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Quem entra na consulta sem bater?: informatização e relação de ajuda

2018
ruitinoco28@gmail.com
Psicólogo clínico

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Quem entra na consulta sem bater?: informatização e relação de ajuda

A relação de ajuda acontece tradicionalmente no contexto de consultório entre um psicólogo e um cliente. Parece uma evidência incontestável. Os elementos deste par foram adquirindo diversos nomes conforme os contextos e as modas: psicólogo, psicoterapeuta, counselor – para não expandir os termos para profissões correlatas. Também do lado do cliente os nomes multiplicam-se: utente, paciente, doente, aluno, pessoa… conforme as perspetivas e a forma como se enquadra a prática.

Muitas vezes estas definições são vagamente pensadas. Produto de um quotidiano ou de contextos institucionais em que as classes profissionais dominantes são outras. Ou seja, muitos destas unanimidades têm frequentemente pés de barro… Muda o contexto, muda o enquadramento institucional, os nomes alteram-se – com eles, imagino, a prática implícita que pode ser encerrada num olhar, numa concetualização.

De qualquer forma, e apesar de todas as ambiguidades, uma coisa permanecia segura: esta relação de ajuda acontecia entre duas pessoas, uma delas profissional, num contexto terapêutico seguro que garanta o sigilo e um afastamento do quotidiano de tudo o que é exterior. Bem… na verdade nem mesmo esta evidência está a salvo…

Quem entra na consulta sem bater? Quem, em muitos dos nossos consultórios, complementa o par quase sem que nós nos apercebamos? Referimo-nos aos dispositivos informáticos. É verdade que cada um de nós é, cada vez mais, cada um de nós e o seu respetivo apêndice tecnológico. Cada vez mais nos fazemos acompanhar de dispositivos informáticos.

Não é agora que abordarei esta questão: aproveitarei este texto de modo diferente. Cada vez mais, nos nossos consultórios, está um computador, onde se abre a nossa agenda digital e em que, momento recente, se pode aceder ao processo psicológico das pessoas que atendemos. É esta a intrusão que a interrogação que encima este artigo se refere.

A eficácia e a medição da performance ditam esta introdução de um novo vértice ao par tradicional da relação de ajuda. Teremos de lhe dedicar atenção para agendar sessões (que por vezes nem sequer estão nas mãos dos profissionais), efetivar consultas. Também teremos de registar as sessões e os atos psicológicos que terão sido realizados com a pessoa que ajudamos: passagem de testes, relatórios…

Põe-se aqui a questão do sigilo e de que forma este pode ser mantido. Esta preocupação tem que ver com cuidados informáticos – e aqui sabemos como muitos desses segredos digitais, por mais encriptados que estejam, são passíveis de ser desvendados. Por outro lado, a questão relacional: vai escrever o que eu disse no computador? Os registos, e por maioria de razão os registos informáticos, não podem ser feitos na presença do utente.

Aqui, alguns aspetos importantes: eficácia e parcimónia nos registos, por um lado; gestão da informação entre aquela que pode ser partilhada junto de outros profissionais da equipa e aquela que é só para nós (tudo isto com consentimento informado por parte da pessoa visada).

Decorre também um outro aspeto crucial: o tempo da consulta de psicologia não é apenas aquele que ocorre na presença da pessoa, mas aquele outro tempo necessário ao registo e reflexão sobre o que ocorreu e poderá ocorrer no processo de acompanhamento.

Apesar destes temas estarem na ordem do dia nos psicólogos que desenvolvem a sua atividade no contexto do Serviço Nacional de Saúde – penso que são dignos de reflexão por todos nós.

Rui Tinoco

Psicólogo Clínico com trabalho de intervenção e investigação na área dos comportamentos aditivos - tema sobre o qual incidiu o seu doutoramento. Desde 2005 trabalha nos cuidados de saúde primários, onde desenvolve atualmente a sua atividade clínica e programas de intervenção comunitária entre os quais se encontra o PASSE.

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