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Trabalhar num bairro social: relato de uma psicóloga

2013
juhaninha@hotmail.com


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Trabalhar num bairro social: relato de uma psicóloga

Para aceitar uma proposta de trabalho num bairro social, é fundamental conhecer a realidade das pessoas que lá vivem e ter a consciência de que não será fácil. Na faculdade, não se aprende a exercer num bairro social e, sem experiência em lidar com histórias de vida semelhantes, sentem-se algumas inseguranças. Contudo, quando se inicia este tipo de trabalho é necessário ter uma atitude firme, confiante e mostrarmo-nos à-vontade no ambiente do bairro e com as pessoas. Se não for assim, não somos aceites!

Eu realizei estágio profissional na área da Psicologia num bairro social caracterizado por graves dificuldades socioeconómicas e psicológicas, nomeadamente condições de vida precárias, criminalidade, tráfico de droga e prostituição. A nível psicológico nos adultos, verificam-se maioritariamente diagnósticos de depressão, ansiedade e perturbações da personalidade (e.g., antissocial, borderline). Nas crianças, observam-se limitações significativas em vários domínios da sua vida, como dificuldades de comunicação, aprendizagem, hábitos e métodos de estudo, autonomia, controlo comportamental e relacionamento interpessoal.

Na associação onde está sedeado o gabinete do Serviço de Psicologia, num apartamento do próprio bairro, as condições de trabalho são rudimentares. Foi fundamental organizar o espaço e torná-lo mais atrativo para receber as pessoas. As crianças foram as que demonstraram mais interesse pelas mudanças, principalmente ficaram agradadas quando expus alguns dos seus desenhos. Estes pormenores fazem com que se sintam mais confortáveis no gabinete, o que é extremamente útil para que sejam assíduas às consultas.

Normalmente à tarde, os moradores do bairro sem ocupação profissional juntam-se à frente do bloco para jogar cartas, falar alto, cantar, fumar, o que dificulta a condução das consultas. Os adultos conseguem-se abstrair melhor, mas as crianças distraem-se muito facilmente com o barulho. Este aspeto foi minorado quando um dos moradores foi fazer serviço comunitário para a associação e sensibilizou as pessoas para terem mais respeito por aquele espaço.

Para chegarem até ao Serviço de Psicologia, algumas pessoas foram encaminhadas pelas assistentes sociais ou pelos funcionários do ATL, outras pediram a marcação de consulta por livre e espontânea vontade. Muitas delas aceitaram a marcação de consultas com algum agrado, pois viam nesse apoio uma forma de desabafarem, terem atenção e serem valorizadas. A maior parte dos utentes foi seguida em regime semanal, em consultas de 1 hora sensivelmente. Nem todos foram assíduos, alguns esqueciam-se de vir à hora marcada e não davam qualquer justificação. Foi essencial ser flexível e paciente, procurando a pessoa para marcar novamente a consulta. Para algumas pessoas que faltavam sempre no dia marcado, deixei de agendar e combinei que apareceriam no dia geral de atendimento, porque vinham quando queriam e nem sempre eu tinha disponibilidade para atendê-las. É importante mencionar que as crianças foram mais assíduas e participativas do que os adultos.

Na generalidade, as pessoas trataram-me com respeito e valorizaram o meu trabalho. Para além disso, tiveram a atenção de usar vocabulário cuidado nas consultas. Após um período de tempo para me conhecerem, fui sentindo que era aceite no bairro. As pessoas passaram a vir ter comigo para me fazer questões ou pedidos e para marcarem as consultas. No início, foi necessário explicar bem as funções que o psicólogo desempenha, pois há uma grande confusão com as do assistente social e, por vezes, pediam-me coisas para as quais eu não tinha formação para poder ajudar.

À medida que fui conhecendo as pessoas, pude perceber que a sua maioria não tem escolaridade, não sabe ler nem escrever, não tem objetivos de vida, não gosta de trabalhar nem de se ocupar. Verificam-se comportamentos antissociais, o uso da mentira e manipulação, reduzidas capacidades de comunicação assertiva e um fraco controlo dos impulsos (quando ansiosos e/ou encolerizados partem para a agressão verbal e física muito facilmente). No geral, todos se queixam bastante, mas não têm comportamentos para mudar a sua situação, para além de pedirem mais ajudas da associação na forma de alimentos ou pagamento de contas/medicação. Devo ressalvar que há sempre exceções, pessoas que se esforçam para fazer face às dificuldades e libertam-se do ciclo vicioso em que se encontram no bairro. Com “ciclo vicioso” quero dizer que há uma tendência muito elevada para os filhos serem semelhantes aos pais (e.g., um filho de uma pessoa violenta terá grande probabilidade de ser violenta em adulta). Há, também, algumas pessoas que sentem uma grande vergonha em pedir ajuda, mas devido à crise e ao desemprego, viram-se “obrigadas” a dirigir-se à associação. Com todas estas pessoas, a atitude a ter é de compreensão e solidariedade, dando estratégias para fazerem face às dificuldades, para além de ajudar no que for possível a nível económico.

Durante as consultas, foi essencial usar uma linguagem clara e acessível a todos, dando exemplos muito concretos. Tive de ser flexível na condução das consultas, pois várias vezes precisei de adaptar os objetivos das mesmas, consoante as dificuldades verificadas no próprio dia e a atitude da pessoa. Por vezes, as pessoas chegavam à consulta transtornadas devido a episódios de violência ocorridos ou a alterações nos apoios económicos que tinham, o que as deixava desesperadas e, em alguns casos, agressivas.

Para além disso, uma das características mais importantes a adotar foi a imparcialidade, pois as pessoas do bairro contaram várias histórias ofensivas em relação umas às outras e eu não devia criticar nem apoiar diretamente ninguém, ou seja, aprendi que o psicólogo ouve e ajuda todas as pessoas, mas não pode demonstrar nenhum tipo de preferências.

Relativamente aos programas de intervenção desenvolvidos, estes foram delineados após uma recolha de informação cuidadosa antes do acompanhamento, com as assistentes sociais, os funcionários da instituição e do ATL e os professores (no caso de crianças), bem como após o consentimento informado tanto das crianças e jovens como dos adultos. Para além disso, realizou-se uma recolha de informação pormenorizada com os utentes nas primeiras consultas. Com as crianças, avaliou-se sobretudo os seus interesses e capacidades cognitivas (e.g., atenção e memória), o estado de humor, as estratégias de coping e a satisfação com o apoio social. De uma forma geral, as atividades terapêuticas consistiram no desenvolvimento de aptidões para a aprendizagem escolar, modificação do comportamento e dos pensamentos negativos/pessimistas, promoção da autoestima e do autoconceito, desenvolvimento socio-afetivo, acompanhamento bio-psico-socio-familiar, encaminhamento para cursos profissionais e trabalho de parceria com técnicos/instituições externas (a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, a Segurança Social, o Tribunal, a Direção Geral de Reinserção Social, os hospitais e os centros de saúde).

Com as crianças e jovens, alguns dos materiais utilizados foram as histórias e atividades dos livros “Aventura dos sentimentos e dos pensamentos: Diferenciação emocional, cognitiva e comportamental”, “Olá, Obrigado! Competências sociais e assertividade” e “Stop! Disciplina e autocontrolo”; o desenho da família, o loto das palavras, o jogo do Mural, o jogo “Rostos sem nome”, o Kidcope, a ESSS - Escala de Satisfação com o Suporte Social, o Trail Making Test, alguns testes da WISC III (e.g., labirintos), puzzles, entre outros. Para trabalhar os sintomas ansiosos, utilizou-se o relaxamento muscular progressivo para crianças[1]. Os jovens acharam interessante fazer a análise de letras dos seus cantores e bandas preferidas, bem como ver vídeos no youtube sobre bullying. Ao nível de métodos de estudos, focou-se a elaboração do horário de estudo, de resumos, de fichas de trabalho para as disciplinas de Inglês, Língua Portuguesa e História, e a análise do Método de estudo PLEMA (Pré-leitura, Leitura, Esquema, Memorização e Autoavaliação).

Foi necessário adequar determinadas atividades ao estilo e necessidades das crianças, por exemplo elaborei o “Jogo das Perguntas & Cores” para avaliar as características pessoais, as amizades, as relações familiares e com a escola. Para motivar as crianças para as consultas, recorri à pintura de desenhos à sua escolha e à realização de desenhos, jogos e puzzles.

Com os adultos, as consultas focaram-se mais na expressão de sentimentos e de acontecimentos verbalmente. Contudo, também se usaram estratégias como psicoeducação, restruturação cognitiva, avaliação de estados depressivos (através do BDI - Beck Depression Inventory), definição de objetivos e atividades sociais (e.g., saídas com amigos, procura de emprego).

O estágio teve um forte carácter social e comunitário, pois fiz distribuição de alimentos, roupas e livros escolares; atividades lúdicas para as várias faixas etárias (e.g., organização da festa de final do Verão, coordenação das Marchas Populares com participantes de todas as idades); e sensibilização para comportamentos adaptativos (e.g., reciclagem).

Em relação ao trabalho com as crianças, apercebi-me que estas são o reflexo claro dos seus pais, daí a importância de tentar trabalhar com ambas as partes. Todavia, os adultos mostram-se mais resistentes à mudança e resignados com a sua forma de ser. Em vários casos, tanto o jovem como um dos pais estava a ser seguido, o que possibilitava uma maior abrangência e modificação dos comportamentos. Quando isto não acontecia, foi necessário reunir com alguns pais para dar estratégias educativas. Em ambos os casos, foi fundamental manter a confidencialidade tanto das crianças como dos pais. A partilha de informação a qualquer das partes foi sempre extremamente bem ponderada e/ou feita na presença de todos e com autorização.

Nas consultas, algumas crianças tiveram atitudes desafiantes, opositoras, recusando qualquer tarefa ou atividade proposta. Contudo, após um período de adaptação, passaram a mostrar-se interessadas, participativas e recetivas às orientações dadas. Por outro lado, em determinadas situações, tive de lidar com a frustração de se portarem bem na consulta e passarem da porta e envolverem-se em atos violentos, tratarem mal os funcionários do ATL e não estudarem. O facto de chegarem a casa e terem modelos disfuncionais que não lhes dão atenção ou ensinam maneiras de se comportar completamente desadequadas foi prejudicial à terapia. Por tudo isto, notei que a modificação do comportamento foi, na generalidade, muito lenta.

Em casa, verifica-se, também, uma grande falta de regras e limites. É a criança quem manda nos pais. Se a criança pede um brinquedo ou um chocolate raramente ouve um “não”. Se fizer alguma birra, imediatamente lhe fazem a vontade. O uso da conversa é raro, sendo que os pais começam a berrar após haver mau comportamento e batem sem explicar a razão. Mas dificilmente colocam de castigo ou, se o fizerem, levam o mesmo até ao fim. Observa-se, em alguns casos, pouco acompanhamento em relação à escola, às notas, ao estudo e aos trabalhos de casa. Por tudo isto, nas consultas, as crianças procuram fundamentalmente afeto e atenção. Quando são impostas regras nas consultas e no ATL, verificam-se mudanças muito positivas nas relações interpessoais e nos rendimentos escolares.

As principais dificuldades encontradas no trabalho no bairro social dizem respeito à falta de assiduidade geral às consultas, às situações de conflito entre os moradores e à impulsividade das pessoas que as fazia agir sem pensar e culpabilizar os outros dos seus problemas. Houve alguns episódios desagradáveis em relação aos técnicos (e.g., psicóloga, assistentes sociais, funcionários do ATL), como acusação de que não éramos justos na distribuição das ajudas ou que ficávamos com alimentos que lhes pertenciam. Nestas situações, foi crucial manter a calma e não responder na altura, em que as pessoas estavam exaltadas.

Mas, de um modo geral, foi uma experiência muito gratificante, onde aprendi bastante e estabeleci relações fortes. A nível dos progressos na terapia, observei melhorias significativas em algumas crianças, jovens e adultos. De facto, pude constatar a importância que tinha para as pessoas do bairro quando tive de informar que o estágio estava a terminar. Várias pessoas agradeceram pelo trabalho efetuado e ficaram com pena que não houvesse continuidade. Assim, terminei o meu trabalho no bairro social com sentido de realização pessoal e profissional.

 

[1] Os materiais referidos podem ser encontrados, facilmente, na Internet. Contudo, se for preciso alguma referência, contactar para o email.