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Sociedade hipersónica

2019
safetydialogues@gmail.com
Psicóloga. Membro Efetivo da Ordem dos Psicólogos. Mestre em Psicologia. Pós-graduada em Psicoterapias Cognitivo-Comportamentais

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Sociedade hipersónica

A definição de hipersónico é relativo a velocidades cinco (ou mais) vezes superiores à do som no ar.

Na nossa sociedade, cada vez tudo é mais depressa, mais urgente, mais necessário. Os dias sucedem-se, uns atrás aos outros de uma forma invasora, destrutiva, planeada, nos nossos (muitos) deveres perante a sociedade.

As nossas crianças, desde tenra idade TÊM de ir para o infantário e fazer as atividades com atenção, boa disposição e claro, bons resultados. TÊM de ir para o 1º, 2º e 3 ciclo e aprender tudo com brio, dedicação e um sorriso na cara desde as 8h00 até as 18h00 (com sorte, porque há meninos que só saem dos centros de explicação ou atls pelas 19h00). TÊM de fazer os trabalhos de casa sem erros, impecavelmente escritos e estruturados quase como se de universitários se tratassem. Durante as aulas devem de estar sempre impecavelmente atentos e interessados em todos os assuntos e temas do dia. TÊM de ser bem-comportados e interessados nos temas que os adultos lhes ensinam. Nos intervalos TÊM de rapidamente dirigirem-se para a próxima sala de aula e engolir rapidamente o lanche guardado na mochila. TÊM de apontar com pormenores todos os trabalhos de casa, das várias disciplinas do dia. Sabem que TÊM de fazer ainda mais trabalho após a conclusão das aulas do dia ate porque é essa a sua obrigação. Quando saem em visitas de estudos os encarregados de educação TÊM de se responsabilizar pelos seus educandos e por isso os meninos TÊM de ter em atenção tudo o que fazem, como fazem e com quem fazem até porque temos de estar sempre a nos policiar não vá falhar qualquer coisa. As nossas crianças TÊM de estar sempre atentos ao bullying, aos que são diferentes, aos iguais, aos agredidos e aos agressores, aos problemas deles e dos outros, as greves, aos problemas dos adultos, as crises familiares, aos problemas das escolas, aos problemas do mundo. Muitos não se adaptam ao ritmo e são “diagnosticados”, “medicados” numa vã tentativa de poderem, um dia, nivelarem-se à norma, à média dos outros alunos. Matamos o diferente, a criatividade. Todos TÊM de ser iguais, os melhores tal qual a sociedade assim entende.  Ao concluírem o 3ºciclo, as crianças agora jovens, TÊM de ter boas notas para poderem entrar numa boa Universidade e aí continuarem a sua carreira de bons e disciplinados alunos.

Alguns ficam pelo caminho porque a pressão de tudo e todos fez com que “desligassem” a cabeça e retirassem toda a importância ao que os outros querem. Alguns tentam o suicídio para acabar com a dor. Outros deprimem-se, têm crises psicóticas. Outros entregam-se as drogas, fogem da escola como o “diabo da cruz”, querem ir trabalhar, querem ser adultos.

Crianças/jovens que faltam as aulas são crianças em risco. São sinalizadas para as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens. Toda a família está em crise. Mas tudo isto TEM de ser feito, diz a nossa sociedade.

Acorda-se demasiado cedo, deita-se demasiado tarde. Exige-se muito, dá-se muito pouco. Culpa-se as famílias acerca do comportamento das crianças/jovem mas na verdade, qual é o tempo real, efetivo que cada uma das nossas crianças passa com a família? Na realidade, pouco, quase nenhum porque ambos, crianças e adultos TÊM ainda muitas tarefas para cumprir e portanto já não se conversa, já não se brinca, já  não se convive nas famílias. E o tempo passa. E o tempo da nossa sociedade é hipersónico, atinge velocidades cinco (ou mais) vezes superiores à do som no ar.

Todos TEMOS muitas coisas a cumprir … e no final de tudo isto temos: adultos desadequados, infantis, frustrados, com extrema dificuldade em ser afetivo, em colocar-se no lugar do outro. Temos adultos que saltitam de emprego em emprego porque depois de cumprir todos os “TÊM” da sua vida acham-se intocáveis, criaturas especiais com uma inteligência extraordinária que põem e dispõem das empresas, dos colegas, da vida.

Há que pensar nestes “TÊM todos” e em suas consequências para o futuro. Não é saudável termos todos os nossos momentos ocupados com tarefas e obrigações. Ao fazermos isto estamos a promover a doença mental, o suicídio, a dor e a desadequação social das pessoas. Para o bem da nossa sociedade, temos de promover o equilíbrio entre o estudo/trabalho e o descanso, entre os direitos e os deveres, entre o individual e o social.