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Os perigos de uma “ortopedia mental”

2017
simaopedromata@gmail.com
Psicólogo, especialista em psicologia clínica e da saúde e membro efetivo da Ordem dos Psicólogos Portugueses. A sua prática profissional é realizada na Norte Vida – Associação para a Promoção da Saúde, uma IPSS que se foca na intervenção psicossocial com sujeitos em situação de vulnerabilidade social. Exerce atividade clínica em contexto hospitalar no Hospital Senhor do Bonfim (Grupo Trofa Saúde), integrando uma equipa multidisciplinar de Saúde Mental. Colabora ainda como psicólogo clínico no Gabinete Relaction – Psicologia, Terapia Familiar e de Casal. É ainda investigador externo no Centro de Ciências do Comportamento Desviante (CCCD) da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto tendo-se dedicado, nos últimos anos, ao estudo do fenómeno droga, da exclusão social, da marginalidade urbana e da intervenção psicológica nos comportamentos adictivos.

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Os perigos de uma “ortopedia mental”

Paira ainda, infelizmente, na cabeça de alguns psicólogos a crença miraculosa, e até certo ponto ingénua, de que a intervenção psicológica se constitui uma panaceia para todos os mal-estares do Homem contemporâneo. Propagandeiam-se consultas, vendem-se de modo desenfreado cursos de formação em determinados modelos terapêuticos, realizam-se conferências e palestras a toda a hora e momento com vista a inculcar ideias miraculosas sobre essa coisa enigmática, para eles tão fácil e certa, chamada mudança.

Sabemos, há muito tempo, que a intervenção psicológica não pode ser dissociada do contexto social, económico, cultural e político mais amplo da qual ela faz parte. Até aqui, nada de novo. De facto, vivemos tempos em que a escuta atenta e implicada do Outro esbarra com a rapidez do nosso quotidiano profissional, estando o nosso trabalho de psicólogos condicionado por uma lógica neoliberal do “escuta os mais que puderes” e não do “escuta bem os que puderes”. Mas importa que o psicólogo tenha a devida consciência de que aquilo que faz é e sempre será produto das conjunturas estruturais que determinam e marcam de forma indelével aquilo que pontualmente vai fazendo no seu dia-a-dia nos gabinetes de consulta. Não há, por consequência, nenhuma prática psicológica que se julgue inócua e imparcial como alguns querem fazer crer a todo o custo.

Mas dizia que existe uma proposta muito evidente sobre uma certa conceção mágica da intervenção psicológica. Essas “propostas miraculosas” têm tanto de ilusórias como de desadequadas se, evidentemente, forem levadas ao extremo. É precisamente sobre os perigos desse “extremismo” que importa refletir e sobre o qual nos devemos acautelar durante a prática psicológica. O sofrimento mental apresenta-se, nessas conceções mágicas, como se de uma torção se tratasse - é algo que se “deslocou” do que estava direito, cabendo ao psicólogo o uso da “ciência enigmática”, do modelo teórico mais adequado para “levar ao sítio” aquilo que se entortou. O psicoterapeuta, visto assim, é um “endireita da mente”, espécie de ortopedista que não laborando no corpo exerce a sua ação interventiva sob a mente humana. Se o psicólogo radicaliza um trabalho psicoterapêutico assente exclusivamente neste domínio instrumental da intervenção psicológica mais do que propriamente alguém que, através da relação, das suas dinâmicas processuais, procura a compreensão do seu paciente e, sobretudo, o sentido e os significados que estão subjacentes à sua dor mental, a probabilidade do seu trabalho ter frutos é manifestamente reduzida e limitada.

Foi, neste sentido, que Michel Foucault referiu um dia que os psicólogos não podem ser os ortopedistas da mente. Pois não, mas mais uma vez aquilo que Foucault nos ensina acaba por resistir ao filtro do tempo. Trata-se, por vezes, de uma ação ortopédica que se exerce à guisa de um moralismo disfarçado sobre os pacientes que, afirmam eles, tratam e curam. Esta espécie de “ortopedia” que está subjacente a uma certa intervenção psicológica maniqueísta traduz-se, perigosamente, numa desresponsabilização mútua na relação terapêutica: ao psicólogo resta-lhe o domínio dos modelos teóricos e das técnicas de subjacentes ao mesmo, as suas variantes, os seus artigos, os manuais que as explanam, assumindo-se na relação como um expert relativamente aos “males” do paciente; e, ao paciente, resta-lhe, passivamente, assistir ao trabalho do psicólogo, à aplicação dos seus instrumentos de avaliação e à capacidade deste “levar ao sítio” aquilo que se deslocou e o trouxe à consulta. Num caso e noutro é a anulação pura e dura das responsabilidades face ao processo de mudança que está em causa: psicólogo que se demite dessa coisa densa, trabalhosa e exigente que é criar relação terapêutica e paciente que se vê impedido de crescer e mudar psicologicamente a partir da qualidade da relação que estabelece com o seu terapeuta.

Desengane-se o psicólogo ou psicoterapeuta que ousa considerar que a mente humana se assume como uma entidade concreta, reificada, mensurável ou coisificada. Ela revela-se sobretudo como algo eminentemente complexo, carregado de ambiguidades, contradições e dilemas furtando-se, por isso mesmo, a qualquer esforço ou tentativa de “coisificação” e, por consequência, de “ortopedização”. O paradigma da complexidade deve estar sempre presente no estudo e intervenção na mente humana e deve rejeitar-se determinantemente qualquer tentativa de reificá-la ou de coisificá-la. Porque é neste exercício de “coisificação da mente” que está a base para a sua mensuralidade, a sua quantificação, e que abre espaço para que o trabalho psicológico seja uma verdadeira “ortopedia mental” dos males dos pacientes e se menospreze, ao mesmo tempo, a dimensão relacional e afetiva que deve pautar qualquer trabalho que se proclama de psicoterapêutico. Lembremo-nos, a este propósito, daquilo que nos dizia Carl Jung a propósito daquilo que, do seu ponto de vista, deveria corresponder ao trabalho psicoterapêutico: “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”.

 

Simão Mata

Simão Mata é psicólogo, especialista em psicologia clínica e da saúde e membro efetivo da Ordem dos Psicólogos Portugueses. A sua prática profissional é realizada na Norte Vida – Associação para a Promoção da Saúde, uma IPSS que se foca na intervenção psicossocial com sujeitos em situação de vulnerabilidade social. Exerce atividade clínica em contexto hospitalar no Hospital Senhor do Bonfim (Grupo Trofa Saúde), integrando uma equipa multidisciplinar de Saúde Mental. Colabora ainda como psicólogo clínico no Gabinete Relaction – Psicologia, Terapia Familiar e de Casal.

É ainda investigador externo no Centro de Ciências do Comportamento Desviante (CCCD) da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto tendo-se dedicado, nos últimos anos, ao estudo do fenómeno droga, da exclusão social, da marginalidade urbana e da intervenção psicológica nos comportamentos adictivos.

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