PUB


 

 

Toxicodependência e identidade de género: algumas anotações

2018
ruitinoco28@gmail.com
Psicólogo clínico

A- A A+
Toxicodependência e identidade de género: algumas anotações

A heroinodependência e o uso das drogas em geral sempre foram objeto de problematização científica, moral e até religiosa ao longo dos tempos. Nos finais dos anos oitenta e início da década de noventa ouvia, nos bancos da faculdade, professores que se questionavam sobre estes temas, nomeadamente Cândido da Agra. O consumo de drogas criava figuras e comportamentos que eram resistentes às abordagens tradicionais das ciências psicológicas e outras.

Claro que esta novidade e abordagem filosófica atraíam muito e a juventude é sempre seduzida pelo pensamento divergente, de alguma forma contestatário – isto sem deixar de ser coerente, complexo e verdadeiro.

Alguns anos mais tarde, já no início da minha atividade clínica na área, outro assunto me surpreendeu: a maioria dos casos que atendi ou que assistia outros colegas mais experientes a atender eram todos do sexo masculino. Tendência que se manteve na quase década e meia que trabalhei na área.

De facto, os comportamentos de risco, de desafio, de rebeldia que me tinham cativado nesta área da intervenção psicológica tinham também atraído outros, outros homens, cujo percurso os tinha levado ao papel de consumidores.

Um primeiro questionamento: que sociedade é esta que produz tantos consumidores, sendo eles esmagadoramente do género masculino? Como se poderia canalizar estes comportamentos de risco e de desafio de uma forma produtiva e menos destrutiva para tanta gente? Uma sociedade que prefere lutar contra o risco e expulsar todos os perigos, que lugar reservaria a quem os quisesse correr?

Numa sociedade securitária e alérgica ao risco e disrupção, nesta área das drogas e em muitas outras, o preço a pagar é elevado. Neste momento, uma leitura em termos de identidade de género: o risco, o desafio e o perigo, associados a um papel tradicional masculino, traduzem-se nestes atos de dependência das drogas. Serão eles também um movimento de recusa social de valores relacionados com a visão tradicionalmente masculina?

Aqui o papel de analisador epistémico que Agra atribuía às drogas em termos epistemológicos poderia ser importado para a reflexão sobre a identidade de género? Será possível tentar perceber estas diferenças epidemiológicas também à luz deste tipo de identidade? Tanto mais que a diferença do consumo de algumas drogas como álcool, tabaco e outras tem assistido a uma aproximação de padrões entre homens e mulheres.

Adiante para um outro questionamento…

Já em plena prática clínica, isto ainda na primeira metade dos anos noventa, o tratamento de primeira linha de heroinodependentes passava frequentemente pela desintoxicação domiciliária.

Rapidamente: o homem casado ou filho ainda em processo de autonomização não controlava os seus próprios atos. Consumia heroína, e mais tarde cocaína, com pouco controle sobre os seus próprios atos e consequências. Agia com a precaução antes de ser descoberto e, mais tarde, com a maior da desfaçatez: queria mais droga custasse o que custasse. Mais tarde, por impedimento de saúde, porque não havia mais dinheiro e tinha recebido um ultimatum era compelido ao tratamento.

Temos então o sujeito omnipotente que se vê arrastado a um centro de tratamento… Como o deus Úrano arrastado pelos seus próprios filhos ou então reconduzido à adolescência por uns pais que já não aguentam ou permitem um filho a consumir no seio da sua família.

A desintoxicação domiciliária, como rito de passagem, operava uma inversão completa que se vinha desenhando. Para além dos medicamentos para os diversos sintomas de privação, as famílias tinham de implementar diversas normas, frequentemente draconianas: o doente não poderia sair de casa, contactar com amigos consumidores, não ter acesso a dinheiro ou seus sucedâneos como os cartões de débito ou crédito.

Cumprida esta etapa, e atestada a abstinência, era então administrada um antagonista que permitia que um eventual lapso de consumo de heroína não se transformasse numa ação química (não fizesse efeito) e não se traduzisse numa recaída. Assim a medicação era uma prisão química que perpetuava, para bem de todos, doente e família, essa inversão de poderes.

Mais tarde se houvesse recaída regressava o funcionamento anterior em que o consumidor de heroína adotava os comportamentos omnipotentes anteriores.

Assim, num casal por exemplo, em que ele era o consumidor, alternavam duas formas extremas de relacionamento: uma primeira em que ele consome, arruína a família e oprime todos; uma segunda em que ele se arrepende e se compele à correção. É neste momento que ela assume as rédeas de casa: dirige o tratamento, guarda os medicamentos em lugar seguro (eles podem também ser objeto de consumo desregulado) guarda cartões de crédito e controla as finanças domésticas.

Claro que existem milhares de variantes desta breve e esquemática descrição. De qualquer forma continuemos perto dela… Num primeiro momento, temos um casal em que o homem é um ser omnipotente que só pensa em si próprio e destrói tudo o que o rodeia. De seguida é a mulher que assume tudo, para curar e cuidar, mas também para adquirir um poder desmesurado.

Claro que são ainda os papeis tradicionais masculino e feminino que acabámos de retratar. Um homem dono de todo o poder que depois perde o controle de si mesmo; uma mulher que perdoa, suporta tudo, para depois se ver empossada de um mesmo poder omnipotente de sinal contrário – apaziguador e curativo.

A igualdade de género neste caso é apenas uma miragem. São os tradicionais papeis de género que se caricaturam. Que se caricaturam e se extremam: ao poder despótico masculino, sucede um poder feminino de sinal contrário – um poder delegado, poder-me-ão objetar – e com razão. No entanto, testemunhamos essa oscilação circular, quase perene em muitos casos, do poder nas famílias com consumidores de drogas no seu seio.

 

Em suma, no consumo de drogas nos anos noventa e zero em Portugal, as questões da identidade de género punham-se com muita premência. Estávamos – estamos – perante uma sociedade que produz um perfil muito peculiar de consumidor em que o sexo masculino, a identidade de género masculina, é esmagadora em termos de prevalência. Testemunhámos também essa oscilação de poder no seio de muitas famílias em que o elemento masculino - consumidor e desregulado - era alternado por um elemento feminino cuidador e curativo mas portador de uma omnipotência de sinal contrário.

Penso que seria interessante começar a ler estes fenómenos também à luz da identidade de género, por que numa sociedade como a nossa, pós-moderna, a norma cada vez mais não existe. Ela fragmentou-se em pedaços que é preciso começar a nomear para poder pensá-los novamente.

Rui Tinoco

Psicólogo Clínico com trabalho de intervenção e investigação na área dos comportamentos aditivos - tema sobre o qual incidiu o seu doutoramento. Desde 2005 trabalha nos cuidados de saúde primários, onde desenvolve atualmente a sua atividade clínica e programas de intervenção comunitária entre os quais se encontra o PASSE.

mais artigos de Rui Tinoco