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Há dois intelectos - o inconsciente e as emoções

2014
joaomachado11954@portugalmail.com


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Há dois intelectos - o inconsciente e as emoções

 

“ Minha alma é uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, timbales e tambores, dentro de mim.

Só me conheço como sinfonia”

Fernando Pessoa, Livro do Desassossego

 

Um dos pilares da Psicologia Freudiana centra-se na defesa da existência do inconsciente. Mas o que é o inconsciente e que exemplos da existência do inconsciente podemos encontrar no nosso quotidiano (além do exemplo clássico dos sonhos)?

Um aspecto no qual se poderá vislumbrar a presença do inconsciente é nos processos de aprendizagem e desenvolvimento das capacidades cognitivo-intelectuais (entre outras) pois, como defende o prof. António Damásio n’O livro da Consciência a prática (e mais prática) leva à automatização das acções dos músicos e dos atletas1.

Também poderemos compreender melhor este processo se pensarmos nos mais ilustres escritores cujos trabalhos podemos encontrar nas livrarias (e bibliotecas) pois a grande maioria destes autores além de terem lido muitos (mas mesmo muitos) livros também aprenderam várias línguas (muitos deles têm mesmo grandes carreira como tradutores). Para explicar este processo de desenvolvimento das capacidades linguísticas pegarei no caso do Tolstói e tentarei encontrar a razão da genialidade deste escritor russo2. O Conde Lev Nikolaevitch Tolstói aprendeu grego e hebraico para poder ler as sagradas escrituras no original e esta aprendizagem, juntamente com os numerosos livros que leu, contribuíram para o desenvolvimento das zonas cerebrais responsáveis pela linguagem e consequentemente permitiu que este autor pudesse escrever extraordinários livros com os quais nos podemos deleitar.

O desenvolvimento inconsciente das capacidades linguísticas também nos poderão ajudar a compreender porque é mais fácil aprender línguas estrangeiras vivendo nos países onde essas línguas são faladas3.

Penso, também, que o conhecimento destes processos de aprendizagem poderá contrariar a ideia vigente entre as pessoas que o talento é inato4 e demonstrar que o talento exige muito (e bom) trabalho.

 Já na literatura podemos encontrar referências a uma parte desconhecida da nossa mente como por exemplo a frase de Dostoievski que afirma que “há dois intelectos”5. Também Tolstói em Guerra e Paz utiliza as palavras mente e alma com significado diferente, sendo que nesta a obra a palavra mente encontra-se associada ao consciente e à racionalidade e a palavra alma encontra-se associada ao inconsciente e às emoções. Na mesma obra literária também podemos encontrar a afirmação que os seres humanos são guiados por necessidades e liberdades.

Mas qual papel das emoções e dos sentimentos na tomada de decisão? Serão todas a emoções conscientes? E os sentimentos? E qual a importância da memória?

Alguns filósofos defendiam que as emoções desempenham um papel fundamental na tomada decisão, tais como Nietzsche e Espinosa. Nietzsche em Humano, Demasiado Humano defende que um grande número de acções não obedece á lógica obedecendo, consequentemente, às emoções. Também Espinosa defende a importância da emotividade na tomada de decisão, sendo (na minha opinião) feliz a tradução da palavra latina affectus6 para afecções da alma, pois está provado científicamente7 que as emoções afectam (negativamente ou positivamente) a alma e consequentemente a tomada de decisão. Espinosa também defendia (na mesma obra) que uma emoção negativa só pode ser combatida por uma emoção positiva mais forte, o que demonstra que não podemos controlar o nosso estado de espírito.

Existem diversos casos de doentes neurológicos que nos ajudam a compreender a importância das emoções na tomada de decisão7. O prof. António Damásio em O Sentimento de Si relata-nos o caso de David, uma pessoa que sofreu uma encefalite que por sua vez impossibilitou este doente de ter memória. Este caso clínico foi estudado pelo grupo do investigador acima citado e uma das experiências consistia no seguinte:

  1. Promoveram o “encontro” do David com três pessoas. Uma que o tratava de forma antipática, outra que o tratava de forma neutra, e outra que o tratava simpaticamente;

  2. Perguntaram-lhe a qual das pessoas com quem ele teve estes “encontros” é que pediria ajuda.

David (sem se recordar das pessoas) respondeu que pediria ajuda à pessoa que o tratou com simpatia. Este caso clínico demonstra que emoções (pelo menos algumas delas) não necessitam de memória e que desempenham um papel fundamental em qualquer tipo de relação interpessoal, o que ajuda a perceber o porquê de muitas vezes nos desiludirmos com as pessoas e também permite conhecer melhor algumas técnicas de marketing.

 A variedade de emoções levou a que vários autores as tenham classificado e agrupado em alguns grupos, dos quais eu deixo aqui os dois exemplos dos quais tenho conhecimento. Espinosa defendia que as emoções são derivadas de alegria, tristeza ou apetites (ou desejos que podem ser definidos como apetites conscientes)8. O prof. António Damásio classifica as emoções em emoções primárias, emoções secundárias e emoções plenas. O primeiro grupo incorpora emoções que não exigem o conhecimento do eu e dos outros9 podendo-se afirmar que são emoções inatas ou instintivas. As emoções secundária agrupam as emoções que exigem o conhecimento do eu e dos outros, das quais se podem salientar o ciúme, a inveja e a vergonha10. As emoções plenas relacionam-se com o que vulgarmente se designa como estados de espírito dos quais se podem destacar o bem-estar e o mal-estar11.

Segundo o prof. António Damásio, os sentimentos permitem-nos conhecer as emoções (ou seja, os sentimentos são conscientes enquanto algumas emoções são inconscientes). Esta relação entre emoções e sentimentos podem-nos ajudar a compreender o porquê de as emoções não necessitarem de memória (como o caso do David bem exemplifica) e os sentimentos necessitarem de memória (José Cardoso Pires em De Profundis Valsa Lenta afirma que “sem memória não há sentimentos”). Estes exemplos sugerem que não é necessária  memória para que as outras pessoas (e não só) possam interferir com o nosso estado emotivo mas a memória é necessária para que se possa associar as emoções (e consequentemente os sentimentos) à sua causa. Esta ideia está de acordo com afirmação de William James que postula que as emoções interferem no nosso corpo (por exemplo: algumas emoções podem provocar um aumento de ritmo cardíaco) antes de nós termos consciência dessas mesmas emoções e também poderá ajudar a compreender melhor o António Lobo Antunes quando afirma que as emoções precedem as palavras.

Ao longo dos anos a psicologia tem tentado compreender a mente o humana e deste esforço ajudou a compreender a importância do inconsciente e das emoções na tomada de decisão. Mas será que algum dia permitirá compreender o motivo pelo qual a nossa mente não nos permite que tenhamos a consciência da inconsciência de que falava Fernando Pessoa12?

 

Notas

1 Um outro exemplo sobejamente conhecido deste fenómeno é a aprendizagem da condução de veículos.

2 Confesso que escolhi este exemplo porque adoro as obras de Tolstói.              

3 Relembro que as crianças aprendem a falar sem ir à escola e, aparentemente, sem esforço.

4 Um exemplo da propagação desta ideia poderá ser encontrado na frase comummente deita que defende que as capacidades futebolísticas do Cristiano Ronaldo se devem ao trabalho e que a elevada capacidade técnica de que Lionel Messi dispõe “nasceu com ele”. Se a primeira parte desta afirmação não merece contestação (é por demais evidente que o Cristiano Ronaldo trabalha arduamente para atingir as performances desportivas que lhe são reconhecidas) a segunda parte é resultado de ideias erradas que levam a crer que o talento “é uma dádiva de Deus” e desvalorizam o trabalho que Messi desenvolveu ao longo da sua formação desportiva.  

5 Dostoievski, Fiódor – O idiota.

6 Refiro-me á tradução do latim para português de Ética de Espinosa. Edição da Relógio d’água®.

7 Como se pode comprovar através da leitura dos livros do prof. António Damásio.

8 Espinosa, Bento – Ética.

9 Em exemplo destas emoções é medo. Como é facilmente compreensível, o rato tem medo gato por motivos biológico-instintivos e não por pensar que “aquele gato é mau”.

10 A frase do livro do Génesis: “Então foram abertos os olhos de ambos e reconheceram que estavam nus” espelha a importância do “conhecimento” na génese da vergonha. 

11 Não confundir com a depressão e a psicose maníaco-depressiva que são distúrbios psiquiátricos.

12 “Ter a tua alegre inconsciência,

       E a consciência disso”

       Fernando Pessoa, Ela Canta,  Pobre Ceifeira