PUB


 

 

A pirâmide invertida: quem tem medo da psicologia nos cuidados de saúde primários?

2017
ruitinoco28@gmail.com
Psicólogo clínico

Relatório Final do Grupo de Trabalho para análise, estudo e elaboração de propostas relativamente aos modelos de organização da prestação de cuidados na área da psicologia no Serviço Nacional de Saúde: Julho de 2017 (Despacho nº 13278/2016

A- A A+
A pirâmide invertida: quem tem medo da psicologia nos cuidados de saúde primários?

Diversas áreas de intervenção nos cuidados de saúde primários apontam a necessidade da intervenção de profissionais da psicologia clínica. Para além dos programas da saúde tradicionais, isto é, inerentes ao Serviço Nacional de Saúde, como por exemplo o programa nacional da saúde escolar, da saúde mental, da saúde no idoso, da saúde infantil e juvenil, da promoção da alimentação saudável, entre outros, a psicologia é chamada cada vez mais para prestar o seu contributo noutras vertentes da intervenção.

A necessidade de profissionais de psicologia clínica estendeu-se assim, nos últimos anos, às áreas dos cuidados continuados integrados, dos menores em risco e da violência doméstica. A estratégia passa sobretudo pela transposição da arquitetura dos cuidados de saúde para a ação da psicologia. A proximidade dos cuidados psicológicos poderá dar azo a diversos ganhos em termos de saúde mental… Mas será que existe realmente essa proximidade?

O documento Relatório Final do Grupo de Trabalho para análise, estudo e elaboração de propostas relativamente aos modelos de organização da prestação de cuidados na área da psicologia analisa a intervenção da psicologia em termos do Serviço Nacional da Saúde sendo, por isso, de alguma forma pioneiro. Faz também algumas sugestões de organização apontando para a necessidade de uma organização com autonomia destes profissionais, articulando inclusive com a direção dos serviços de que fazem parte.

Para além deste e de outros temas, que não cumpre agora analisar, este trabalho faz um levantamento da distribuição dos profissionais da nossa classe tendo em conta três grandes categorias: cuidados hospitalares; cuidados de saúde primários e outros (que engloba principalmente profissionais que exercem na área dos comportamentos aditivos).

Sumariamos esse levantamento em termos gráficos:

A fonte deste gráfico é o Relatório Final do Grupo de Trabalho anteriormente citado. Identificaram-se 458 colegas nos cuidados hospitalares; 213 nos cuidados de saúde primários e 246 noutros serviços.

O que salta aqui à vista é uma inversão de prioridades. São os cuidados de saúde primários que são a base da pirâmide e que disponibilizam os tais cuidados de proximidade que têm menos psicólogos. A desproporção é abissal e de uma ordem de grandeza de mais de 100% em comparação com os cuidados hospitalares.

Assim, quando o legislador e os decisores em saúde transpõem lógicas gerais dos cuidados, deverão ter em linha de conta que essas decisões podem fazer sentido para as profissões dominantes no sistema, em termos de recursos e de profissionais alocados – profissionais da medicina e da enfermagem – mas que não correspondem de tod à realidade da psicologia nos cuidados de saúde primários.

No que concretamente diz respeito à psicologia, como podemos facilmente depreender, a proximidade espacial não se traduz por uma maior facilidade de acesso aos cuidados. Assim, após as decisões legislativas e de saúde, transpondo para os cuidados psicológicos, a lógica geral do sistema, em que a base da pirâmide são os cuidados de saúde primários, cumpre então dotar essa base de um número correspondente de profissionais.

Em termos gerais e tendo em linha de conta o número de colegas a exercer nos cuidados hospitalares, poder-se-ia estimar 150% para os cuidados de saúde primários. Assim poderíamos alcançar um total de 687 profissionais, ou seja seria necessária a contratação imediata de 229 psicólogos. Chegamos a este número, suspendendo o conhecimento que mesmo para os cuidados de saúde hospitalares o número de profissionais é insuficiente – discussão que deixamos para outro lugar e para um colega mais conhecedor da área.

Só assim poderíamos começar a falar de uma estrutura em pirâmide em que a base é responsável por cuidados de proximidade e descentrados, em vez da atual pirâmide invertida.

Não podemos continuar a tomar decisões sem profissionais no terreno, importando lógicas do sistema, apropriadas para as outras profissões e também para a psicologia clínica, se existissem profissionais no terreno.

Rui Tinoco

Psicólogo Clínico com trabalho de intervenção e investigação na área dos comportamentos aditivos - tema sobre o qual incidiu o seu doutoramento. Desde 2005 trabalha nos cuidados de saúde primários, onde desenvolve atualmente a sua atividade clínica e programas de intervenção comunitária entre os quais se encontra o PASSE.

mais artigos de Rui Tinoco