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O jardineiro da alma e a fadiga por compaixão emergente do compromisso de cuidar, amparar e socorrer

2013
franciele.sassi@hotmail.com
Estudante de Psicologia da Universidade de Caxias do Sul (Brasil)

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O jardineiro da alma e a fadiga por compaixão emergente do compromisso de cuidar, amparar e socorrer

 

Pus-me a observar aquele jardineiro que tanto podava os arbustos do meu jardim. A cada nova semana, utilizava-se de um diferente modelo de tesoura de poda, dentre outros recursos de trabalho, a fim de esboçar o formato das minhas plantas e modificá-las de acordo com a rigidez dos galhos que, eventualmente, impediam-nas de prosseguir. Depois dos seus cuidados, de modo surpreendente, quase todas as plantas permaneciam sempre um tanto diferentes das vezes anteriores em que passavam pelas mãos do jardineiro. Todas elas mostravam-se exuberantes em sua essência, dançando formosamente sob o sopro do vento depois de delineadas. Algumas não eram tocadas, porque este dizia que ainda não estavam prontas para serem modificadas assim, tão repentinamente, e que o simples podar de um ramo poderia ser suficientemente capaz de fazer com que as pequenas plantas sofressem em demasia. O jardineiro afirmava, com destreza, que as plantas deveriam estar preparadas para assumirem as mudanças que lhes seriam anunciadas, cada uma ao seu tempo. Pus-me, então, a imaginar: quem é o jardineiro se não aquele que cultiva as suas próprias plantas e rega as suas próprias flores? Quem é o jardineiro se não aquele que cuida do seu próprio jardim? O jardineiro da alma. Também um terapeuta. Um Mestre.

Quanto a mim, permanecia debruçada sob a varanda da minha existência, contemplando o movimento da graça divina promovido pelo jardineiro, que me convidava a aproximar-me dos abismos e ladeiras do meu terreno para aprender a caminhar por eles livremente dali um tempo, no meu tempo. Compreendi que este seria o convite para o despertar do meu Eu, o despertar para o Sagrado. E enquanto a perspectiva do meu processo de viver estava sendo bordada, o jardineiro também seguia com os seus trabalhos. Ele sabia como arrancar delicadamente as ervas daninhas que apareciam em meio às belas flores do meu quintal, deixando aquele solo tão fértil e capaz de fecundar até as sementes mais sedentas pela água da chuva que acabavam caindo ao chão. O modo como adubava o solo do meu jardim, misturando os nutrientes em terra para, dali um tempo, plantar as sementes do que ainda virá; a habilidade com que rastelava as minhas plantações, colhendo as sementes das flores que ainda não haviam tido a oportunidade de germinar; o cuidado com que selecionava os grãos mais adaptativos da vida para introduzi-los ao solo do meu jardim; tudo isso colocava à disposição a incontestável performance do jardineiro na execução dos seus serviços. E embora o seu trabalho fosse admirável, o jardineiro era alguém que não buscava por discípulos, mas guardava no seu coração uma experiência que desejava partilhar. Por isso, convidou-me a adentrar no meu próprio jardim para conhecê-lo a cada estação da vida. Seria preciso saboreá-lo, dizia o Mestre.

O seu conhecimento era tamanho, porque antes mesmo de manejar junto aos quintais alheios, buscava conhecer tudo sobre o seu próprio jardim. O jardineiro o havia experimentado. Dizia também que é preciso ter muito cuidado ao ser convidado para visitar o jardim do outro, já que a diversidade de plantas encontrada faz com que os caminhos a serem percorridos para a poda sejam desconhecidos e, ocasionalmente, confusos. É necessário ter muita sensibilidade para com as suas plantas, e aprender a manuseá-las, por vezes, pressupõe esforços. Depois do jardineiro, concluí que os bons profissionais conhecem vários jardins, mas, para isto, houve a necessidade de fazerem experiências no seu próprio, conhecê-lo intimamente nas suas fragilidades e superações. Para que se apresentassem capacitados a penetrar ao solo alheio e realizarem os tratos culturais que se fizessem importantes, antes precisaram sentir a inconstância arenosa do seu próprio terreno.

E assim como o jardineiro precisa de conhecimento e técnica para adentrar ao jardim do outro e dar início à poda das plantas que se encontram, aparentemente, sem forma, estando disposto também a conhecer cada espécie entremeio à variedade vegetativa que lhe é apresentada; o terapeuta necessita atenção e, ao mesmo tempo, sensibilidade para compreender a diversidade daquele que se apresenta diante de si. Além disso, coragem para intervir nos porões mais obscuros e sombrios da alma humana. Assim como é necessário que o jardineiro tenha cautela ao desfazer os emaranhados causados pelas plantas trepadeiras sob as demais espécies arbóreas; é preciso cuidado, por parte do terapeuta, com o desenlaçar dos nós da mente daquele que se encontra perdido na bagunça da sua existência. O terapeuta é também um jardineiro. Pode fazer florir toda uma vida. É o jardineiro da alma. E pode convidar o outro para o despertar de si mesmo, atravessando o seu próprio jardim e conhecendo-o na escuridão e na luz que ele apresenta. É também um Mestre.

Lembrar-se-á que aquele que cuida também precisa ser cuidado. Ninguém disse que o jardineiro nunca poderá se ferir ao mexer nos roseirais dos jardins alheios. É necessária precaução para que os espinhos escondidos entre os galhos das rosas mais aveludadas não sejam suficientemente capazes de feri-lo. Do mesmo modo, o terapeuta precisa tomar conta da sua saúde psíquica, permitindo-se ser cuidado por um jardineiro da alma, assim como ele mesmo o é para alguém. Afinal, tudo que traz benefícios também apresenta custos. E a dor vem do custo do compromisso de amar. Já ao nível elementar do contágio emocional a tarefa de cuidar se torna custosa, expondo o cuidador a estados de tensão e estresse, e mobilizando o seu organismo a preparar-se para a ação, resultando em desgaste físico e psíquico (Lago & Codo, 2010). É preciso que o terapeuta perceba que cuidar significa mais que um ato, mas uma atitude, abrangendo fatores que seguem muito além dos momentos de atenção, zelo e desvelo, mas representa condutas relacionadas à preocupação, responsabilização e ao envolvimento afetivo com o outro (Boff, 2012). Amar solicita cuidado. Cuidar requer comprometimento. E o compromisso de amparar e socorrer demanda que o profissional cuide, anteriormente, de si mesmo. Afinal, o terapeuta é aquele quem cuida do jardim para o cultivo e pleno florescimento do ser humano. É o Mestre que promove a graça para que aconteça o despertar do Ser por ele mesmo numa busca constante em direção à plenitude. E a graça é a beleza que se dá, a rosa que desabrocha.

O exercício da Psicologia é marcado, desde o início, pelo estabelecimento de contatos próximos e intensos com as feridas da alma que estão expostas por aquele que se apresenta vulnerável e que busca ser cuidado com tolerância e respeito. A Psicoterapia, por sua vez, torna-se uma ocasião de consciência, crescimento e paciência. Uma ocasião para amar, ocasião de contato original. Basta que se tome consciência, que se facilite o processo, de resto é deixar acontecer. O desafio do trabalho do terapeuta se encontra justamente no deixar-se preencher pelo vazio do outro e permitir-se transitar entre as subjetividades numa relação sem precisar sair do lugar que lhe cabe. Deixar ser aquilo que é. Significa experienciar as trilhas das inúmeras possibilidades de trocas nas dimensões cognitiva, emocional, física e espiritual sem que esta aventura peça a concretude de um deslocamento. É um viajar sem sair do lugar. Um acolher que abre os braços para aquilo que a vida oferece num determinado instante; acolher o seu sopro, a sua luz e a sua presença da forma como vier.

Benevides-Pereira (2002) coloca que em razão de estar delineada pela intensidade dos investimentos pessoais, a atuação do cuidador é, muitas vezes, permeada pelo enfrentamento de eventos estressores e/ou traumáticos. Permitindo-se sentir da forma como é e vier, este profissional se depara com a contradição entre o homem que está acordado na escuridão e aquele que está dormindo na luz (Gibran, 1883-1931). O desgaste tanto físico como psíquico em função do manuseio constante com situações de desamparo, às vezes, toma grandes proporções. É preciso muita dedicação e sensibilização para aproximar-se da angústia e sofrimento alheios, além da busca pela compreensão plena diante da controvérsia humana. Por isso, o mesmo sopro que oferece a luz também convida o terapeuta a ter paciência, a não julgar, de modo que o permita abrir o seu coração para conter os contrários da existência.

Lago e Codo (2010) afirmam que a fadiga física e emocional resultante da compaixão que os profissionais, na perspectiva de cuidadores, vivenciam no trabalho com pessoas que se encontram em sofrimento caracteriza-se pela síndrome denominada Fadiga por Compaixão, fenômeno que “esgota, fulmina, embota o indivíduo fatigado, pois ela compromete, prejudica, diminui a capacidade empática do sujeito. Capacidade esta que, além de ser essencial no desempenho de suas atividades profissionais, também é essencial para o convívio social” (Lago & Codo, 2010, p. 183).

Em razão de ser uma síndrome específica daqueles que manejam com a dor e o desconsolo do outro, a Fadiga por Compaixão acomete, em sua maioria, os profissionais de saúde e mostra que, muitas vezes, por mais que se pense que estes profissionais se encontram protegidos devido ao seu preparo e formação, tal proteção não ocorre por não ser possível e, em determinado grau, nem desejável. Por mais que a prática do cuidador pressuponha esforços e esteja diretamente conectada a situações mobilizantes, não se pode negar o quão desumano seria se este não fosse minimamente afetado pela dor do outro. Ademais, a possibilidade de ser acometido pelos estados internos alheios possibilita um importante grau de comunicação entre os membros, essencial para o firmamento e a manutenção da vida em sociedade (Lago & Codo, 2010).

Acredita-se que algumas estratégias de enfrentamento iniciais – como a impossibilidade de sentir e deixar-se mergulhar na dor do outro – utilizadas pelos salvadores de vidas na mais ampla esfera diante de situações de crise acabam sendo, mais tarde, questionadas, ao passo que os sentimentos de compaixão e amor pelo próximo, assim como o ímpeto de socorrer e amparar transcendem a experiência humana. O terapeuta, portanto, terá que ter esta compaixão viva dentro de si. Viva e pulsante. É no pulsar que está a capacidade de análise que permitirá, inclusive, ouvir uma voz que lhe solicita sair do lugar em que se encontra, tornando possível compreender que há situações na vida em que deixar ir ou afastar-se também significa cuidar. Trata-se de sair das situações nas quais o cuidador fecha-se a si mesmo e aos outros. “Aqueles que se tornam Terapeutas não o fazem por costume nem por exortação ou solicitação de outrem, mas impulsionados pelo amor divino” (Leloup, 2011, p. 39). Parece ser justamente pelo fato de ser causadora de estresse e tensão que a dor daquele que a sente se faz tão importante para aquele que a cuida.

Contudo, não se pode falar em Fadiga por Compaixão como resultante de um problema de Saúde Mental no Trabalho, sem antes entendê-la como um fenômeno humano e social que comove e emociona a todos os envolvidos, direta ou indiretamente, em razão de colocá-los frente a questões relativas ao comportamento, sentimentos, emoções e valores – morais e sociais. Considerando que a Fadiga por Compaixão existe num contexto onde a preocupação empática com o outro e a compaixão se apresentam como condições necessárias para a realização da atividade profissional, torna-se fundamental pensar no fenômeno da empatia. Este, por sua vez, é o evento que suscita a compaixão. É através da empatia que um ser humano sente pelo outro que torna possível o surgimento de um estado de apreensão e aflição pelo seu bem-estar, tendo em vista o estresse e o desconforto que o sofrimento alheio lhe causa (Lago & Codo, 2010). É a empatia que evoca ao terapeuta um desejo por acolher que transborda e transcende; uma contenção ao outro que o permite fazer aproximar-se da sua dor para, minimamente, senti-la e compreendê-la e, a partir dali, intervir. E que esse aproximar-se possa ser entendido por aquele que é cuidado como uma forma de amparo e apoio. Ademais, que possa ser compreendido como um suporte para o pedido de socorro. É a compaixão que chama o terapeuta a estender a sua mão. Contudo, é um oferecer numa via de mão dupla. Ou seja, a mesma mão que é estendida e acolhe também pode ser a mão que solicita por ajuda e que se distende para buscá-la, à medida que é necessário acolher e cuidar do outro, mas também ser abrigado por ele. Afinal, aquele que cuida também precisa ser cuidado.

A empatia pode ser delineada a partir do envolvimento estabelecido entre um ser humano em relação ao outro, ou seja, uma modalidade especial de relacionamento que permite que aconteça a reciprocidade entre quem cuida e quem é cuidado. Pode-se pensar na empatia enquanto uma ligação e uma identificação emocional que existe entre aquele que solicita pelo abrigo do jardineiro da alma e os cuidados para com o seu jardim e o próprio profissional que se dispõe a cultivá-lo.

A compaixão, conceito oriundo do processo empático, designa “um sentimento de pesar que é proveniente da percepção do sofrimento alheio” (Lago & Codo, 2010, p. 10), constituindo-se pela vontade que o outro sente de intervir em determinada situação devido à empatia experimentada por aquele que se encontra em sofrimento. Ou seja, é o ímpeto de cultivar o solo humano que faz com que o jardineiro da alma se disponha a pisar na sua inconstância e convide o proprietário a entrar no seu próprio jardim e atravessá-lo em diferentes estações. O jardineiro também o convida a experimentá-lo na sua metamorfose. Assim como é o desejo de socorrer que autoriza o terapeuta a mergulhar nas profundezas da fragilidade do outro e se deixar preencher por suas vulnerabilidades, a fim de interceder por elas e permitir que o próprio paciente busque pela luz que o fará despertar rumo à continuidade da existência.

Outra forma de conceber a sutil diferença entre empatia e compaixão é considerar que o primeiro refere-se a um processo de compartilhamento afetivo, de contágio emocional, enquanto que o segundo refere-se a uma preocupação empática, a um anseio por socorrer aquele que está em sofrimento. Enquanto a empatia está relacionada ao incômodo que sentimos ao ver alguém sofrendo, a compaixão está relacionada aos comportamentos pró-sociais e de ajuda. (Lago & Codo, 2010, p. 73)

 Acredita-se que o processo empático não seja um fenômeno humano puramente procedente de experiências morais ou de aprendizados sociais, mas que a sua capacidade empática de perceber e compreender os estados internos do outro também apresenta sustentação na sua estrutura biológica. Assim como todo fenômeno humano, a compaixão apresenta-se sob duas dimensões: na sua dimensão biológica encontram-se alguns processos empáticos básicos como o compartilhamento afetivo entre o “eu” e o “outro”, a consciência eu/outro e a flexibilidade mental para aderir uma perspectiva subjetiva do outro, além dos desgastes sofridos pelo organismo em razão de ser estimulado pela exposição ao sofrimento; enquanto que na sua dimensão humana situam-se todos os processos simbólicos e cognitivos relacionados às regras sociais e aos esquemas formados a respeito da bondade, justiça e caridade, que seguem desde a tomada de perspectiva até o intento de ajudar (Lago & Codo, 2010). Faz-se importante lembrar, então, que a

Fadiga por Compaixão não se resume à fadiga fisiológica decorrente do constante estado de tensão resultante de ser exposto ao sofrimento alheio. Da mesma forma que Fadiga por Compaixão não se refere apenas às mudanças cognitivas e simbólicas decorrentes da exposição à dor e ao sofrimento. Ela é as duas coisas, juntas, integradas e, muitas vezes, contraditórias. (Lago & Codo, 2010, p. 186)

O processo empático está intimamente ligado ao que o ser humano é, e a existência de uma flexibilidade mental é o que o possibilita empregar, através dos processos cognitivos, a perspectiva do outro, a fim de colocar-se no seu lugar enquanto sentimentos, pensamentos e reações diante das crises. “Como o processo empático está na base de todos os eventos que nos caracterizam enquanto espécie, por esta razão é tão complicado definir tal fenômeno, uma vez que ele se relaciona com quase tudo que se refere a nossa experiência de humanidade” (Lago & Codo, 2010, p. 74).

Por mais que a Fadiga por Compaixão se faça presente em razão da espécie humana ser dotada de uma arquitetura neurológica capaz de perceber e sentir os estados emocionais do outro, o processo empático não pode ser resumido aos procedimentos básicos de “compartilhamento afetivo”. É em consequência da capacidade de perceber a diferença entre o “eu” e o “outro” que o cuidador se permite pensar sobre a sua própria condição, diferentemente da condição daquele que foi acometido pela crise e que se distende em busca de socorro. Enquanto o compartilhamento afetivo sugere que o profissional perceba a dor do seu paciente e a sinta tal como o outro a experimenta, é o autoconceito que o permite transitar entre o seu sofrimento e o sofrimento alheio, capacitando-o a diferenciar quais as fontes de perturbação interna e externa, permitindo-o pensar-se enquanto sujeito capaz de distinguir entre as suas emoções e as emoções do outro (Lago & Codo, 2010). É preciso recordar, porém, que a mera percepção da existência da dor não é suficiente para que o cuidador faça uma boa intervenção. Todo o ser é dotado de espiritualidade, capaz de transcender a dor e o sofrimento e entrar em contato com a beleza presente na existência. O sofrimento, portanto, quando trabalhado e não somente percebido por aquele que cuida e ampara, pode indicar caminhos que possibilitam o seu encontro com o Sagrado, com a Sacralidade da Vida. E embora haja dor, a condição da espiritualidade ao jardineiro da alma o permite reconhecer na beleza do jardim da existência motivos diários para o renascimento das flores e plantas, para a ressurreição dos sonhos, de tudo o que foi importante e que, outrora, tenha permanecido no passado.

Além da capacidade de identificar a fonte dos sentimentos, também possuímos a capacidade cognitiva de nos colocarmos na perspectiva do outro. De assumirmos, por meio da imaginação, a posição do outro. Assim, somos capazes de “ver” por meio dos olhos dos outros, alcançando uma precisão ainda maior no entendimento da situação em que o outro se encontra, dando a nós mesmos uma capacidade ainda maior de intervir de forma eficaz na dor do outro. (Lago & Codo, 2010, p. 184)

O despertar de uma consciência diferente da consciência do outro mas, ao mesmo tempo, permitindo-se fazer a ligação para sentir e intervir é uma qualidade de atenção para a vida, qualidade para ser Um. A autorização do Sagrado para o tornar-se Ser de si mesmo o permite ver o horizonte próximo à janela da sua existência. Não mais distante, mas através dela, tendo a possibilidade de ampliar a vista e transcender a sua experiência de humanidade. Significa olhar para si mesmo, mas também ir além. Seguir e deixar fluir. Significa olhar transversalmente o outro consciente da conexão substancial que pode existir entre as diferenças.

O profissional que opta pelo cuidado do outro depara-se, sem dúvidas, com a beleza da existência, com os ensinamentos e aprendizagens provindas da atividade escolhida, mas também com a impotência feita presente diante da finitude da vida. Lago e Codo (2010) afirmam que a Fadiga por Compaixão também se refere às mudanças que ocorrem no mundo simbólico, na parte humana do homem. Portanto, a experiência de manter-se presente num contexto de sofrimento também o coloca frente ao seu maior medo, que é a morte. Esta circunstância faz com que ele pense acerca da sua vida, do seu existir, bem como da fragilidade pela qual ele se compõe. O lugar para onde se vai após a morte, contudo, é o lugar aonde o Ser já se encontra: um lugar dentro de si mesmo. Portanto, o homem vai para onde sempre esteve, para o segredo do seu Ser, para o segredo da sua vida, para a vida que ele é: a vida eterna. O morrer, neste sentido, significa um despertar, um tornar-se vigilante, abraçar a sua inteligência espiritual. O que desemboca no eterno se torna leve, transformado. O contato do homem com a sua finitude promove, então, a inteireza do seu Ser, a essência da sua vida. É a graça divina encontrada no próprio Ser que o permite olhar para a dor do outro através da sua dor, ampliando as formas de intervenção, em razão do entendimento e compreensão se tornarem plenos. A integridade do Ser é alcançada, então, quando ele está capacitado a olhar através da janela do desconsolo do outro o elo com a sua própria angústia.

No momento em que o terapeuta compreende que a condição humana também é permeada por perdas de diferentes naturezas, este se torna capaz de atenuar o próprio sofrimento diante do exercício dos seus serviços, possibilitando-o permanecer próximo à dor do outro, ampará-la e acalentá-la. O terapeuta, então, empresta ao seu paciente a maciez do seu travesseiro para que este possa descansar de corpo e alma na sua continência e tolerância. “O Terapeuta pode vir a ser claridade para aqueles que têm a coragem de depositar diante dele os fragmentos noturnos da sua vida” (Leloup, 2011, p.114). O terapeuta, como um Mestre e jardineiro da alma, faz o convite para que o outro possa experimentar-se no seu jardim, conhecer-se nas inconstâncias arenosas do seu terreno, compreender-se nas suas vulnerabilidades e nas profundezas do seu Ser e possa encontrar a plenitude da vida a partir da transformação do seu processo de viver. Assim funcionam os terapeutas que cuidam do Ser: aqueles que enxergam o que há de luz em cada sujeito que escutam, olham para aquilo que é feliz, competente e hábil em cada um, para o espaço onde a metamorfose acontece, para a ligação substancial que acontece através da janela da existência. Olham para o próprio pequeno eu com grandeza e aceitação, e assim também olham o outro.

O terapeuta deve assumir uma postura que proporcione àquele que é cuidado segurança suficiente para que ele mesmo possa se encarregar de retomar experiências de aprendizado que há muito foram adiadas. Promove meios para o desenvolvimento daquele que é cuidado para que, posteriormente, ele mesmo possa manter as suas plantas e arbustos podados e as suas flores sempre regadas e, com isso, seja capaz de conquistar uma nova perspectiva para a sua vida. Um sinal de que o outro começa a despertar é o “flow”, que o permite descer às profundezas do seu Ser e entrar em contato com os monstros permanecidos no passado, numa perspectiva de curiosidade amorosa na direção de um insight voltado à luz. Torna-se a busca por um terreno seguro para pousar, um lugar dentro de si mesmo. A função de um Mestre não é a de manter o sujeito sob uma dependência, mas de conectá-lo ao próprio Ser e integrá-lo a todos os planos deste Ser. O Mestre promove a ligação entre o mundo cotidiano e o mundo espiritual, para que o próprio Ser, diante de situações de adversidade, esteja capacitado a ir além de si mesmo, transcender. Afinal, é no momento em que o terapeuta é convidado a entrar no jardim daquele que solicita pelos seus serviços que iniciam os sinais de alta do processo terapêutico. E embora possam ser muitas as dificuldades que o cuidador enfrente no seu dia-a-dia – carregadas de sentimentos de ambiguidade, raiva ou culpa em relação àquele que é cuidado, também em função da Fadiga por Compaixão, a qual pode acometê-lo diante do exercício de socorrer – o terapeuta, com muita devoção e impulsionado pelo amor divino, pode fazer florir toda uma vida. Afinal, este é também um jardineiro. O jardineiro da alma. Um Mestre.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Benevides-Pereira, A. M. T. (2002). Burnout: quando o trabalho ameaça o bem-estar do trabalhador. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Boff, L. (2012). Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis, RJ: Editora Vozes.

Lago, K. & Codo, W. (2010). Fadiga por compaixão: o sofrimento dos profissionais em saúde. Petrópolis, RJ: Editora Vozes.

Leloup, J. Y. (2011). Cuidar do ser: Fílon e os terapeutas de Alexandria. Petrópolis, RJ: Editora Vozes.