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Bárbaros, hipocritas e a intolerância aos gays

2012
valdecipsi@hotmail.com
Psicólogo. Professor Titular de Psicologia da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Doutorando em Psicologia Clínica na Universidade de Évora-PT. Especialista em Metodologia do Ensino de 3º grau. Mestre em Sociologia da Sexualidade.

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Bárbaros, hipocritas e a intolerância aos gays

“Chamamos de ´cultura` um esforço semelhante para reduzir a aleatoriedade da conduta humana, para forçar essa conduta a seguir um padrão”(Zygmunt Bauman).

O preconceito é sempre destrutivo ou, pelos menos, incômodo, constrangedor, desagradável, e todo mundo tem algum tipo de preconceito. Segundo Bobbio (2002, p.12), “não existe preconceito pior do que o de acreditar não ter preconceitos”. Assim, estranho não é o preconceito em si, mas a perseguição e o ódio ao discriminado. O que leva um cidadão a gastar suas energias para afastar a figura do homossexual do seu entorno? Por que a homossexualidade que é, assim como as demais sexualidades, um aspecto íntimo, incomoda tanto a ponto de se desconhecer no homossexual um seu semelhante com as mesmas necessidades? O que faz um suposto heterossexual se achar no direito de reprimir, perseguir e matar por causa da sexualidade diferenciada? Para Todorov (2010, p. 27 - grifo do autor), “os bárbaros são aqueles que negam a plena humanidade dos outros: em vez de significar que eles ignoram ou esquecem, realmente, a natureza humana dos outros, eles comportam-se como se os outros não fossem - ou, de qualquer modo, não inteiramente - seres humanos”.

O que o outro faz com seu pênis ou com seu traseiro, somente a ele e ao seu parceiro interessa, mesmo que anuncie isso para o mundo ou deixe implícito, ainda assim, é algo restrito ao âmbito privado. Na opinião de Seffner (2003), a sociedade representa a si própria como exclusivamente heterossexual, e reserva para essa orientação todos os privilégios. Este autor questiona se a heterossexualidade é tida como normal porque é maioria, ou, é majoritária porque é tida como normal? Um sujeito abraça, acaricia e beija uma mulher em via pública, às vezes bem próximo do obsceno, mas, como se trata de heterossexual, pode. Por que o homossexual não tem essa mesma liberdade? Em 1999, em São Paulo, devido a um simples afago no seu parceiro, o adestrador de cães Edson Neris da Silva foi espancado até a morte por um grupo de skinheads (Silva, 2010), e, ainda hoje, na Avenida Paulista (palco da maior parada gay do planeta) são frequentes as agressões aos indivíduos identificados homossexuais.             

Essa proibição egoísta, sobretudo, nas sociedades ditas democráticas, pós-modernas é, no mínimo, contraditória. Por que o beijo heterossexual é aceito, aprovado, estimulado1, enfim, livre, mas o “beijo gay” é tido como absurdo ou transgressão? Essa manifestação afetiva, certamente, é mais terrível do que o sangue que se ver quase todos os dias nas ruas e nas telinhas das televisões. Daí a polêmica sobre as novelas que se propõem mostrar o tal beijo, e acabam omitindo: é para poupar o público dessa “violência”. No horário nobre, homem de cueca, mulher pelada, e casal heterossexual bem solto na cama, é artístico, não só pode mostrar, mas também se recomenda que, no turno da tarde, Vale a Pena Ver de Novo. Em que o afeto gay pode ser devastador? Maléfica é a corrupção política, a fome, a miséria, as crianças de/nas ruas. Porém, nas sociedades racistas, a exemplo desta, o desejo pelo objeto diferente, por si só, se constitui uma indecência, assim, legitimam que envolvidos em cena homoerótica, mesmo que sutil, sejam violentamente atacados. Num contexto mais saudável, cidadãos de bem com a própria sexualidade não teriam razão para agressão gratuita, pois aceitam plenamente que “uns gostam de ostra e outros de escargot”2.  

A escola perdeu a chance do exercício da tolerância ao diferente, por conta da proibição do “Kit gay”, um despropósito, somente ofensivo para as criaturas inseguras e preconceituosas. Na realidade, os três filmes mostram de maneira decente, respeitosa, educativa, é com muita fidelidade a dificuldade da vivência afetiva/sexual do homossexual e do transexual. Porém, se consistisse numa apologia à homossexualidade, e daí? O adolescente a priori “desviado pela motivação do Kit”, caso não fosse essa a sua condição, logo descobriria a sua verdadeira identidade sexual, agora com mais segurança por conhecimento de causa. Para McDougall (1997), uma das mais graves feridas narcísicas da infância é ter que chegar a uma definição monossexual. Por que privar o adolescente dessa experiência? A apologia à heterossexualidade é imposta, confirmada e reafirmada diuturnamente, entretanto muitos jovens, desde muito cedo, não se reconhecem heterossexuais, ou seja, a identidade sexual não se forma sob pressão ou “lavagem cerebral”. Se a sexualidade fosse uma questão de escolha, até que faria sentido toda essa paranoia em torno do Kit gay, mas o desejo homossexual é norteado por aspectos biopsicossocial e cultural que o caracteriza como condição (ou orientação), e jamais como uma simples opção.

Segundo Freud (1989), o interesse sexual exclusivo que os homens têm pelas mulheres, é um problema que exige esclarecimento. A sexualidade é essencialmente de natureza plástica e bissexual, e a heterossexualidade exclusiva é, portanto, uma restrição sobre a sexualidade (Cucchiari citado por Silva, 1999). Decerto, a vulnerabilidade da construção masculina leva à repressão da homossexualidade, todo comportamento do menino, desde tenra idade, é balizado para que não se desvie da “normalidade”, não se torne gay. Assim, para não se efeminar é obrigado a vestir a couraça da dureza e da insensibilidade, incorporar atitudes rudes e agressivas que lhe moldam macho. Enfim, o padrão de masculinidade não é construído em oposição à feminilidade, mas com o intuito de impedir a homossexualidade (Gikovate, 1989).

Os termos receptor e introdutor são interpretados no sentido de “dar” e “comer”, ironicamente, “quem dá é o receptor”, enquanto “quem come é o introdutor” (Humphreys citado por Fry, 1982). A diferença entre “comer quem” e “quem foi comido” adquire uma hierarquizada de dominação do “comedor” sobre o “comido” (DaMatta, 1997, Bourdieu, 1998, Parker, 1991, citados por Silva, 2010). Porém, toda discriminação, perseguição e ódio incidem sobre o homossexual “passivo”3 que apresenta “visibilidade do estigma”, ou seja, sinais corpóreos que indicam, para o senso comum, inferioridade de caráter ou fraqueza moral (Goffman citado por Bauman, 1999). O estigma quando é conhecido ou, de imediato, reconhecido, afasta as pessoas do estigmatizado, que não mais o percebem com outros atributos, e passa a ser descreditado (Goffman citado por Seffner, 2003). Enfim, esse sujeito é eclipsado por sua homossexualidade, que o faz se identificar com o que sobra: uma figura do homem manqué4(Costa, 1992), menos viril, remetido a um patamar inferior ao feminino da mulher (Seffner, 2003).

Contudo, a condição homossexual é bem mais delicada do que sugerem os termos e as denominações. No Brasil, campeão mundial em assassinato de homossexual (Mott & Cerqueira citados por Carrara & Vianna, 2004), se assumir gay corresponde a se confessar com defeito ou com uma doença contagiosa e muito grave. Dizer: “ele é gay”, parece lhe apontar uma nódoa patológica, uma coisa carcomida, um estranho das profundezas subterrâneas. Ser gay o coloca à distância de tudo de bom que implica ser heterossexual, quando de fato o que diferencia heterossexual do homossexual sem visibilidade, é apenas seu objeto sexual. O vocábulo gay significa alegre5, surgiu em 1960, nos Estados Unidos e na Europa, para substituir a expressão médico-legal “homossexual”, que está associada à patologia e ao crime, uma posição de resistência do tipo: “alegre por ser homossexual”. Porém, “no Brasil, o termo ‘gay’ assumiu o mesmo valor pejorativo de ‘bicha’6 e ‘viado’(sic)”(Lima citado por Silva, 1999). O homossexual com visibilidade ou caricato, na verdade, faz o papel meio que de “bobo da corte”, atende a necessidade da sociedade de colocar a sexualidade em dois territórios estanques: nós, heterossexuais, “normais”, de um lado; e eles, os “anormais”, homossexuais, do outro. Isso atenua sua angústia de lidar com a incerteza e a plasticidade das múltiplas possibilidades identitárias. Assim, o homossexual discreto, sem visibilidade ou não assumido, por suscitar dúvida sobre sua conduta, provoca mais inquietações, uma vez que conviver com enigma ou indefinição exige certo grau de tolerância e maturidade.

A postura de “não querer agradar é uma das maiores formas de libertação [...]” (Pondé, 2012, p.195). Ao passo que o heterossexual é aceito, simplesmente, por ser macho, o gay tem que ser bacana com todo mundo, todavia sua vida sexual e profissional não deixa de ser um “calcanhar de Aquiles”. O homossexual com visibilidade tem que se compor de adjetivos do tipo: “ele é gay, mas é uma ótima pessoa!”, etc., para justificar sua amizade com heterossexual ou ser incluído no grupo de cidadãos “normais”. Por sua vez, o heterossexual que é amigo do gay, parece gozar de um status superior pela coragem ou pela grandiosa humanidade de acolher um exemplar socialmente tão “desqualificado”.

Sem levar em conta que a discriminação e a perseguição, em muitos aspectos, podem ser tanto quanto destrutiva como a violência frontal, direta, porém nem sempre fácil de ser provada, assim, em sociedades preconceituosas, só sendo “superior” para enfrentar o encargo moral que demanda ter amigo gay assumido ou com visibilidade. Por conseguinte ao evento da Aids, tem heterossexual que evita apertar a mão do gay ou faz com certa brevidade, bem como procura não permanecer ou dividir o mesmo espaço físico, etc. Comparado à mulher e ao negro, para o gay todo aceso aos bens sociais são mais complicados de serem obtidos, e em relação ao heterossexual é um disparate, dado que a cultura machista consiste numa rede de confraria, na qual os machos facilitam as vidas dos outros machos, uma vez que, em todos os aspectos, entre si, são mais camaradas. Os gays, os negros e as mulheres parecem um pouco desprovidos dessa generosidade.

Segundo Welzer-Lang (2004, p.118), “a homofobia é o produto, no grupo dos homens, do paradigma naturalista da superioridade masculina que deve se exprimir na virilidade”, na tentativa de que a heterossexualidade seja entendida como a prática sexual “verdadeira”, “pura”, “normal” e “natural”, logo, qualquer outra identidade sexual fora desse projeto é tida como desvio (Lopes citado por Santos Filho, 2008 - grifos do autor). O heterossexual inseguro, com seus insultos, quer fazer o homossexual se sentir culpado, inferior a ele por não gostar de “comer boceta”7.  Essa postura deixa implícito que há um esforço especial ou uma força de obrigatoriedade nesse ato sexual, a ponto desse sujeito, em razão disso se achar o máximo: super-homem ou herói. Se a conduta heterossexual não implicasse em algo excepcional, “penetrar outro homem” e “se deixar possuir”, etc., deixariam de ser atos indignos, por considerar o prazer proporcionado pelo objeto, e não o valor social atribuído ao gênero desse objeto.

O reino animal que muitos recorrem para justificar a infidelidade, também se encontra os macacos bonobos que, sem inclinação sexual exclusiva, copulam freneticamente com machos e fêmeas. Esses silvícolas seriam os “perversos” ou “depravados” da sociedade dos bichos? Em que “ser penetrado” ou “penetrar anus ou vagina” faz de um ator social melhor ou pior? A história registra gênio tanto homossexual quanto heterossexual, embora tenha mais homossexual, porque os sujeitos de inteligência muito elevada tendem a se libertar de boa parte das regras morais. Afinal, transitar - o que não significa prática sexual - na composição masculina e feminina que há em todo pessoa aguça a percepção. O heterossexual inseguro teme se colocar no lugar do outro, não consegue se imaginar fora da sua conduta sexual, em particular, quando existe atração pelo objeto que, a priori, rejeita. O senso comum acredita: primeiro, que todo homossexual apresenta estigma, ou seja, que transar com outro homem, necessariamente, fica efeminado; segundo, que um homem com parceira (namorada, esposa) e com filho/s, é incapaz de sentir desejo por outro homem e, muito menos, se permitir “passivo” na relação homoerótica e, por último, que o homossexual “passivo” é incapaz de ter ereção e de penetrar mulher, bem como de ter características típicas de macho (Silva, 1999).

Mas, os guardiões da heterossexualidade devem ficar tranquilos, embora a masculinidade seja uma construção vulnerável, por mais que o mundo se revele gay não tem como colocar a civilização em risco de extinção, porque a maioria das mulheres sonha com a maternidade; e o desejo da imortalidade, que se realiza por meio da reprodução, está em potencial em todos os homens, além do que, muitos para fugir ou para esconder sua homossexualidade, casam e reproduzem. O Núcleo de Estudos para a Prevenção da Aids, da Universidade de São Paulo, dá conta de que 71% das mulheres foram contaminadas pelos maridos, namorados ou noivos. Na verdade, a maioria é gay que apresenta “fachada”, isto é, equipamento expressivo intencional ou inconsciente empregado pelo indivíduo durante sua representação (Goffman citado por Silva, 1999). O tipo másculo, em geral, abomina efeminado, acredita que a relação com outro másculo, não afeta a sua masculinidade, isto é, por causa dessa macheza, mesmo com essa vivência homoerótica não se sente homossexual. Hoje, devido ao culto e o fácil acesso às academias, muitos utilizam o artifício do corpo esculpido para atrair parceiro, incólume da discriminação. Segundo Trevisan (2002, p.56), “no Nordeste8, onde o machismo chega a criar situações trágicas, é surpreendente o número de homens casados e com vida sexual dupla”. Alguns sujeitos, pesquisados por Seffner (2003), deixam esse desejo bem claro:

 

Para a minha mulher, a realidade é que a adoro, e aí sou hetero. Com os homens que fui, sempre servi de homo passivo, solto, entregue, obedecendo a desejos. Sei que nunca vou realizar a minha mais forte fantasia - chupar minha mulher, enquanto levo um pau no cu”(p.163);

Minha companheira não sabe [...] a minha maior fantasia é transar com um militar bem machão e bem peludo, principalmente para prática do sexo oral” (p.182);

Eu não tenho vergonha em assumir que frequentemente me imagino sendo penetrado por um baita macho. E continuo gostando da minha mulher” (p.200);

Sou casado, tenho 42 anos de idade, mas minha fantasia é fazer tudo para meu parceiro e que ele seja bem-dotado, que me faça gritar e gemer na hora que está me ‘enrabando’, enfim, quero ser uma verdadeira puta para meu macho, e muito fazê-lo gozar” (p.216).

 

Essas falas reafirmam a máxima atribuída ao imperador romano Júlio César de que “ele era o marido de todas as esposas - durante o dia -, e a mulher de todos os maridos - não somente à noite” (Polillo citado por Silva, 2010 - acréscimo e grifo nossos). Mas será que se trata realmente de sujeitos bissexuais? Ou são homossexuais que, protegidos pelo casamento heterossexual, dão expansão ao seu homoerotismo? Na realidade esses senhores, geralmente acima de qualquer suspeita, satisfazem seus desejos apoiados em inverdades em relação às esposas, à sociedade e a eles próprios que, se depreciam no prazer com outros homens, e ainda se dizem machos. Essa depreciação denota autopunição por essa prática não assumida e, também, pela não entrega total (o contato se reduz a sexo), é assim asseguram seu vínculo heterossexual. Por fim, demarcam um papel feminino de submissão e masoquismo, que funciona muito bem como fetiche para expiar a culpa, mas, talvez, intolerável como parte de uma relação duradoura. No contexto da moral rígida que crucifica homossexuais visíveis ou assumidos, esses vieses são forjados para viabilizar a sexualidade “desviante” dos inseridos na normalização (casados, pais de famílias) que sustentam a hipócrita da sociedade.

Por certo, consiste numa ilusão a visão maniqueísta da sexualidade, ninguém é, em termos de sexualidade 100% homossexual ou heterossexual, mas é somente o sujeito quem sabe qual tendência ou desejo que em si pulsa mais forte. Para Wittig (citada por Butler, 2003), o verdadeiro humanismo da pessoa livre dos grilhões do sexo somente será inaugurado com a derrubada da heterossexualidade compulsória. Instigar a repressão sexual é, sem dúvida, oportunizar a doença, pois um sujeito recalcado não está bem consigo, nem com o entorno nem com Deus. Em razão disso é que religiosos são manchetes no mundo inteiro, tendo entre as taras mais frequentes a pedofilia homossexual. Nos Estados Unidos, cerca de 5% de todos os padres abusam de meninos (Muraro & Duarte, 2006).

A Igreja aceita o sexo apenas como reprodução9, mas se o prazer sexual fosse pecado, Deus teria feito o homem incapaz para o gozo sexual, a fecundação se daria no contato flácido do pênis com a vagina, ou, preferencialmente, anunciado por alguma entidade celestial de plantão. Nessa linha, todo cidadão teria um chip que, automaticamente, repeliria qualquer fragmento de desejo por outro do mesmo sexo. Mas, a líbido não tem “código de barra”, portanto, está aberta a todas as possibilidades sexuais. Os Antigos gregos permitiam o despertar do desejo pelo belo na pessoa do macho ou da fêmea. Isso explicita que o social formata as mentalidades visando combinar identidade de gênero e sexo biológico, para acasalar e reproduzir (Silva, 2010). Porém, um “alternativo”, meio intrigante, atravessa esse caminho: “o orifício externo do ânus10 é região muito sensível a estímulos eróticos, assim como a região inicial do reto onde está a próstata. Por esta segunda razão, a penetração anal é mais agradável para os homens do que para as mulheres” (Gikovate, 1989, p.140).

Pode-se dizer que a homossexualidade é mais do que uma “traição” à masculinidade, é uma denúncia da “falha” gerencial do Estado, da família e da escola, o deslize do domínio sobre o corpo, a saída de “ordem” que não foi possível estancar. Assim, se habituou a lidar com isso que escapa, somente por meio da repressão ou da exclusão. O preconceito é uma herança cultural, e o capitalismo instaura referências e valores como ferramentas adequadas para esse fim. Quanto mais inseguro da sua masculinidade, mais o heterossexual evita contato formal ou de amizade com o gay, discrimina e, por vezes, persegue. Preocupa-se com o que vão pensar dessa proximidade, pois acredita que o gay sente tesão por tudo que é homem, mas não “desconfia” que, na verdade, teme o despertar do próprio desejo homoerótico. Para se resguardar da vulnerabilidade aos seus “fantasmas”, afugenta ou usa o homossexual como saco de pancadas. Quando mais ataca, mais se “desvencilha das dúvidas” que o tortura. Em suma, a aversão ao homossexual é a saída para se “garantir” de qualquer risco de “deslizamento” para a homossexualidade (Silva, 2010).

Procurar enquadrar a homossexualidade como doença e/ou pecado, é instigar a discriminação, a perseguição e a morte aos homossexuais, isso não é nada cristão, “o medo dos bárbaros é o que ameaça converter-nos em bárbaros” (Todorov, 2010, p. 15). O crime de ódio ou homofóbico é, comumente, praticado por homossexual egodistônico com fachada de macho, consumido pelo intenso conflito de não aceitar a própria homossexualidade. Mas, vivencia seu homoerotismo, na “invisibilidade” dessa prática, como suposto ativo. Para se livrar dessa angústia, os mais atormentados dão cabo do estímulo: mata o gay com o qual tivera relação sexual, em geral, intermediada por algum michê (pagamento), para atenuar seu conflito ou culpa, mas essa negociação não aplaca o ódio que faz do outro, quase sempre assumido ou com visibilidade do estigma, sua vítima fatal (Silva, 2010).

Finalmente, é preciso respeitar a ecologia social, trabalhar na reconstrução das relações humanas em todos os níveis do socius (Guattari, 2005), o fim da discriminação legal é bem menor na realidade da seleção para emprego, no local de trabalho, e que os homossexuais jovens são os que mais sofrem depressão e tentam suicídio (Adam et al. citado por Bozon, 2004). Mas, contrariando ou “passando por cima” das Associações Mundiais de Saúde que retiraram a homossexualidade da categoria dos transtornos mentais, e do Conselho Federal de Psicologia (CFP) que proíbe o psicólogo de tratar a homossexualidade como doença. Contudo, alguns psicólogos, políticos/religiosos e religiosos insistem de modo obsessivo a considerar a homossexualidade doença, ou seja, homossexualismo. 

Esses homofóbicos, com certeza, denunciam conflitos de ordem interna, que não conseguem canalizar adequadamente a própria libido ou a mantém por meio da repressão. Portanto, são eles que precisam de tratamento e cura, e não os homossexuais assumidos. Seus discursos, desumanos e perigosos, estimulam a discriminação, a perseguição e o ódio, uma vez que, para o senso comum isso funciona como álibi, ou seja, nem o assassinato de homossexual é tido como crime, pois considera que o assassino prestou um serviço, digamos, de higienização moral à sociedade.

Pelo exposto percebe-se que a convivência amena com o diferente ainda está no campo da utopia, e a intolerância é mais forte em relação aos homossexuais. Ninguém tem que aceitar o homossexual, mas de respeitá-lo como ser humano. Uma vez que a tolerância nasce de um acordo e dura o tempo que o dominante desejar (Bobbio, 2002), portanto - mesmo que tardiamente como foi implantada a Lei contra o Racismo -, o homossexual também precisa desse amparo legal, bem como da Cota universitária, em virtude de que muitos jovens efeminados desistem da escola ou sua aprendizagem é dificultada por causa do bullying, afinal, gay paga impostos como todo mundo.

 

NOTAS:

1. Agora, nos estados de futebol, casais são procurados pela câmera, para que num telão, de modo nada espontâneo, sejam exibidos seus beijos.

2. Falas do personagem Marcus Licinius Crassus (Laurence Olivier), dirigidas a Antoninus (Tony Curtis), no filme Spartacus, de Stanley Kubrick (1960).

3. Neste sentido, Schafer (citado por Granã, 1996) chama a atenção para o fato de que, a depender do ângulo de percepção, essas condutas se confundem, pois, falar em comportamento passivo ou ativo é semelhante a decidir se um copo com água até a metade está meio cheio ou meio vazio. Em consonância com essa posição esses termos serão aspados.

4. Grifo nosso. Do francês, o que saiu errado ou não conforme o esperado, incompleto.

5. No século XIX essa palavra foi usada para designar mulheres de dupla reputação.

6. O termo “bicha”, pederasta passivo, seria uma adaptação aportuguesada do francês biche, corça, feminino do veado, e viado (sic), pela comparação popular com o animal veado tido como mais frágil e delicado (Parker, 1991, Green, 2000, citados por Silva, 2010).

7. Peço desculpa ao leitor pelo uso da frase chula, mas bastante recorrente no senso comum, porque substituí-la por um termo técnico perderia seu teor expressivo.

8. Ressaltaria que não só no Nordeste do Brasil, mas no país como um todo e no mundo, ou seja, em qualquer contexto social marcado pelo machismo, facilmente se depara com adultos jovens e senhores casados praticando sexo em banheiros públicos.

9. Por mais estranho que possa parecer, a condenação do preservativo (ou camisinha) por parte da Igreja, está coerente com essa sua posição.

10. Nesse sentido, a atual liberdade heterossexual faz crescer o número de mulheres fálicas, cujos parceiros admitem que lhes façam, por vezes, mais do que estimulação digito-anal (“fio terra”).

 

REFERÊNCIAS

Bauman, Z.  (1999). Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

Bobbio, N. (2002). Elogio da serenidade e outros escritos morais. São Paulo: UNESP.

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