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Um piquenique diferente dos outros

2018
simaopedromata@gmail.com
Licenciado e Mestre em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP). Membro efectivo da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP). Psicólogo na Norte Vida - Associação para a Promoção da Saúde e Investigador externo do Centro de Ciências do Comportamento Desviante (CCCD) da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. Os seus interesses de investigação são o fenómeno droga, a exclusão social, a marginalidade urbana e a intervenção psicológica nos comportamentos adictivos. É ainda membro do Serviço de Consulta Psicológica nos Comportamentos Adictivos (SCPCA) da FPCEUP e estudante de Doutoramento do Programa Doutoral em Psicologia na mesma Instituição.

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Um piquenique diferente dos outros

Na deslocação diária para o meu trabalho desloco-me com alguma frequência para a zona do Hospital de São João no Porto. Por estes dias, a camioneta que me levou até à zona deixou-me na paragem onde se situa o Instituto Português de Oncologia (IPO). Era hora de almoço. Saio na paragem, mesmo em frente ao instituto e eis que vejo, no parque de estacionamento interior do IPO, no local onde existem umas mesas e uns bancos de pedra, um conjunto de três pessoas que merendavam sandes, batatas fritas e sumos. Não falavam nem se olhavam. Aquelas três faces estavam duras como pedras, tal como os bancos e a mesa onde estavam a comer. O que comiam servia apenas para empurrar a angústia que se gerava no peito e subia até à zona da garganta. E o sumo que bebiam de vez em quando contribuía também para dissolver esse nó que ia crescendo com o passar dos minutos e das horas.

Perante tal cenário, parei um pouco para observar. Sei que esta atitude pode ser interpretada como uma ousadia da minha parte e um desrespeito para com os familiares e os doentes oncológicos que ali estão internados. Se assim fui interpretado, peço desde já as minhas sinceras desculpas. Mas o meu coração sangrava-me e forçava-me a olhar para aquele rapaz de dezassete/dezoito anos, para a mulher de meia-idade (a sua mãe?) e para a senhora mais velha (a sua avó?) que ali estavam naquele piquenique, talvez o mais triste e diferente de todos os que já tiveram na vida. Não acho justo, simplesmente não acho justo, que a vida seja assim tão cruel, deixando-nos assim, vazios de um momento para o outro, sem que nada possamos fazer para alterar o rumo das coisas. Mas acredito que o Mundo possa ser um dia um lugar justo e - deixem-me lá ser menino, adolescente e utópico - um lugar sem doenças, sem sofrimento e sem miséria humana.

Já tinha passado a zona do IPO e encontrava-me no Metro rumo à paragem Pólo Universitário. Esse pequeno percurso foi o suficiente para organizar o que sentia cá dentro e escrever estas linhas. O meu coração, esse, ainda sangra e chora muito. E, não sei porquê, tenho vontade de gritar para que todos oiçam que aquela família não merendava nem fazia nenhum piquenique, muito menos esperava a eventual morte de alguém querido lá dentro do IPO: fazia, isso sim, um verdadeiro banquete, esses almoços e jantares dos Reis e das Rainhas que se juntavam para comer à grande e à francesa, onde abundava a comida, a bebida e, sobretudo, o regozijo. O rapaz é o Rei, vejo-lhe a coroa na cabeça e as duas mulheres as rainhas, lá estão elas a arranjar todas aperaltadas as suas coroas carregadas de diamantes. E, enquanto penso nisto, vem-me à cabeça, sem saber bem porquê, um poema de Cesário Verde que diz assim na parte final: “Naquele piquenique de burguesas/Houve uma coisa simplesmente bela/E que, sem ter história nem grandezas/Em todo o caso dava uma aguarela”. E que aguarela não davam este Rei e as duas Rainhas que eu vi há pouco no parque do IPO a almoçar e a tentar combater a tristeza que lhes corroía a alma por dentro.

Simão Mata

Simão Mata é psicólogo, especialista em psicologia clínica e da saúde e membro efetivo da Ordem dos Psicólogos Portugueses. A sua prática profissional é realizada na Norte Vida – Associação para a Promoção da Saúde, uma IPSS que se foca na intervenção psicossocial com sujeitos em situação de vulnerabilidade social. Exerce atividade clínica em contexto hospitalar no Hospital Senhor do Bonfim (Grupo Trofa Saúde), integrando uma equipa multidisciplinar de Saúde Mental. Colabora ainda como psicólogo clínico no Gabinete Relaction – Psicologia, Terapia Familiar e de Casal.

É ainda investigador externo no Centro de Ciências do Comportamento Desviante (CCCD) da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto tendo-se dedicado, nos últimos anos, ao estudo do fenómeno droga, da exclusão social, da marginalidade urbana e da intervenção psicológica nos comportamentos adictivos.

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