susceptíveis para se envolverem em situações de agressão do que os homens. Mas sendo fisicamente mais fracas elas tiveram simplesmente que desenvolver outras formas além das físicas, de forma a alcançarem resultados de sucesso. De acordo com isto, não seria de esperar que as mulheres desenvolvessem e usassem as mesmas estratégias para atingir os seus objectivos que os homens usam. Se as estratégias para o abuso, agressão e resolução de conflito são aprendidas, e não inatas, então as mulheres aprenderão mais provavelmente diferentes métodos do que os homens. Aspectos importantes são o poder e a capacidade, não apenas física, mas também verbal, e social (ibid.). O Homem dispõe de veículos de poder que estão bastante além dos de qualquer outro animal, o que tem implicações para as formas de expressão da agressão.

Os estilos agressivos são também sujeitos de mudança desenvolvimental durante o percurso de vida. Tal como na agressão animal, também em crianças, sem competências verbais, a agressão é predominantemente física. As competências verbais, quando desenvolvidas, são rapidamente utilizadas não só para comunicação de pacificação mas também para objectivos agressivos. Quando as competências sociais se desenvolvem tornam-se possíveis estratégias de agressão ainda mais sofisticadas, onde o agressor consegue causar mal ou dano a uma pessoa-alvo mesmo sem ser identificado. Essas estratégias podem ser referidas como agressão indirecta (Björkqvist, Lagerspetz, e Kaukiainen, 1992; cit. in Björkqvist, 1994).

Burbank (1987; ibid.) reviu a investigação antropológica acerca da agressão feminina e observou que mulheres de diferentes culturas apresentavam uma grande variedade de estratégias agressivas destinadas a serem usadas junto dos seus maridos (tais como, por exemplo, fechá-los fora de casa durante a noite). Burbank descobriu que as mulheres raramente recorriam à agressão física com os seus maridos.

A título ilustrativo seria interessante referir o caso das estratégias agressivas femininas na pacífica ilha de Bellona, uma cultura caracterizada por dominância masculina extrema e violência física Kuschel (1992; ibid.). Enquanto que as mulheres usavam a agressão física com elementos do mesmo sexo, não o podiam fazer com homens. Assim, se queriam agredir e exercer poder sobre os maridos tinham que recorrer a estratégias alternativas, nomeadamente inventar uma canção de troça, a qual era espalhada por toda a ilha, sendo o marido humilhado. Uma canção de troça é um tipo de agressão indirecta na qual o agressor tenta magoar o objecto sem se pôr a si próprio em perigo físico e imediato.

Convém referir que estas situações de agressão, como é óbvio, não são equivalentes às situações de abuso sexual.

O conceito de agressão indirecta pode, no entanto, ser também aplicado a situações de carácter sexual homem-mulher, nomeadamente situações em que a mulher não coopera com o acto sexual ou o recusa. Segundo Fossey (1983; cit. in Björkqvist, 1994), e Holmström (1992; ibid.), já os gorilas e macacos fêmeas utilizam a recusa de cooperação ao acesso sexual como uma forma de agressão indirecta para com o macho (i.e. foram observadas estratégias indirectas nos gorilas).

Conclui-se, no estudo de Björkqvist, que a quantidade e qualidade das estratégias de agressão indirecta pelas mulheres depende das situações, das características do momento, das características dos elementos participantes, mas também do contexto cultural em que estão inseridos, das influências sociais, e das oportunidades / dificuldades com que a mulher se debate nesse contexto cultural.

A referência às conclusões de Björkqvist (1994) e outros autores citados no seu estudo visa enfatizar a minha perspectiva de que o abuso sexual poderá também ter diferentes expressões, mais explícitas ou mais implícitas, mais directas ou mais indirectas, mais físicas, verbais, sociais, relacionais ou psicológicas. Além disso, serve também para contribuir para a desmistificação da (quase) esclusividade do abuso/agressão masculinos, veiculados por diversos estudos.

 

Notas

  1. O conceito de "token resistance" está intimamente ligado ao fenómeno observado nos trabalhos de Scully & Morolla (1984; cit. in Semonsky e Rosenfeld, 1994) e ao qual estes autores se referiram como "o mito da violação" isto é, "o mito usado frequentemente por violadores para justificarem as suas acções" (o "não" que significa "sim"). No entanto, Semonsky e Rosenfeld fazem uma abordagem bastante menos exaustiva do que aquela de Muehlenhard e Hollabaugh (1988).
  2. Convém salientar que a expressão “queriam dizer” deve ser interpretada enquanto significado do “não” (dizer “não” quando o que se pretende é “sim”), em vez de ser vista numa perspectiva da eventual limitação da liberdade da mulher para dizer “sim” exercida pelo homem.
  3. Para melhor compreender os traços comportamentais associados aos dois conceitos de instrumentalidade e expressividade p.f. consultar o item deste trabalho dedicado à recolha de alguns dos instrumentos utilizados na investigação neste domínio.