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No encalço do bem-estar e da realização humana: do desencanto com o progresso e com a prosperidade à tentativa de redefinição do projecto de uma possível pós-modernidade

2014
ritabarros@fpce.up.pt
PhD em Educação. Investigadora integrada da RECI (Research Unit In Education and Community Intervention) e membro colaborador do CIIE (Centro de Investigação e Intervenção Educativas da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto).

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No encalço do bem-estar  e da realização humana: do desencanto com o progresso e com a prosperidade à tentativa de redefinição do projecto de uma possível pós-modernidade

 

O presente da humanidade caracteriza-se por um processo de profunda e vertiginosa mudança com impacto na forma como o homem (pós) moderno concebe o mundo e olha para si mesmo. A questão do bem-estar, enquanto finalidade última da existência humana, torna-se cada vez mais pertinente, particularmente no domínio das ciências humanas, e ascendeu ao domínio dos ideais superiores. Embora a maioria das pessoas se diga feliz, de acordo com o World Database of Happiness, a verdade é que a depressão e a ansiedade são processos patológicos cada vez mais frequentes, de tal forma que a OMS aponta a depressão como a grande “epidemia” em 2025.

A sociedade de hiperconsumo, apesar de exaltar os referenciais do bem-estar, da harmonia e do equilíbrio, funciona com base num padrão de desorganização psicológica que reequaciona todos os processos internos e subjetivos do sujeito. Em apenas algumas décadas assistimos a uma nova hierarquia de objetivos e a uma nova relação do indivíduo com o mundo, com o tempo, com os outros e consigo mesmo (Lipovetsky, 2006; Santos, 2003). Os sintomas da decadência da vida de hoje são o reflexo da crise da existência (pós) moderna, pressentida por Nietzsche (1994), em que a ciência, chegada ao seu limite ilusório, deixaria aos homens um mundo gelado (Domenach, 1995). Na sua conceção pessimista, a hipertrofia do progresso e do poder económico e o domínio de todo o espaço social, resultaria na auto-destruição do ser humano, reduzindo a humanidade a uma massa indiferenciada de indivíduos inoperantes e destituídos de vontade.

A abordagem científica demitiu-se das questões decisivas para o futuro da humanidade. As sociedades ocidentais, que a impulsionaram, possuem uma visão limitada do mundo e de si mesmas (Santos, 2003). Enfatizaram um dogmatismo científico, em que a verdade é alcançada pelo sucesso técnico, e negligenciaram o sentido do ser e do mundo, no qual a ciência, enquanto facto cultural, também se integra (Pinto, 1992). O desencanto do homem atual resulta da tomada de consciência do hiato existente entre o progresso técnico-científico e a perfeição e felicidades humanas.

O projecto de modernidade associa-se à rutura do indivíduo com os pressupostos e padrões religiosos existentes e à eliminação das questões meta-físicas, passando o homem a ser referenciado à sua essência, à sua autonomia e à sua singularidade, totalmente independente de Deus. A questão central da modernidade traduz-se pela dupla rutura em relação ao poder real e ao poder divino. Ela separou a religião da sociedade civil e os homens orientaram a sua fé para a ciência e para o progresso.

“A partir do momento em que os ideais, as transcendências às quais se confiava o cuidado de conduzir os povos à liberdade e à felicidade enfraquecem, cada indivíduo, cada grupo, se depara com esta tarefa: situar-se como fundamento da sua própria representação, da sua própria missão” (Domenach, 1995, 293). A ética individualista liberal é incapaz de responder às exigências da situação atual na medida em que impossibilita o homem, face a problemas globais como as catástrofes ecológicas, as calamidades ou as guerras mundiais, de ser responsabilizado. Todos têm responsabilidade, mas ninguém a tem em particular.

O desenvolvimento desenfreado do capitalismo, a que assistimos de forma impotente, faz crescer mais necessidades nos sujeitos (Lipovetsky, 2006) que, só depois de estarem satisfeitas, é que possibilitam a sua emancipação e a conquista da liberdade. Ora, este objetivo torna-se cada vez mais distante e isolado. Assim, a equacionar-se um novo paradigma da pós-modernidade, perspectiva-se o aparecimento de um novo princípio da realidade, pautado pelo sentido social do trabalho e não pela sua necessidade. A emancipação do potencial e qualidades humanas transforma a dimensão do ter pela dimensão do ser.

O projecto de modernidade, concebido no quadro cultural do iluminismo, traduzia-se na vontade de realização dos ideais de autonomia, identidade, solidariedade e subjectividade, através da constituição de um estado de cidadania mundial onde fosse possível desenvolver todas as potencialidades da espécie humana (Kant, 1984). Nele o homem deixaria o reino da necessidade para alcançar o reino da liberdade (Marx, 1989). O movimento intelectual do iluminismo pretendia libertar o pensamento do rígido absolutismo, orientando-o estritamente pela razão. Ao sistema do iluminismo encontra-se subjacente a ideia de Rousseau de que o Homem era por natureza bom. No entanto, “A mundialização e a tecnização da guerra entre nações terminaram com o «estado de graça» do iluminismo, destruindo, de forma impiedosa e definitiva, a crença na correlação (...) entre progresso técnico-científico e perfeição humana” (Pinto, 1992, 70).

A par da regulação, um dos pilares do projeto da modernidade é o da emancipação, constituído por três lógicas de racionalidade (Santos, 1994). Habermas defende a ideia de que só numa sociedade emancipadora dos seus membros é que a comunicação entre os demais pode estar isenta de dominação de uns para com outros (Pinto, 1992). As lógicas de racionalidade, subjacentes à emancipação, têm como função guiar a vida prática do ser humano.

A racionalidade cognitivo-instrumental, regulada pelo princípio do mercado e direccionada para o trabalho e produtividade, fomentou o imenso progresso material do mundo europeu e norte-americano. Contudo, a realização do homem passa por outras dimensões que têm vindo a ser claramente estranguladas. A racionalidade prático-moral, subjacente aos princípios de cidadania e promotora da solidariedade humana é uma destas dimensões. Ela encerra os princípios da ética e do direito e liga-se ao princípio de Estado, na medida em que a este compete a regulação ética e jurídica dos processos de produção capitalista. A racionalidade estético-expressiva completa o conjunto, que se pretende equilibrado para que o indivíduo possa dar uma expressão máxima às suas potencialidades e ser feliz. Esta racionalidade articula-se com a comunidade ao nível da sua regulação e está implicada nos processos de procura da felicidade e de emancipação da subjectividade. Assim, a realização humana tenta reconquistar a sua interioridade e subjectividade. “Com a afirmação da interioridade, o indivíduo emerge do emaranhado das relações de troca e dos valores de troca (...) e entra numa dimensão essencialmente diferente (a da sua própria subjectividade)” (Marcuse, 1977, 17-18).

A partir dos anos 60 e especialmente nos anos 80 e 90, emergiu o desencanto com as ideologias de massas. A modernidade que aspira à totalidade, ao universal, sem limitações espacio-temporais, começa assim a compreender-se, a duvidar de si própria. As sociedades capitalistas, determinadas a levar avante o projeto de modernidade com todos os seus excessos inglórios no domínio cognitivo-instrumental, são sistematicamente confrontadas com a sua ineficácia no cumprimento das promessas que recaíam no bem-estar e felicidade global. A hipervalorização do mundo das coisas resultou na desvalorização do mundo dos homens e as mudanças socioeconómicas e culturais em que o indivíduo (pós) moderno se encontra mergulhado reavivaram a necessidade das ciências humanas e das ciências da educação terem um papel de relevo na compreensão do bem-estar, razões pelas quais a investigação científica assistiu, na viragem do século, a um exponencial interesse nas questões do bem-estar e da felicidade humana.

No projecto de modernidade, o incremento da abordagem científica e do crescimento técnico fizeram com que o homem transformasse a sociedade num campo de observação e análise, segmentado pela autonomização e especialização das ciências sociais e humanas, num desenvolvimento exponencial, jamais registado na história da humanidade. Estas tendências observadas nas ciências humanas revelam-se pelos compostos do prefixo auto, ampliados nos últimos tempos. O prefixo auto deriva do termo autonomia segundo o qual um estado ou uma pessoa se rege de acordo com os seus princípios e leis (Domenach, 1995). A cooperação, a reciprocidade, a promoção de uma reputação que enfatize os atributos únicos e excepcionais que são valorizados pelos outros, são condições que podem mitigar a destruição subjacente à competição das sociedades modernas (Buss, 2000).

O interesse da investigação dos nossos dias pelos constructos de ordem pessoal poderá ser interpretado como uma introspecção do ser humano na tentativa de compreensão do sentido da sua existência ou como a jornada na busca da felicidade e do bem-estar.

Alguns autores da pós-modernidade (e.g. Santos 1994), ao não conseguirem vislumbrar uma solução para o atual estado das coisas, procuram um registo paradigmático diferente, imaginando uma situação radicalmente nova. A lógica de uma pós-modernidade de resistência assenta em mini-racionalidades que, ao invés de fazerem parte de um todo, constituem-se entidades globais presentes em múltiplas partes. Este é um caminho que me desafia do ponto de vista reflexivo e, como tal, deixo o convite ao leitor no sentido de o equacionar a partir do seu quadro de referência e da sua orientação ideológica, qualquer que ela seja.

 

Bibliografia:

Buss, D. (2000). The Evolution of Happiness. American Psychologist, vol. 55, nº 1, 15-23.

Domenach, J. (1995). Abordagem à Modernidade. Lisboa: Instituto Piaget.

Kant (1984). Crítica da Razão Prática. Lisboa: edições 70.

Lipovetsky, G. (2006). A Felicidade Paradoxal: Ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo. Lisboa: Edições 70.

Marcuse, H. (1977). A dimensão estética. Lisboa: Edições 70.

Marx (1989). Manuscritos Económico-Filosóficos. Lisboa: Edições 70.

Nietzsche, F. (1994). A Origem da Tragédia. Lisboa: Guimarães Editora.

Pinto, F. C. (1992). Leituras de Habermas: Modernidade e emancipação. Coimbra: Fora do Texto.

Santos, B. S. (1994). Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. Porto: Edições Afrontamento.

Santos, B. S. (2003). Conhecimento Prudente para uma Vida Decente: Um discurso sobre as ciências revisitado. Porto: Edições Afrontamento.

Rita Barros

Rita Barros é Professora Coordenadora do Instituto Piaget, sendo responsável pelas unidades curriculares da área científica da Psicologia. É Licenciada e Mestre em Psicologia (especialização em Psicologia e Saúde) pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Porto. Possui Diploma de Estudos Avançados em Desenvolvimento Pessoal e Intervenção Social pelo Departamento de Psicologia Evolutiva e da Educação da Universidade de Valência. É Doutorada em Ciências da Educação pela Faculdade de Ciências da Educação da Universidade de Santiago de Compostela. É Membro Efectivo da Ordem dos Psicólogos, com larga experiência profissional como psicóloga, quer em contexto hospitalar e de clínica privada, quer ao nível da intervenção comunitária. É investigadora integrada da RECI (Research Unit In Education and Community Intervention) e membro colaborador do CIIE (Centro de Investigação e Intervenção Educativas da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto).

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