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O papel do professor no desenvolvimento de alunos psicologicamente livres!

2017
lmaia@ubi.pt
Licenciado em Psicologia Clínica e da Saúde pela Universidade do Minho. Mestre em Neurociências pela Faculdade de Medicina de Lisboa. Doutorado em Neuropsicologia pela Universidade de Salamanca. Especialista em Neuropsicologia e Psicobiologia pela Universidade de Salamanca. Pós-Doutorado em Ciências Médico-Legais pelo Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar. Docente universitário no Departamento de Psicologia e Educação da Universidade da Beira Interior. Neuropsicólogo e psicólogo clínico (prática privada). Editor associado da "Revista Psicologia e Educação" (UBI). Editor da “Iberian Journal of Clinical & Forensic Neuroscience” (Portugal). Editor da RUMUS "Revista Científica da Universidade do Mindelo" (Cabo Verde)

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O papel do professor no desenvolvimento de alunos psicologicamente livres!

Desta vez, queria deixar aqui uma ode à democracia – um tributo à professora que mudou a minha vida… e continua a mudar, ainda, em Portugal.

Gostaria de iniciar este memorando recordando algo que me marcou profundamente enquanto criança e aluno de uma escola pública no Rio de Janeiro (Brasil), na pobreza de um regime militarista ditatorial. Como rapazito que era, devia estar a cursar aquilo que aqui em Portugal seria equivalente ao 9º ano de escolaridade. Era um jovem reguila como qualquer rapaz da minha idade. Mas já naquela altura algo me dizia que o conhecimento, aquilo que aqui passarei a chamar Educação Formal, seria fundamental para me ajudar a sair da pobreza financeira, social e democrática em que nos encontrávamos (embora naquela altura a perceção que tinha que a democracia não estava muito bem implementada no Brasil não se baseasse naquilo que hoje sei, mas sim porque estranhava como percebia que havia um “ambiente” de corrupção livre, de violência gratuita e sem castigo, de brutalidade policial impune, de negociatas à luz do dia, muitas delas presenciadas por mim, desde os meus seis anos de idade, quando o meu pai e a minha família foram para o Brasil e começámos todos a trabalhar, por turnos, no Botequim (café-mercearia) dos meus pais.

Nessa altura cursava eu então o antigo Colégio Estadual Barão do Rio Branco, em Santa Cruz, Rio de Janeiro. Lá íamos nós com o uniforme azul e branco e com o Brazão do estado colado ao peito, como sinal de pertencermos à pequena grande elite (pobre) de alunos do estado. Os professores faziam o melhor possível, mas os recursos eram escassos.

O motivo pelo qual estou a contar-vos isto, é que foi no meio desta envolvência que, no início daquele longínquo ano letivo, conheci uma mulher que iria mudar a minha vida!

Não é nada do que possam estar a pensar (seus marotos, eu era apenas um pré-adolescente!).

A Mulher a que me refiro era esta grande senhora, professora de História, que a maioria dos meus colegas detestava. Quando digo detestava, sustento tal afirmação porque a turma onde eu estava inserido era uma turma com alguns elementos mais perturbadores. Só que a Professora sabia como lidar com a turma.

"D.ª Olga", era assim que eu e alguns colegas a chamávamos. Os outros atribuíam-lhe todas as alcunhas mais depreciativas que se possa imaginar. Já bastante idosa, obesa, com dificuldade de se locomover (esta é a imagem que mantenho dela), era, contudo, de uma rispidez e militarismo assustadores. Mantinha a turma controlada à custa de sabermos que, naquela altura, naquele regime, ser repreendido e ser encaminhado ao gabinete do diretor da escola, não era apenas para ouvir algumas palavrinhas dóceis acerca da educação. As sanções eram pesadas e as suspensões e expulsões, bem como a proibição de poder frequentar qualquer escola pública, eram frequentes.

Mas porque é que esta professora mudou a minha vida? Porque, passadas as primeiras semanas em que a turma tardou a aceitar que tinha mesmo que respeitar a professora, com medo das consequências, e passou então a ter um comportamento completamente amorfo (a turma), em que todos estávamos sentados nos nossos lugares, só respondíamos ao que nos era perguntado, e se queríamos intervir, tínhamos que pedir licença primeiro, poderíamos perguntar: o que tinha acontecido com a turma? Estava completamente dominada!

Foi então que um dia a professora nos surpreendeu. Em vez de a aula ser realizada na sala de aula normal onde frequentemente tínhamos aulas, a professora conduziu-nos a todos para o velhíssimo pavilhão de expressão artística da escola (onde se davam aulas de aprendizagem de canto, instrumentos, projeção de filmes, etc.).

Lá nos sentámos nos velhíssimos bancos de madeira carcomida e, numa tela muito velha que a professora, a muito custo, conseguiu montar no palco, sem pedir ajuda a nenhum aluno, e sem que nenhum aluno fizesse qualquer comentário ou quebrasse o silêncio instalado, iniciou a projeção de um filme que ela havia montado, naquelas antigas máquinas de projeção com rolos de filme.

Julgo que nenhum de nós estava preparado para o que íamos ver. Lembro-me, a custo, de ser projetado na tela um conjunto de notícias e excertos de filme a nível nacional e internacional: o visionamento dos meninos de rua massacrados, como os da Candelária – Rio de Janeiro, por uma Esquadrão da Morte constituído por Policiais Militares, as gravações de uma equipa de reportagem que acompanhava uma força de elite a invadir os pontos de tráfico de droga com o visionamento de pessoas assassinadas a sangue frio, as condições deploráveis do Rio de Janeiro da década de 80 do século passado, com lixo, podridão, abutres a comer carcaças de animais em plena via pública, a pobreza, a servidão humana!

Visionámos ainda exemplos típicos de ditaduras, não apenas no continente americano, mas também pelo mundo afora. Mortes, execuções, escravatura, subserviência, violações, pobreza extrema, crianças em fase esquelética em agonia pré-morte e muito, muito mais.

Quando a projeção parou, o silêncio confundia-se com alguns soluços de choros contidos.

A D.ª Olga, a minha D.ª Olga, dirigiu-se para nós e, pela primeira vez naquelas semanas todas, a sua voz dela era calma, serena. Eu diria mesmo maternal (essa é a memória que me está gravada para sempre).

Disse-nos qualquer coisa do género (não consigo reproduzir as palavras exatas tantas décadas depois, mas consigo com certeza reproduzir a ideia geral):

“Meus senhores, quando começámos o ano letivo estavam todos em pé de igualdade. Eu podia respeitar-vos e vocês podiam respeitar-me. Mas lembram-se do que aconteceu? A maioria de vós não soube lidar com essa liberdade, e procuraram enxovalhar-me e faltaram-me ao respeito. Aí eu decidi utilizar a linguagem que vocês mais conhecem: a do exercício puro e duro de vos obrigar a me respeitarem. Mais, retirei-vos qualquer forma de iniciativa. Neste exato momento cada um de vós não é diferente de todas as pessoas brutalizadas que vimos no filme. Eu mando, vocês obedecem!

Se vocês quiserem podemos continuar assim. Eu controlo a turma e apenas dou a matéria que quiser. Passo quem eu quiser e reprovo quem eu quiser, e vocês não podem fazer nada. Sabem porquê? Porque fui obrigada a criar uma pequena ditadura na nossa classe, na vossa turma. Vocês só conhecem a linguagem do poder autoritário. No fundo, vocês não me respeitam. Apenas não expressam aquilo que vocês quereriam fazer e dizer com medo das consequências.

Isto é o que estamos a viver no Brasil neste momento. Um período em que vocês, a maioria, não se importam em aprender, em obter conhecimento, em estudar. Percebo que alguns pensem 'para quê estudar se daqui a algum tempo eu vou estar no Morro traficando droga e a polícia vai subir por ali acima mandando tiro para todo o lado? Para quê estudar se eu não vou arrumar emprego e vou ter que virar bandido? Para quê estudar se isso não me vai ajudar a ganhar dinheiro?'

Pois eu vos digo que é justamente isso que a maioria dos governos tiranos quer: que vocês não estudem! Sabem porquê? Porque a melhor forma de um governo controlar os seus cidadãos é mantê-los na ignorância, na pobreza intelectual, na burrice. Quanto mais ignorante for um povo, mais escravizado é.

Vejam vocês: eu transformei a nossa turma numa tirania. Mas o que vocês têm aprendido? Quem tem estudado? Quem tem procurado aprender alguma coisa?

Eu não quero ser mais ditadora nesta turma, mas serei, se for obrigada a isso.

Agora vocês vão embora para suas casas, e vão pensar o que vocês querem: fazer parte da miséria de ignorantes que são torturados e explorados por esse mundo fora, ou vão querer se instruir?

A decisão é vossa. Isso é democracia, o Poder do Povo, Pelo Povo e Para o Povo.

Vamos ver quantos dos senhores serão nobres o suficiente para viver com a sua própria liberdade e sair da ignorância que os tiranos desejam!”

In, Luis Maia (2012), E Tudo começa no berço.

Dedico esta crónica à falecida “D.ª Olga”, que me ensinou a não ser subserviente, a lutar para me instruir e, por isso, ser LIVRE, mesmo que poucos me entendam. Mas sou LIVRE E FELIZ; e, se Deus quiser, a minha filha ainda será mais do que eu: LIVRE E FELIZ!!!!!

Luis Maia

Luis Alberto Coelho Rebelo Maia é Licenciado em Psicologia Clínica e da Saúde pela Universidade do Minho, Mestre em Neurociências pela Faculdade de Medicina de Lisboa, Doutorado em Neuropsicologia pela Universidade de Salamanca, Especialista em Neuropsicologia e Psicobiologia pela Universidade de Salamanca e Pós-Doutorado em Ciências Médico-Legais pelo Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar.
É docente universitário na Universidade da Beira Interior, no Departamento de Psicologia e Educação, onde lecciona nas áreas das neurociências, metodologias de avaliação e intervenção psicológica e psicologia do desporto.
É também terapeuta com consultório próprio na Cidade da Covilhã, onde exerce a sua função de neuropsicólogo e psicólogo clínico, abrangendo diversas áreas da avaliação e intervenção psicológica. Está registado na Ordem dos Psicólogos Portugueses, com Título de Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde e Especialista em Neuropsicologia.
Autor de mais de duas dezenas de livros, conta com alguns best sellers, nomeadamente as obras “Educar Sem Bater”, “E tudo Começa no Berço”, “A psicologia do verbo amar e o erradicar da negligência”, “Violência Doméstica e Crimes Sexuais”, e ainda “Avaliação e Reabilitação Neuropsicológica”.
É ainda autor de centenas de artigos científicos publicados nacional e internacionalmente, tendo sido galardoado com cerca de uma dezena de prémios de mérito nacionais e internacionais pelos seus trabalhos e desempenho no campo da psicologia.

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