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Pé na lua

2020
pvpassos@gmail.com
Psicólogo clínico - Braga, Portugal

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Pé na lua

Era uma vez uma galeria de arte.

Essa galeria tinha uma dona e localizava-se numa cidade (de turismo específico), em zona cara e com prosperidade garantida.

O retrato da dona espelhava-se na pretensiosidade e presunção da galeria.

Aludindo aos intentos de ampliação de fama pela parte da galerista proprietária (dona Belinda - de baptismo - impondo ser tratada e conhecida, nas intimidades sociais e familiares, por Bé), designa-se a senhora (irredutivelmente) em projectar um artista local (um tal de Martim Ronaldo, sobrinho materno, acabado de se diplomar em moda, mas com muito jeito para a pintura, desde pequeno, a quem chamam de Aldinho ou Dinho, consoante as circunstâncias e os laços das relações).

Lançamento divulgado por vários órgãos de comunicação social (locais e até mais amplos); outdoors pela cidade; redes sociais e… inevitável, um aparatoso vernissage com convite a toda a nata local (lamentando-se, contudo, a escassa presença desses ilustres… uns com aviso prévio, outros - a maioria - nem por isso).

Ao farto buffet, faltaram (para desolação da aspiração social da galerista e do jovem sobrinho debutante nos meandros artísticos) os famosos alvos mostruários dentais, pelo que, em remédio, entram os figurantes penetras mais aperaltadinhos, em conveniência de uns e de outros, enchendo e compondo a galeria.

Vernissage terminado.

Nenhuma venda ou reserva incerta e “sem compromisso” (para aparentar), nem comentário escrito (que valha a pena) no, ainda intacto (para além das salientes homenagens e exaltações de qualidade inigualável, segundo o escrito em opinião familiar, de amigos e induzidos) livro de honra do artista.

Despedidas rápidas.

Povo na rua e porta fechada.

Pela madrugada seguinte, num alvoroço de bairro (de porte novo-riquenho), aparece a galerista na janela e em trajes de sono, na ânsia de se inteirar do motivo de tal confusão e gritaria.

“A galeria da dona Bé foi assaltada, há pouco tempo”, grita uma vizinha, que soube por um dos presentes (que ainda vem a ser primo) no badalado vernissage.

A galerista e o sobrinho (a quem telefonou, peremptoriamente, na aflição da segurança das obras de arte expostas) aceleram a fundo e vai que, entre tangentes, toquezinhos e toquezões (usuais… com ou sem pressa…!) noutros veículos e demais, superam-se em tempo de chegada à galeria.

Bé, aproveita o facto e só pensa em tentar salvar a honra do vernissage (já com ensaios de história a deturpar), telefonando (sem noção da hora de madrugada) a amigos tidos como influentes e demais números constantes na sua agenda telefónica.

Ninguém atendeu.

Procura vestígios do roubo e repara então na falta do computador; de um pequeno rádio (que jazia na gaveta da secretária); do maço de cigarros já encetado e de um corta-papéis a imitar prata.

Repara também que a (quase) totalidade dos bolinhos, pastelinhos, canapés, tostas e patés tinham sumido (exceptuando-se os já esborrachados e colados pelo chão).

As uvas também foram.

Apercebe-se, ainda, que os caixotes de vinho (comprados numa promoção) tinham deslizado todos.

Quanto às paredes...! Homessa…! Imaculadamente intocadas.

 

(Incautas vulgaridades…!

 - Incautas… ainda que advenham de irredutíveis paranoias; obnubiladas consciências; bizarras interpretações; recorrentes actos falhados e cegueiras.

- Vulgaridades… por habituais sonegações e negligências; lapsos e descuidos; glorificações dos desméritos e ordinárias cegueiras intencionais.)

 

Aldinho, trémulo na sua fragilidade, na sua humilhação e no seu desespero, esganiça-se insultando o mundo por falta de sensibilidade artística, ancorando-se (qual dengosa e carente odalisca) em Bé (evitando, esta, o chilique do sobrinho).

Belinda vai-se adiantando numa versão da ocorrência a jeito pessoal e jornalístico, em protecção de uma honra (só perceptível a Belinda, a Martim Ronaldo e às demais trupes em similitudes) sobre a famigerada e exigente galeria (da Bé).

Crenças.

What`s wrong?