Livre-arbítrio versus determinismo no filme Cidade de Deus
Titulo: Cidade de Deus
Realizador: Fernando Meirelles, Kátia Lund
Ano: 2002
País: Brasil
Género: Drama
A Busca por conhecer o homem em sua totalidade e a origem do
seu comportamento faz com que vários teóricos argumentem sobre inúmeros temas
com o desejo de justificar ou até prever o comportamento. Na tentativa de criar
uma ciência do comportamento, o indivíduo passa a questionar se a realidade
comportamental humana parte da capacidade da escolha que é o livre-arbítrio ou
da determinação unicamente feita pela hereditariedade e pelo ambiente,
intitulando-o de Determinismo (BAUM, 2006).
Entende-se por Determinismo o estudo científico do
comportamento, onde o objeto de análise é ordenado, podendo ser explicado,
previsto e até mesmo controlado se houver os dados e os meios necessários (BAUM,
2006). O Livre-arbítrio percebe o comportamento não só a relação entre
hereditariedade e ambiente, mas como algo a mais que possibilita no indivíduo a
capacidade de escolher (BAUM, 2006).
Com essas definições se faz possível analisar de forma
crítica o filme "Cidade de Deus". Este filme conta a história de um conjunto
habitacional de mesmo nome, baseado no livro escrito por Paulo Lins que faz a
narração a partir do olhar de um jovem morador. A comunidade presente no filme
cresce desordenadamente em meio à violência e ao tráfico de drogas. É nesse
contexto que a identidade de cada indivíduo vai se construindo e a forma como
cada um traça os seus caminhos e escolhas causa um impacto nas duas teorias
citadas acima.
Para que o trabalho se torne claro e compreensivo, dois
personagens são trazidos do filme, Dadinho (Zé Pequeno) e Buscapé. Ambos
cresceram em um mesmo ambiente, vendo o Trio Ternura praticar furtos e
distribuir bens roubados em troca de proteção pela comunidade. Os três ladrões
eram Cabeleira, Alicate e Marreco (irmão de Buscapé). Mas o que torna Buscapé
diferente de Dadinho é a forma como cada um compreende aquela realidade
vivenciada. É perceptível no filme a insatisfação de Buscapé ao ver seu irmão
realizando atos ilícitos. Mas a percepção de Dadinho (Zé Pequeno) é diferente;
ele percebe no trio um papel de super-herói da comunidade, pois distribuem gás
para todos, recebendo em troca o respeito das pessoas e conferindo o acesso
fácil ao dinheiro. Todos estes fatores provocam uma idealização de sujeito e
desenvolvem em Dadinho o potencial de ser igual ao trio. A potencialidade em
Dadinho torna-se real quando lança a proposta aos três de fazerem um assalto ao
motel.
Diante da realidade traçada e vivenciada por Dadinho
poder-se-ia argumentar e compreender sob uma óptica determinista, percebendo
assim a responsabilidade do ambiente em sua inclinação a delinquência. Por viver
em uma comunidade pobre, testemunhar a miséria e negligência dos direitos
básicos, o fato de ver a prática de crimes e violência, todos esses fatores
podem ser compreendidos como determinantes para que a sua história se torne
igual à do trio ternura. Hobbes (apud BRITO, 1993. 38 p.) defende a ideia de
liberdade conciliada com a necessidade, mas que não é a liberdade defendida pelo
livre-arbítrio e sim a possibilidade do homem fazer o que desejar sem que haja
um impedimento. Faz-se perceptível a compatibilidade dessa tal liberdade com o
determinismo (BRITO, 1993). Hobbes (apud BRITO, 1993. 38 p.) afirma ainda que
“as ações, que os homens efectuam voluntariamente, no entanto derivam de causas
e, essas, de outras causas cujas causas numa cadeia contínua... procedem da
necessidade”. Entender-se-ia diante deste contexto que as práticas realizadas
por Dadinho seriam a busca por sanar suas necessidades, mesmo que essa busca
transgredisse a lei e os valores da sociedade.
A construção da identidade de Buscapé poderia ser percebida
sob uma perspectiva do livre-arbítrio, pois cresceu no mesmo ambiente e sob as
mesmas influências às quais Dadinho foi exposto. Contudo, havia algo além desses
estímulos que provocou a construção de uma história diferente. Esse algo a mais
que permeia o jovem poderia ser caracterizado como o fenômeno intitulado de
invulnerabilidade que foi estudado entre as décadas de 1970 e 1980, termo este
que foi posteriormente substituído por resiliência, o qual consiste na
capacidade que o indivíduo tem de permanecer saudável mesmo sendo exposto a
severas e duras adversidades (BRANDÃO; MAHFOUD; NASCIMENTO, 2011). Dennett (apud
MONTEIRO, 2014) afirma que a liberdade pode ser definida de inúmeras formas e em
diferentes contextos, mas ressalta que a liberdade só existe se houver escolhas
para diferentes ações. Compreende-se que Buscapé teve a liberdade de escolher
como fazer a trajetória da sua vida de forma diferente do contexto que ele
estava inserido.
Conclui-se que em um mesmo contexto, mas com sujeitos
diferentes, se fez possível a caracterização das duas teorias, comprovando que
não há uma verdade absoluta, mas que as perspectivas e traços esperados podem
ser apresentados tanto validando uma corrente quanto a outra. Compreende-se
ainda que não haja a necessidade de separá-las mas sim associa-las para um
melhor entendimento da influência do ambiente, da hereditariedade e da
subjetividade do sujeito. Diante da necessidade de conciliar o determinismo e o
livre-arbítrio surge, portanto, a teoria do Compatibilismo: a relação de agentes
físicos, químicos, biológicos, psicológicos e ambientais sobre o comportamento,
onde, mesmo perante estas influências, o indivíduo é capaz de fazer escolhas e
ter controle sobre alguns comportamentos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Livre-arbítrio. Tradução, organização, introdução e notas Nair de Assis
Oliveira. 2ª Edição. São Paulo. Paulus. 1995. Disponível em: <https://sumateologica.files.wordpress.com/2009/07/santo_agostinho_-_o_livre-arbitrio.pdf>
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BAUM, William M. Behaviorismo: Definição e História.
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2ª Edição. São Paulo. Editora Artemed. 2006. 17-31 p. Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=8EV1F9tCw1AC&pg=PA25&lpg=PA25&dq=o+livre-arb%C3%ADtrio+e+a+teoria+do+comportamento&source=bl&ots=Q33J747Ky_&sig=bddaXP9Mqa0I6Qy1cx3HJ9rzvzE&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwjP25LrrJjMAhVJhJAKHcJZBTEQ6AEIQzAG#v=onepage&q=o%20livre-arb%C3%ADtrio%20e%20a%20teoria%20do%20comportamento&f=false>.
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MONTEIRO, Bárbara Viviana Moreira. Livre-arbítrio e
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