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Self - a alma humana

2014
joaomachado11954@portugalmail.com


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Self - a alma humana

 

A palavra alma encontra-se comummente associada à religião. Também podemos encontrar outras referências à palavra alma na literatura como por exemplo em Fernando Pessoa no verso “Tudo vale a pena Se a alma não é pequena”1, ou quando este poeta descreve Florbela Espanca como “alma sonhadora/ Irmã gémea da minha”2. Neste texto pretendo analisar o que é a alma humana (ou o eu) e o que se sabe a este respeito.

Penso que será do senso comum que a alma humana é algo de complexo daí Espinosa ter formulado um postulado no qual afirma que a ideia de alma humana é composta de várias ideias3. Hipótese com a qual eu concordo, pois o eu é composto por algo que eu chamaria de semi-personalidades (filho, pai/mãe, irmão, amigo, profissional, etc.) mas no fundo cada ser humano é uma só pessoa e é particularmente complexo poder determinar até que ponto estas semi-personalidades são independentes ou interagem entre si na formação do Eu. Algo que, também, corrobora a complexidade desta questão é o facto da existência de em léxico particularmente rico para descrever esta temática dos quais posso salientar logo a existência do binómio linguístico alma/mente (o prof. António Damásio usa a palavra mente nos seus livros, se bem que é necessário ter em consideração que este investigador escreve em inglês e as vicissitudes desta linguagem e da cultura americana), outros muito utilizados em neuropsicologia são o eu (eu pessoalmente prefiro a designação em inglês – self) e consciência.

Foram vários os filósofos que se preocuparam com esta questão dos quais se podem destacar Espinosa que em toda a sua obra vê o Homem como parte integrante da natureza, posição corroborada por Nietzsche em Humano, demasiado humano4, também por Vergílio Ferreira quando afirma que o homem é um animal racional apenas nos intervalos de ser animal5 o que prova que o futebolista David Luiz está correcto quando afirma que somos todos macacos.

Será possível encontrar a alma humana no cérebro? Esta questão é muito complexa e tem suscitado opiniões divergentes ao nível da filosofia pois alguns filósofos afirmaram que a alma humana não está no cérebro. Nesta corrente pode-se destacar Descartes que afirmou que a alma (res cogita) está separada do corpo (res extensa) e que o único ponto de encontro entre estas duas dimensões do ser humano está na glândula pineal6. Opinião divergente (como já verificamos) era defendida por Espinosa7 e Nietzsche8. Esta discussão não é exclusiva da filosofia pois também entre os neurocientistas se podem encontrar opiniões divergentes pois o prof. Alexandre Castro Caldas afirma que não vale a pena procurar a alma humana no cérebro porque simplesmente não está lá0 e o prof. António Damásio defende a ideia contrária10.   

O prof. António Damásio defende que existe o proto-self (que não será abordado aqui pois não temos consciência do proto-self), o self nuclear (aqui e agora) e o self autobiográfico (que tem passado e futuro antecipado)11. O caso clínico de David12 ajuda a elucidar as diferenças entre o self nuclear e o self autobiográfico pois este doente neurológico sofreu uma encefalite que fez com perdesse, completamente, a memória, o que consequentemente eliminou o seu self autobiográfico (a sua vida não tem passado) mas conservou o seu self nuclear como pode ser comprovado pelo facto de este doente ter mantido os seus traços de personalidade que não dependem da memória. Também podemos verificar que os animais possuem o self nuclear (penso que ninguém terá dúvidas os animais têm consciência e self) mas não têm self autobiográfico, pois, como afirma o prof. António Damásio “os animais não se preocupam com as compras de natal”. Este facto vem corroborar a afirmação de José Saramago de que a morte dos animais não é igual à morte dos humanos14 ou por outro lado poderemos dizer que a diferentes estados de consciência correspondem diferentes mortes.

Eu posso deixar de ser eu? Esta pergunta pode ser absurda mas “tal coisa” pode acontecer como eu posso acontecer como eu pretendo demonstrar com estes três exemplos. O primeiro exemplo tratasse do ilustre caso de Phineas Gage do qual temos conhecimento devido à diligência de John Harlow (curiosamente este caso aconteceu numa época em que a frenologia estava “na moda”). Este capataz da construção dos caminhos-de-ferro sofreu um acidente de trabalho lhe provocou lesões severas no córtex-pré-frontal e surpreendentemente sobreviveu mas a sua personalidade sofreu alterações significativas tornando-se num indivíduo irresponsável e irascível o que levou o prof. António Damásio a considerar que Gage deixou de ser Gage15. Um outro exemplo é relatado na primeira pessoa por José Cardoso Pires, este escritor sofreu um AVC e, após recuperação, relatou a experiência em livro16 e a perda de identidade (que foi temporária) é bem expressa pelo facto de este escritor utilizar as palavras O OUTRO para se referir a si próprio, bem como pelo episódio no qual após a sua esposa lhe ter perguntado se ele sabia quem era este autor respondeu que era Cardoso Pires (a não José como seria normal entre cônjuges). Um outro exemplo centra-se nas críticas mas ferozes feitas à psicocirurgia17 que afirmam que esta técnica foi usada por regimes políticos para controlar delinquentes ou dissidentes, processo do qual resultava a “perda da alma” por parte da pessoa que era alvo da intervenção cirúrgica18. Acho que merece referência o facto de esta perda de identidade poder resultar tanto de lesões mecânicas (acidente de Gage e psicocirurgia) como de lesões resultantes da privação de oxigénio (AVC).

Ao longo da presente reflexão tentei fazer uma incursão pela forma como o conceito de alma humana tem sido utilizado (e analisado) por poeta(s), filósofos e neurocientistas. Não posso dizer que tenha terminado a tarefa pois a neuropsicologia é uma ciência jovem e ainda temos que esperar pelo crescimento (e/ou autonomia) das suas “filhas” (neuroeconomia, neuropolìtica, neuroética, neurosociologia, etc.) para melhor compreendermos o funcionamento do cérebro e o comportamento dos seres humanos. Uma das problemáticas que a neuropsicologia poderá, ainda, dar um significativo contributo será ao nível jurídico, nomeadamente ao nível da imputabilidade que é um conceito que também tem sido abordado na literatura nomeadamente por Gil Vicente18. Penso também que os novos desenvolvimentos nesta área poderão provar que Jim Morrison tinha razão ao afirmar “People are strange when you are strange”19.

Notas

1 Pessoa, Fernando – Mar Português. Poema integrante do livro Mensagem.

2 À memória de Florbela Espanca. Poema dactilografado e não assinado encontrado no espólio de Fernando Pessoa.

3 Espinosa, Bento – Ética.   

4 Nietzsche, Friedrich – Humano, demasiado humano. Deve-se também salientar a perspectiva darwinista apresentada nesta obra como pode ser comprovada pela crítica feia ao facto de os filósofos apenas se preocuparem com os últimos quatro mil anos (e esquecendo assim os nossos ancestrais).

5 Ferreira, Vergílio – Nítido nulo.

6 Damásio, António – O erro de Descartes.

7 Damásio, António – Ao encontro de Espinosa.

8 Ver nota 4.

9 Castro Caldas, Alexandre – Uma visita politicamente incorrecta ao cérebro humano.

10 Esta ideia é defendida em toda a sua obra (livros), se bem que neste caso a palavra cérebro deveria ser substituída por sistema nervoso pois este investigador defende que o tronco cerebral desempenha um papel crucial na formação do eu e na existência da consciência (não a consciência moral).

11 Damásio, António - O sentimento de si. Damásio, António – O livro da consciência.

12 Damásio, António - O sentimento de si.

13 Saramago, José – As intermitências da morte. Não pretendo, com esta afirmação, formular juízos de valor moral.

15 Ver nota 6.

16 Cardoso Pires, José – De profundis valsa lenta.

17 Lobo Antunes, João- Egas Moniz. Uma biografia. Este livro fornece não só informação sobre o desenvolvimento da psicocirurgia mas também informações valiosas sobre o desenvolvimento da angiografia cerebral, sobre a dupla Egas Moniz – Almeida Lima e, como o título indica, sobre a vida do Nobel da Medicina. 

17 É necessário não esquecer o valor terapêutico da psicocirurgia e que na época em que estas técnicas foram desenvolvidas não existiam alternativas terapêuticas pois ainda não existiam medicamentos psicotrópicos.

18 Em “Auto da barca do inferno” o “Parvo” escapa ao inferno porque a sua condição intelectual não permite que seja responsabilizado pelos seus actos.

19 The doors, People are strange. Strange days (album de 1967).