PUB


 

 

Habilidades pessoais e sociais da pessoa com Síndrome de Down

2017
marinaalmeida@institutoinclusaobrasil.com.br
Consultora em Educação Inclusiva. Neuropsicóloga, psicopedagoga e pedagoga especialista

A- A A+
Habilidades pessoais e sociais da pessoa com Síndrome de Down

Começarei este artigo fazendo uma pergunta inicial ao leitor para evocar algumas reflexões.

"Por que mantemos pessoas com deficiência intelectual ou com síndrome de Down numa eterna infância?"

Sabemos que, ao aprisionarmos as pessoas com deficiência intelectual e ou síndrome de Down numa identidade infantilizada, estaremos limitando suas potencialidades, sua dignidade e sua autoestima para o resto da vida.

Quando uma pessoa é impedida de crescer, ela estará sempre à mercê do outro, não se individualizando, não assumindo responsabilidades. Este fato terá consequências em todas as áreas de seu desenvolvimento futuro, particularmente na linguagem - que permanecerá infantil - e no ingresso no mundo adulto, tornando-se uma pessoa dependente dos pais e da comunidade.

Os esforços atuais buscam um olhar mais direcionado para a pessoa do que para a deficiência, investindo em maiores oportunidades e necessidades de participação em diversos contextos sociais como família, escola, lazer, trabalho e outros. Um marco na trajetória das representações sociais da pessoa com deficiência é a mudança na conceituação. Concepções baseadas em enfoques médicos estão sendo substituídas por concepções funcionais.

Existem dois sinais claros dessa transição: o primeiro é a "Classificação Internacional de Funcionalidade" (CIF 2001), a qual incorpora mais oportunidades a respeito da avaliação e da definição dos suportes necessários para obter melhor qualidade de vida. O segundo é a aprovação da "Convenção Internacional de Direitos da Pessoa com Deficiência" (em 13 de dezembro de 2006 pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas - ONU), que em seu artigo I refere:

"Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas".

Para que qualquer ser humano construa sua autonomia precisará ter a oportunidade de desenvolver plenamente as suas competências pessoais e sociais dentro de um sistema inclusivo, que respeite as suas dificuldades e limitações, mas que potencialize a sua capacidade.

A principal habilidade pessoal é a auto-estima, ou seja, o autoconhecimento e a valorização pessoal. É conhecer e aceitar as nossas forças e as nossas fraquezas sendo que, para isso, precisamos construir a nossa identidade como indivíduo único.

A construção da identidade é um fenômeno muito complexo que pode começar quando do nascimento do bebê ou iniciar-se mesmo antes do nascimento. Essa construção será estruturada por meio de suas próprias experiências com as pessoas, através da auto-imagem percebida pelos outros. Ao nascer, um bebé tem um projeto de vida e um lugar imaginado e planejado na família pelos seus pais, os quais poderão estar conscientes ou inconscientes na mente dos seus genitores. Esta criança cresce em relação às expectativas dos pais e das demais pessoas que cuidam de si. Desta maneira, neste lugar de expectativas ela se identifica com a imagem que os outros têm de si; está será a primeira identificação que a sustentará para o advento do seu "Eu" pessoal. À medida que cresce, a criança se identifica com esta imagem que os pais e os outros lhe ofereceram e, em conjunto com a percepção interna de si, vai modelando sua própria identidade, e conhecer-se-á e reconhecer-se-á através desta identidade atribuída e construída, que poderá ser fantasiosa, amorosa, real, idealizada, distorcida, infantilizada, rejeitada, etc.

A criança vai percebendo se tem habilidades, se é desajeitada, simpática, sensível, tímida, amorosa, agressiva, etc; desta forma irá construindo uma imagem de si mesma, bem como a sua autoestima, as quais irão servir como base para enfrentar a vida, as suas relações afetivas, as relações no trabalho, e outras formas de relacionamento com a sua vida.

Quando a criança nasce com síndrome de Down, o conceito de deficiência abrange a criança, cria estigmas e induz um choque traumático do ideal de bebê normal fantasiado pelos pais.

A identidade é uma necessidade básica do ser humano. Poder responder à pergunta "Quem sou eu?" é tão necessário como afeto ou comida. Como disse Erich Fromm: "Essa necessidade de um sentimento de identidade é tão vital e imperativa que o homem não poderia ser saudável se não encontrasse algum modo de satisfazê-la". A identidade é uma necessidade afetiva (sentimento), cognitiva (consciência de si próprio e do outro como diferente) e ativa (o ser humano tem de tomar decisões fazendo uso de sua liberdade de vontade). A identidade é como um selo de personalidade. É evolutiva e está em continua mudança. Não se trata de uma característica dada, mas que se desenvolve e faz parte da historia de cada indivíduo.

Sabemos que muitas das limitações das pessoas com síndrome de Down não são devidas apenas à anomalia cromossômica, mas podem estar também relacionadas com a forma como a criança é percebida no seu contexto afetivo, familiar e social. Independentemente de um bebê ter sido acometido por uma síndrome ou uma doença orgânica, é uma criança que está ali, e precisará que suas necessidades afetivas sejam atendidas - brincar, interagir, estimular, cantar, etc. - pois continuará sendo um sujeito psíquico, com suas emoções e percepções, necessitando estabelecer um vínculo seguro com os pais e cuidadores.

Portanto, deficiência não significa incapacidade de demandar o seu próprio desejo, de ter necessidades psicoafetivas ou de ter impedimento para ser responsável e crescer.

Então teremos outra questão:

- E quando percebemos que este desenvolvimento acabou sendo capturado pela infantilização?

Quando a pessoa com síndrome de Down ingressa na adolescência a crise inicia-se. As demandas afetivas, sexuais, de ser um ser humano produtivo, criativo, social, independente e com autonomia começam a aparecer. Estabelecido o caos, ou a pessoa se mantém na infantilização da dependência dos pais ou segue o curso do desenvolvimento para ingressar no mundo adulto, fortemente associado à esfera do mundo do trabalho.

Na adolescência, pessoas com síndrome de Down experimentam frequentemente dificuldades em estabelecer e manter relações com amigos na escola, bem como com figuras de autoridade, e as suas habilidades sociais começam a falhar.

Poderíamos pensar que a suposta docilidade, afeição e cooperação interpessoal atribuídas às pessoas com síndrome de Down poderiam ser consideradas como respostas de concordância e submissão às exigências e solicitações do meio, moldadas por condições de aprendizagem específicas apreendidas no contexto familiar, escolar e social.

Contudo, será imprescindível que a pessoa com síndrome de Down tenha desenvolvido suas habilidades pessoais para conseguir manter-se motivado numa tarefa, querer crescer, ser responsável, desejar aprender e crescer, tendo seus próprios sonhos de futuro.

As habilidades sociais são comportamentos específicos que resultam em interações positivas e abrangem tanto comportamentos verbais quanto não-verbais, necessários para uma comunicação interpessoal efetiva. Estas habilidades são comportamentos aprendidos e socialmente aceitáveis que fazem com que a pessoa possa interagir com os outros, evitando ou fugindo de comportamentos não aceitáveis como a agressividade, autosabotagem e a destrutividade, que resultem em interações sociais negativas. Tais habilidades, se presentes no repertório de crianças e adolescentes, facilitam a iniciação e manutenção de relações sociais positivas, contribuindo para a aceitação de colegas, resultando, principalmente, em ajustamento escolar satisfatório.

As habilidades sociais também dependem das variáveis ambientais e do aspecto cognitivo e, ainda, da interação entre esses dois aspectos.

Podemos encontrar, em pessoas com síndrome de Down, déficits em habilidades sociais que podem se expressar sob três formas: na aquisição (quando a habilidade não ocorre); no desempenho (quando a habilidade é apresentada em uma freqüência inferior à esperada) e na fluência (quando a habilidade é apresentada com proficiência inferior a esperada).

Alguns fatores pessoais e ambientais podem estar relacionados com os déficits de habilidades sociais da criança, como: falta de conhecimento, restrição de oportunidade e modelo, problemas de comportamento, ausência de feedback, falhas de reforço, ansiedade interpessoal excessiva e dificuldade de discriminação e processamento.

Citaremos algumas habilidades sociais principais que podem variar, dependendo do estilo social da pessoa com síndrome de Down. Tais habilidades poderão apresentar-se através de comportamentos mais assertivo, passivo ou agressivo:

Comunicação - Comportamentos de interatividade com os outros através do diálogo, usar linguagem apropriada para idade, iniciar uma conversa, manter contato visual, fazer perguntas, elogiar, sorrir, cantar, etc.

Cooperação - Comportamentos de colaborar, pró-atividade, executar tarefas domésticas, manter o próprio quarto arrumado, guardar os brinquedos, enxugar a louça, pendurar roupa no varal, etc.

Asserção Positiva - Comportamentos que geram a estima dos demais, como aceitar idéias, pedir permissão, fazer e aceitar elogios, consolar, fazer e aceitar carinho, dar um beijo, fazer um convite, ter iniciativa, etc.

Desenvoltura Social - Comportamentos apropriados de iniciar e manter interações sociais para conversar, apresentar-se, fazer amigos, fazer convites, pedir informações, juntar-se a grupos, pedir ajuda, dizer que está doente, telefonar, usar ferramentas de comunicação da internet, etc.

Asserção de Enfrentamento - Comportamentos que expressam confiança em lidar com estranhos e situações novas, questionar regras consideradas injustas, relatar acidentes, pedir socorro, reconhecer seus erros, aceitar criticas, sair de situações de risco, sair de situações abusivas, sair de situações de brigas, sair de situações de abuso ou sedução sexual, etc.

Civilidade - Comportamentos que demonstram domínio sobre as próprias emoções por meio de reações abertas tais como: usar "apropriadamente" o tempo livre, responder "educadamente", cumprimentar, agradecer, pedir permissão, desculpar-se, despir-se em local apropriado, prestar atenção, evitar atender pedidos abusivos, usar tom de voz apropriado, dividir seus pertences, oferecer ajuda, etc.

Autocontrole - Comportamentos que demonstram domínio sobre as próprias emoções, por meio principalmente de reações encobertas, tais como: autocontrole de irritação ou raiva em situações de discussão, conflito, críticas, discordâncias e cooperação.

Desta maneira, a construção da identidade adulta está intimamente ligada à função de trabalhar, executar tarefas e se relacionar com pessoas, uma vez que a entrada no mundo do trabalho representa a entrada no mundo adulto e, para tal, este repertório de habilidades pessoais e sociais precisam ser desenvolvidas nas pessoas com síndrome de Down.

Este processo é difícil para todos e ainda mais para as pessoas com síndrome de Down. Para eles, como para os demais, ter uma atividade, trabalhar e ter um emprego significa ter uma forma de cobrir e atender às suas necessidades pessoais, econômicas e relacionais.

O trabalho não se prende apenas com o "fazer um trabalho" ou "ter um emprego", mas também com o "internalizar" o papel do trabalhador como um ser humano adulto capaz, reconhecendo o seu poder, seus valores, suas competências, assumindo as responsabilidades, deveres e direitos envolvidos e, por esse papel, aceitando os outros e fazendo parte da sociedade como um ser humano independente e autônomo.  

Portanto, precisamos considerar que há uma estreita relação entre o trabalho e a identidade adulta. Não basta olharmos somente para as atividades cotidianas, mas atentar e saber como foi transformada a identidade de "Eu" do sujeito humano, que passará a ser "Eu sou", o doutor, o jardineiro, o advogado, o professor, o ajudante, a recepcionista, o garçon, etc.

Isto posto, resta-nos uma outra questão:

- Qual o papel social e identidade profissional que uma comunidade ou sociedade é capaz de oferecer a uma pessoa com síndrome de Down?

Este é o desafio. Não temos resposta. A sua construção está alicerçada no processo da inclusão social, na desconstrução dos estigmas sociais, na mudança das posturas atitudinais, na elaboração e enfrentamento dos nossos estereótipos, preconceitos e no nosso próprio narcisismo.

Por isso, é muito importante para ambos pais e profissionais que ajudemos as pessoas com síndrome de Down na aquisição das habilidades pessoais e sociais, desenvolvendo sua segurança pessoal e expressividade social, e incentivando-os no desenvolvimento de suas competências pessoais e profissionais, que serão o caminho para ingressarem no mundo do trabalho e, consequentemente, no mundo adulto.

O ser humano, à medida que cresce dos pontos de vista físico e psicossocial, assume muitas e variadas habilidades para enfrentar e superar as situações rotineiras, os conflitos, os desafios e as crises impostas pela vida. Da mesma maneira, as pessoas com síndrome de Down também as irão enfrentar, necessitando de manejos funcionais para conseguirem fazê-lo com sucesso.

Pelo exposto, é necessário, se não urgente, que pessoas com síndrome de Down estejam inseridas num contexto familiar com um projeto de vida futura, e que a sua escolarização seja fundamentada num Currículo Funcional Natural com um Plano Individual de Ensino. Estes enfoques contemplam as habilidades pessoais e sociais da pessoa com síndrome de Down. Desta forma, poderão desenvolver suas competências e habilidades ingressando no mundo adulto.

 

Bibliografia:

AGUIAR, A.A.R.; DEL PRETTE, Z.A.P.; AGUIAR, R.G.; DEL PRETTE. Método JT na Educação Especial: resultados de um programa de habilidades sociais-comunicativas com deficientes mentais. Revista de Educação Especial, Santa Maria, v. 23, n. 37, p. 241-256, 2010.

ANGELICO, A.P.; DEL PRETTE, A. Avaliação do repertório de habilidades sociais de adolescentes com síndrome de Down. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 24, n. 2, p. 207-217, 2011.

ANHÃO, P.P.G.; PFEIFER, L.I.; SANTOS, J.L. Interação social de crianças com síndrome de down na educação infantil. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v. 16, n. 1, p. 31-46, 2010.

BELTRAME, T.S.; HERBER, V.; RIBEIRO, J. O processo de socialização de uma criança com síndrome de Down no sistema regular de ensino. Dynamis Revista Científica, v. 15, n. 2, p. 15-39, 2009.

BONOMO, L.M.M.; GARCIA, A.; ROSSETTI, C.B. O adolescente com síndrome de Down e sua rede de relacionamentos: Um estudo exploratório sobre suas amizades. Psicologia: Teoria e Pesquisa. v. 11, n. 3, p. 114-130, 2009.

DEL PRETTE, Z. A. P.; DEL PRETTE, A. Psicologia das habilidades sociais: terapia e educação. Petrópolis,: Vozes, 1999.

DEL PRETTE, Z. A. P. & DEL PRETTE, A. Psicologia das relações interpessoais: vivências para o trabalho em grupo. Petrópolis: Vozes, 2001.

DEL PRETTE, Z. A. P.; DEL PRETTE, A. Psicologia das habilidades sociais na infância: Teoria e prática. Petrópolis: Vozes, 2005.

DEL PRETTE, Z. A. P.; DEL PRETTE, A. significância clínica e mudança confiável na avaliação de intervenções psicológicas. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 24, n. 4, p. 497-505, 2008.

MONTOBBIO, E & LEPRI, C. Quem eu Seria se Pudesse ser - A condição adulta da pessoa com síndrome de Down. Campinas, SP, Fundação síndrome de Down, 2007.