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Contributos para uma reflexão sobre estruturas de personalidade de um nadador de alta competição

2006
avcerqueira1@gmail.com
Licenciado pela Universidade de Coimbra e Pós-graduado pelo IPAF-Lisboa. A exercer clínica privada.

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Contributos para uma reflexão sobre estruturas de personalidade de um nadador de alta competição Contributos para uma reflexão sobre estruturas de personalidade de um nadador de alta competição

«Com os treinos e os estudos, quando dei por ela estava só, não tinha amigos.»

Ex. Nadador olímpico Português

Esta frase fez-me pensar.

Se pensarmos nas características próprias da natação: realiza-se, pelo menos num largo período do ano, em recintos fechados, com a cabeça dentro da água, sem comunicação entre os parceiros, sem sons humanos, com rotinas ferozes, a andar de um lado para o outro da piscina, sem alteração da paisagem e ainda, com elevados níveis de sofrimento e cansaço, poderemos perguntar que consequências daí poderão vir em termos de desenvolvimento da personalidade?

Por outras palavras, que "tipo de gente" aguenta isto, ou melhor, que estrutura de personalidade se integra e aceita esta enorme tarefa?

«Na presença de outro ser da sua espécie, o humano não pode senão comunicar» gregori Bateson, in (Leal, 1993)

De facto, tendo em conta o ritmo de "trabalho" dos nadadores, – e só vou referir os de alta competição, embora acredite que na natação actual desde muito cedo se "trabalhe" bastante – com treinos bi-diários, aulas, estudar, pergunto-me e pergunto-vos o que resta? As hipóteses de comunicar não serão reduzidas ou mesmo nulas? E que consequências, a não comunicação pode ter?

Permitam-me continuar neste raciocínio. A natação como desporto individual fomenta, naturalmente, a competição individual. Essa competição tem início desde logo, no interior da própria "equipa", com rivalidades que se vão desenvolvendo entre cada um dos nadadores dos mesmos estilos (técnicas) e/ou idades. Depois, com os nadadores de outros clubes. E isto desde muito cedo. A natação é um dos desportos em que se começa mais cedo, e em que há campeões e recordistas Olímpicos ou Mundiais, com idades muito baixas.

Tendo em conta estes elementos, não posso deixar de pensar no "tipo" de personalidade (estrutura) que estará mais adequada a este tipo de exigência e o "preço" que terá, eventualmente, de pagar por toda esta dedicação.

Assim, poderá ser alguém profundamente disciplinado, metido dentro de si próprio, com dificuldades de estabelecer relações duráveis e diversificadas, não porque não queira, mas porque não é capaz.

Ou tem uma relação extremamente fusional com o segundo cuidador.

Com tendência para desenvolver "fantasias" internas.

Mas também, pode ser alguém com um narcisismo muito elevado, por ter necessidades de vitórias e de reconhecimento público. Arrelacional – as suas relações são meramente instrumentais e duram enquanto lhe interessar – manipulador e com os "nervos à flor da pele". A sua responsabilidade e capacidade não está em questão, a haver erros ou falhas, nunca são suas, mas sim dos outros.

A sua capacidade de trabalho e de esforço tem muito a ver com um preenchimento de um vazio interior.

Isto também é válido para o perfil anterior embora naquele caso menos acentuado.

Mas é só negativa a minha leitura? Claro que não!

Se estes problemas poderão ser reais, e com consequências no seu comportamento futuro, também é verdade que se desenvolve uma enorme capacidade de sacrifício, capacidade de resistência à frustração, sabendo adiar a gratificação pelo seu trabalho, o que implica uma grande disciplina, predisposição para o trabalho e para a luta do quotidiano.

Não será por acaso o sucesso escolar e profissional de uma boa parte dos nadadores nomeadamente dos nadadores de alta competição.

Mas a questão subsiste: «Com os treinos e com os estudos, quando dei por ela estava só...»

A verdade é que cada vez mais as sociedades vão avançando para uma individualização quase "cega" que contraria a própria natureza humana, que necessita da relação, desde a mais tenra idade, para ter uma boa construção mental adaptativa pois: «A realidade humana assenta na comunicação como formato primário de todos os relacionamentos » (Leal, 1993).

Mas, se assim é, e eu acredito que sim. Na natação, como já referimos, a comunicação encontra-se afectada desde logo, pela própria natureza da modalidade em si. Daí os possíveis "disfuncionamentos" emocionais de que o nadador pode vir a sofrer, enquanto desportista, nadador e cidadão que terá, quase inevitavelmente, consequências nos seus relacionamentos futuros (e presentes) tanto em relação aos OUTROS como em relação a si mesmo. Pois, «...debaixo de muitas outras aparências, o que impede os humanos de descobrirem novas soluções para superarem dificuldades de adaptação e de desenvolvimento é a deficiente estruturação da comunicação emocional de ressonâncias mútuas.» (Leal, Rosa. 1997). Desta forma, não admira que muitos nadadores e ex. nadadores se sintam sós e com dificuldade em estabelecer relações duráveis que sejam mutuamente prazerosas.

Em jeito de conclusão

Temos assim, que tendo em conta as características próprias de uma modalidade como a natação, poderemos estar a desenvolver humanos que, antes, durante e depois, da sua prática desportiva poderão ter, ou vir a ter, problemas emocionais que terão muito a ver com as suas dificuldades de relação dialógica e que, no limite, os impede de serem felizes.

Esta relação dialógica tem a ver com o dar e receber, de um ir e de um devir comunicativo, contingente, e, por isso, prazeroso. Desta forma, estruturando uma construção mental saudável dos significados EU/OUTRO.

Assim, se não está em causa a riqueza educativa da natação, nem o facto de que para mim a competição é inerente à condição humana. Não sei, no entanto, se esta inerência será à condição humana ou se a sociedade transformou a competição numa necessidade...

Teremos de pensar em estruturas de competição desportiva (clubes, associações, federações e outros) organizadas de forma a favorecer o espírito de equipa e a relação dialógica entre todos os nadadores.

Sem estes factores, poderemos estar a esquecer as necessidades dos humanos, em prol, exclusivamente, dos resultados desportivos.

Naturalmente que não se pretende neste artigo abordar todas as questões importantíssimas da relação. E assim, fica por abordar a relação do indivíduo nadador e os seus cuidadores.

Mas também, entre estes e os seus pares. E é claro que será neste núcleo relacional nadador/cuidador que tudo, ou quase, se define e logo a partir dos primeiros momentos de vida. Mas, o facto é que para ter sucesso desportivo na natação, não "serve" qualquer estrutura de personalidade, o que significa que esta estará mais ou menos definida aquando a entrada na natação, e, sobretudo, aquando da opção pela competição.

Não será por acaso que jovens de elevado potencial abandonam cedo a natação de competição…

Mas não teremos a obrigação de fazer "evoluir" essa estrutura?

É que é importante que não nos esqueçamos que «O ser humano por ser dotado de "função simbólica" interioriza o código da sua relação com o outro. Cotejando Fraicoise Dolyo (1981): ele ama-se a si mesmo tal como é amado pelo outro e rejeita-se pela mesma medida.» Leal, M.R.M., personalidade integrada e Escola de todos, Lisboa. (sublinhado nosso).

E o que se passará com atletas das competições individuais e colectivas altamente profissionalizadas?

Nota final muito importante: A natação é, na minha opinião, a modalidade desportiva mais saudável e completa, tanto a nível físico como psicológico. Mas este artigo trata da natação de alta competição (rendimento) e da necessidade de reflectir sobre todas as varáveis envolvidas no desporto de alto rendimento e a vertente psicológica é uma delas.

BIBLIOGRAFIA

Leal, Maria Rita Mendes, 1993, Grupanálise, um percurso 1963 - 1993, Fim de Século, Lisboa.

Leal, M.R.M., Rosa, Maria Brito G., 1997, O processo de hominização, Bios transforma-se em Psiche, Associação de Pedagogia Infantil, Lisboa.

Leal, M. R. M. (?) Personalidade integrada e Escola de todos, sem informação.