PUB


 

 

Morreu o homem dos seis dedos

2019
simaopedromata@gmail.com
Licenciado e Mestre em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP). Membro efectivo da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP). Psicólogo na Norte Vida - Associação para a Promoção da Saúde e Investigador externo do Centro de Ciências do Comportamento Desviante (CCCD) da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. Os seus interesses de investigação são o fenómeno droga, a exclusão social, a marginalidade urbana e a intervenção psicológica nos comportamentos adictivos. É ainda membro do Serviço de Consulta Psicológica nos Comportamentos Adictivos (SCPCA) da FPCEUP e estudante de Doutoramento do Programa Doutoral em Psicologia na mesma Instituição.

A- A A+
Morreu o homem dos seis dedos

Partiu o homem que tinha seis dedos numa das mãos. Há quem diga que a morte é coisa para os fracos, que os génios nunca morrem, apenas desaparecem, que se incorporam numa outra dimensão cósmica. Foi certamente o que aconteceu ao homem dos seis dedos.

Deambulava há muito tempo pelas ruas da Maia, procurando consolo e amparo nos cafés e nos lares que frequentava amiúde. Pedia, mesmo falando pouco, sobretudo, carinho, amor e atenção. Raramente era escutado. Era sempre e eternamente o “bêbado da Maia”, o incompreendido, a presença constante e estranha ao mesmo tempo. Quando o FC Maia Lidador jogava em casa, lá estava o homem dos seis dedos a assistir à segunda parte, condição para se furtar ao pagamento do bilhete do jogo. Gostava de futebol. Nunca o disse, falava pouco. O ir aos jogos era mais um pretexto que encontrava para estar com gente, para ver pessoas unidas em torno de alguma coisa, deixando-lhe a esperança, quase sempre vã e inconsequente, de que pudesse, também ele, fazer parte dessa comunhão domingueira em torno do futebol cá da terra se o deixassem. Tenho a certeza, a minha que é que para aqui importa, de que era isso que lhe habitava o coração.

O homem dos seis dedos podia ter sido muita coisa na vida mas para mim foi sempre padeiro. A sua limitação física, traduzida no facto de ter seis dedos numa das mãos – o sexto vinha de um dos polegares – tornava este homem único no que fazia. Corria um boato, não sei se verdade se mito, de que alguns pães que fazia tinham a marca de seis dedos na carcaça, espécie de assinatura do homem perante a sua obra de arte. Porque todas as imperfeições contêm, em si mesmo, marcas de génio em potência. Acontece que só poucos é que conseguem vislumbrar nas suas limitações a possibilidade plena da arte. Este homem, simples e humilde, padeiro de profissão, que deambulava pelas ruas da Maia pedindo carinho e atenção, descobriu a sua - era ali entre os fornos, as massas, a farinha e as batas brancas que ele transformava aquilo que o inferiorizava em obras de criação pura e divina. Só por isto, por esta arte, este homem não morreu, jamais morreria.

Depois veio o álcool para fazer companhia à solidão. Eram várias as vezes que o homem dos seis dedos aparecia no chão das ruas, inconsciente. Nessas alturas chamávamos ajuda médica. Só admitia tal ajuda pois o seu estado de inconsciência levava a que não percebesse o que lhe estava a acontecer. Sempre que se encontrava sóbrio, coisa rara nos últimos tempos, e lhe acenávamos com a palavra “médico” ou “psicólogo” para endireitar a vida, lá vinha a sua ira toda ao de cima:

- “Não quero, foda-se!!” – respondia prontamente.

E que ninguém lhe voltasse a falar nisso novamente, assunto encerrado. Acho que o homem dos seis dedos encontrava ali no álcool a companhia e o aconchego interior que o Mundo, com a sua insuportável aspereza, não lhe proporcionava. E, por muito que isso custasse a entender, tirar-lhe o vinho, que o matava aos poucos, era como fuzila-lo no imediato. O homem dos seis dedos não queria morrer, queria apenas e só ir morrendo.

Não foi, por isso, estranho para mim quando soube da sua morte. Apareceu morto. Nada mais será relevante além disso. Apareceu morto. A sua morte traduz aquilo que foi durante a vida: alguém que viveu sempre paredes-meias com a solidão e com a incompreensão dos demais. Acabou-se o homem dos seis dedos. Apareceu morto. Acabou o seu deambular pelas ruas quando estava embriagado. Apareceu morto. Acabaram-se as suas visitas ao estádio de futebol para ver o Maia jogar. Apareceu morto. Acabou-se tudo. Ah, e acabaram-se também os pães com a marca dos seis dedos na carcaça: qualquer semelhança com isso é pura coincidência. Apareceu morto, isso basta. O Padre Américo dizia num dos seus brilhantes textos, carregados de reflexões humanísticas e fraternas, que mesmo pobre um homem não deixa de ser homem. E este, sozinho, alcoólico, abandonado e triste, verdadeiro Caravaggio das padarias nacionais e internacionais, Miguel Ângelo de seis dedos numa das mãos, esse, meus caros, era um dos grandes. Até sempre companheiro.

 

Simão Mata

Simão Mata é psicólogo, especialista em psicologia clínica e da saúde e membro efetivo da Ordem dos Psicólogos Portugueses. A sua prática profissional é realizada na Norte Vida – Associação para a Promoção da Saúde, uma IPSS que se foca na intervenção psicossocial com sujeitos em situação de vulnerabilidade social. Exerce atividade clínica em contexto hospitalar no Hospital Senhor do Bonfim (Grupo Trofa Saúde), integrando uma equipa multidisciplinar de Saúde Mental. Colabora ainda como psicólogo clínico no Gabinete Relaction – Psicologia, Terapia Familiar e de Casal.

É ainda investigador externo no Centro de Ciências do Comportamento Desviante (CCCD) da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto tendo-se dedicado, nos últimos anos, ao estudo do fenómeno droga, da exclusão social, da marginalidade urbana e da intervenção psicológica nos comportamentos adictivos.

mais artigos de Simão Mata