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Os devaneios burgueses e a consciência popular - um breve olhar psicológico

2016
simaopedromata@gmail.com
Licenciado e Mestre em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP). Membro efectivo da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP). Psicólogo na Norte Vida - Associação para a Promoção da Saúde e Investigador externo do Centro de Ciências do Comportamento Desviante (CCCD) da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. Os seus interesses de investigação são o fenómeno droga, a exclusão social, a marginalidade urbana e a intervenção psicológica nos comportamentos adictivos. É ainda membro do Serviço de Consulta Psicológica nos Comportamentos Adictivos (SCPCA) da FPCEUP e estudante de Doutoramento do Programa Doutoral em Psicologia na mesma Instituição.

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Os devaneios burgueses e a consciência popular - um breve olhar psicológico

Basta que realizemos uma mera observação superficial e pouco implicada sobre a nossa vida quotidiana, sedimentada nas nossas deslocações aos cafés, aos supermercados, aos restaurantes e a outras “zonas” da nossa vida social e comunitária, para facilmente nos apercebermos da existência de diferenças substanciais entre os comportamentos/funcionamentos psicológicos característicos das classes abastadas e os das camadas mais populares e humildes da nossa Sociedade. Charlotte Buhler (1962, p. 349) refere nesse sentido que: “Como os psicólogos sociais hoje[1] constantemente acentuam, o destino de cada qual é já fortemente condicionado pelo acaso da sua pertença a um grupo, ainda antes de ter oportunidade de tomar uma posição autónoma em face dele ou de explicar sem peias a sua peculiaridade”. Podemos assim dizer que, até certo ponto, a estrutura social de pertença dos indivíduos se apresenta como limitador ou balizador do seu funcionamento mental o que nos leva a afirmar, por consequência, a existência de um conjunto de traços de caráter, de um mundo interno e psicológico típico de cada sujeito proveniente de estruturas sociais distintas.

É assim que numa certa psicologia burguesa, típica das classes abastadas e dominantes da nossa sociedade, o sujeito se apresenta sobrecarregado de problematizações mínimas, pífias e constantes sobre o seu vivido pessoal, sobre o “sentido da vida”, particularmente e essencialmente da sua. É o espaço da hiperindividualidade em todo o seu esplendor e êxtase. Esta psicologia burguesa solta-se, portanto, das dimensões concretas e vividas do sujeito, porque controladas pelas suas próprias condicionantes estruturais de classe, desde logo pelo fator económico, para se centrar e focar numa alteridade constante de si - algo que é a matriz, aliás, de grande parte do seu funcionamento neurótico e desajustado. Tratam-se, por isso, de verdadeiros devaneios burgueses. E são esses devaneios que trazem o sujeito burguês à terapia psicológica. E é aqui, no espaço da consulta, que se constata que o homem burguês manifesta, então, não um Eu que vive o seu presente mas aquele que pensa o seu vivido passado e que se pensa e interpreta sistematicamente e obsessivamente, procurando um sentido para a sua existência.

Tomemos como exemplo a neurose de forma a concretizar mais aquilo que quero dizer. De acordo com Gauquelin e Gauquelin (1978, p. 356-357) no Dicionário de Psicologia, a neurose pode ser definida como uma: “Perturbação grave do psiquismo que provoca desordens do comportamento. No entanto, contrariamente ao que se passa na psicose, a neurose não é uma doença constitucional: o sujeito está consciente do seu estado e deseja vivamente curar-se”. Se tomarmos como exemplo as propriedades e características de um quadro neurótico clássico a partir desta definição constatamos que, apesar da sua dinâmica e funcionamento particulares, ele implica uma consciência apurada e refinada do sujeito sobre si, bem como do exercício – até certo ponto exagerado e doentio – da sua subjetividade. É, aliás, com base nessa subjetividade que o neurótico constrói sobre si próprio um determinado “mito individual”, no sentido lacaniano do termo, isto é, uma “estrutura subjetiva básica que confere ao sujeito uma matriz para tentar explicar quem ele é e para quê ele serve no mundo” (Carreira, 2001, p. 58).

Uma componente importante desse mito individual do neurótico reside, portanto, na crença individual de que a origem e o fundamento do seu mal-estar está na “raiz” da sua ontologia, nas suas experiências infantis mal resolvidas, às quais o acesso, através da terapia, corresponderá a uma apropriação consciente desse material recalcado e, por consequência, a um alívio dos sintomas neuróticos. Tal como se encontra descrito e tipificado do ponto de vista psicanalítico, é atribuído ao sujeito neurótico uma fixação desmesurada no passado, tornando-se o neurótico uma vítima deste, impedido-o de se projetar no futuro e que experiencia, de modo mais ou menos grave, uma sintomatologia no presente que corresponde a esse mesmo quadro clínico. Se voltarmos novamente a Gauquelin e Gauquelin (1978) a propósito do conceito de Neurose, verificamos justamente a fixação no tema do passado como base explicativa e compreensiva do neurótico: “As neuroses caracterizam-se por conflitos intrapsíquicos, encontrando as suas raízes, o seu suporte, na história infantil”. Contudo, a posição de Horney (1979) é clara acerca da sua etiologia, considerando a centração no passado do sujeito uma “espécie de fascínio unilateral”, opinião aliás que também partilhamos: “Semelhante realce da situação actual não implica repudiarmos a ideia de que, na essência, as neuroses surgem de experiências precoces, embora diverjamos de muitos psicanalistas por considerarmos injustificado concentrar a atenção exclusivamente na infância, deixando-nos arrastar por uma espécie de fascínio unilateral e entendendo que as reacções ulteriores não constituem, em última análise, senão mera repetição de outras prévias.” (p.7).

Voltaremos agora àquilo a que apelidamos como psicologia burguesa. O capital económico do homem burguês, que se traduz por consequência em capital social e simbólico, faz que com recorram aos serviços privados de psicologia de forma assídua pois à mínima angústia e frustração (sentimentos e emoções muitas das vezes bem típicas de qualquer processo de desenvolvimento pessoal dito “normal”), fazem dali uma elaborada construção e crise neurótica que, creem eles, deverá ser observada, diagnosticada e intervencionada por um profissional “psi”. A credibilidade que depositam nos discursos terapêuticos dos “psis” é enorme, sendo parte constitutiva desse “mito individual”, como se os psicoterapeutas fossem os únicos Seres dotados de uma sabedoria única, capaz de ler, descodificar e interpretar o seu mundo interior. Fruto dessa crença, assistimos, não raras vezes, a uma verdadeira alienação face à responsabilização dos seus próprios problemas. E essa alienação é também, aliás, parte constitutiva dos seus devaneios neuróticos.

Nos antípodas deste funcionamento burguês, temos a psicologia de massas ou aquilo a que também designamos como a psicologia popular. Contrariamente à psicologia burguesa, que se caracteriza sobretudo pelo desprendimento do indivíduo face ao Todo Social - desde logo ao nível Local como o bairro, a vizinhança, o grupo desportivo local e outras associações de base - esta centra-se numa forte ligação ao Todo Social, às coletividades locais, a uma atrofia do individualismo face à emergência de uma convivência comunitária. Quais as consequências psicológicas deste modo de vida para o “homem comum” (permitam-me a expressão…), isto é, não-burguês? Esta psicologia popular está, portanto, mais focada no imediatismo e na espontaneidade do self do que a psicologia burguesa. Self e Eu apresentam-se como realidades muito próximas do funcionamento do homem não-burguês, o que explica a espontaneidade dos seus atos, a pouca defensividade psicológica que, vistos a olho nu e num prisma algo ingénuo, podem convocar leituras erróneas, nomeadamente classificando-as como condutas brejeiras ou, simplesmente, de má educação.

A psicologia popular não está centrada, por isso, fruto da sua origem estrutural de Classe, no passadismo (a fixação no passado, onde estão, como diz certa psicologia burguesa, as “raízes dos problemas atuais” ou “os conflitos internos mal resolvidos”, explicativos do quadro neurótico) mas antes no imediatismo, que pesa aliás fortemente nas suas vidas. A falta de recursos económicos, sociais e simbólicos que os fazem afastar, de forma reiterada, da cidade central e dominante, leva-os a refletir sobre as suas vidas, não numa perspetiva de subjetivação simulada que procura uma satisfação narcísica de auto-valorização, mas numa atitude de preocupação concreta e objetiva. Ao “mito individual” do neurótico burguês contrapõem-se a consciência de classe do homem-comum, o seu imediatismo e “presentismo”, a vivência do seu quotidiano em torno de interrogações do género: “Como vou arranjar dinheiro para o passe dos transportes públicos este mês?”, “Como vou viver sem a medicação que terminou pela falta de dinheiro?”, “Como vou arranjar dinheiro para compar a alimentação?”, enfim, “Como vou sobreviver hoje, amanhã, este mês…?”. Posto isto, qual o espaço mental neste “homem comum” para a manifestação de grandes devaneios neuróticos (qual luxo!) quando as tarefas do presente são marcadas por elevada urgência?

Em guisa de conclusão, direi que estas breves considerações sobre a origem social dos “problemas mentais” carecem de um maior aprofundamento e atenção, algo que o espaço que é dedicado a um texto de opinião não permite. Mas o que aqui se referiu têm como propósito principal o combate - ideológico, técnico e científico - de certas tendências internalistas que ainda vigoram e marcam a Psicologia contemporânea. Importa esclarecer que a mente humana não apresenta uma reificação, não é dotada de propriedades formais que a tornem passível de ser “medida”, “calculada” ou, muito menos, isolada dos contextos em que a mesma é produzida. Sabemos que, ao longo da história da Psicologia, todo o exercício de fechamento da mente sobre si própria, teve como consequência, propositada ou não, uma desvalorização da consciência (essa “caixa negra” que alguns quiseram tanto eliminar ou retirar da alçada dos estudos psicológicos…) face ao que se passava do ponto de vista social, político e até mesmo económico nas nossas Sociedades. Expurgar da mente humana as suas bases sociais e culturais foi tendência dominante de uma certa Psicologia mais orientada para as classes dominantes - e, portanto, burguesas - do que para a consciencialização, emancipação e resolução dos problemas das classes dominadas e desfavorecidas da nossa Sociedade.

 

Referências bibliográficas

Carreira, Alessandra (2001). O mito individual como estrutura subjetiva básica. Psicol. cienc. prof. [online]. vol.21, n.3, pp.58-69. ISSN 1414-9893.  http://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932001000300008

Gauquelin, M. & Gauquelin, F. (1978). Dicionário de psicologia. Lisboa: Editora Verbo

Horney, K. (1979). A Personalidade neurótica do nosso tempo. Lisboa: Editora Veja

Buhler, Charlotte (1962). A psicologia na vida do nosso tempo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian

 

 

[1] Leia-se, na altura: anos 60, século XX.

Simão Mata

Simão Mata é psicólogo, especialista em psicologia clínica e da saúde e membro efetivo da Ordem dos Psicólogos Portugueses. A sua prática profissional é realizada na Norte Vida – Associação para a Promoção da Saúde, uma IPSS que se foca na intervenção psicossocial com sujeitos em situação de vulnerabilidade social. Exerce atividade clínica em contexto hospitalar no Hospital Senhor do Bonfim (Grupo Trofa Saúde), integrando uma equipa multidisciplinar de Saúde Mental. Colabora ainda como psicólogo clínico no Gabinete Relaction – Psicologia, Terapia Familiar e de Casal.

É ainda investigador externo no Centro de Ciências do Comportamento Desviante (CCCD) da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto tendo-se dedicado, nos últimos anos, ao estudo do fenómeno droga, da exclusão social, da marginalidade urbana e da intervenção psicológica nos comportamentos adictivos.

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