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Troca ritual, profissões da saúde e psicologia clínica: a importância do tempo

2018
ruitinoco28@gmail.com
Psicólogo clínico

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Troca ritual, profissões da saúde e psicologia clínica: a importância do tempo

Muito do nosso quotidiano é estruturado em torno de trocas rituais. O que fazemos quase sem pensar e o que esperamos, automaticamente que o outro faça. Englobamos aqui, por exemplo, os mais banais «Bom dia» e o «está tudo bem?» - pergunta retórica para a qual não esperamos, a maior parte das vezes, resposta.

Assim, também muitas vezes no encontro entre um paciente e um profissional de saúde existe uma pré-narrativa que estrutura a consulta. Esquematizando: numa consulta médica o esperado pode ser a prescrição; numa consulta de enfermagem pode-se esperar o tratamento ou a partilha de alguma informação de saúde. Também para a nutrição poderei receber uma dieta ou uma série de diretrizes sobre o meu comportamento familiar ou ainda no serviço social sobre que apoios estarão disponíveis.

As trocas esperadas, para cada um destes profissionais, têm um percurso em si e um momento que o coisifica: a receita; a vacina efetuada; a dieta alimentar recebida etc… Esta ritualização da troca tem associado um tempo próprio, um tempo que é bem mais para além do tempo cronológico, um tempo que associa uma sensação de fim, ou de término, ao sucesso da troca efetuada.

Como transpor esta ideia da troca para uma consulta de psicologia clínica? O que os utentes esperam e que troca pode acontecer de forma que o encontro se possa finalizar? Note-se, bem entendido que estamos completamente arredados da troca que se coisifica e que traz consigo a finalização. Aliás, isso pode acontecer marginalmente: se devolvo uma avaliação a uns pais; se faço um relaxamento; se entrego um relatório. Nestes casos, após a explicação e algo que é feito a troca está consumada por assim dizer.

Nada disso acontece na maior parte das consultas de psicologia clínica. Pode até suceder, e sucede tantas vezes, que é no momento do término da sessão que se recebe uma informação ou confissão que é mais explosiva. Não existe propriamente um momento ritual preciso, capaz de condensar por si mesmo essa troca. Apenas o encontro o passar tempo com o cliente, o ter tempo para permitir essa troca e sentimento de satisfação que advém de algo que tem um início, um meio e um fim.

O sentimento de ser ouvido, realmente ouvido, assume-se como um ponto crucial para que esse sentimento de troca possa realmente acontecer. Independentemente da escola psicoterapêutica em que nos situemos, será necessário tempo para ouvir, aplicar ou explicar técnicas que possam ser utilizadas. Envolver de algum modo os clientes com o espaço da psicologia e o modo como ele pode ser vivido.

Assusta-nos, por isso, um certo discurso que em torno de conceitos como acessibilidade em saúde e tempo de espera. Penso que, em muitos casos, se importa para a nossa profissão termos e conceitos que têm a sua origem em variáveis macro de dispositivos em que muitas outras profissões são dominantes em termos de recursos alocados e, por consequência, no que diz respeito a decisões e modelos aplicados.

Em termos dos serviços do Estado, concretizando, nenhum profissional tem à sua guarda uma carteira finita de utentes. Pelo contrário a maior parte dos profissionais trabalham em serviços em que os casos surgem por referenciação de outras valências. Temos também, por outro lado, a realidade bem palpável que nos diz que os profissionais de psicologia encontram-se em francamente menor número que as necessidades existentes apontam.

Assim, assusta-nos de sobremaneira a importação que tem vindo a iniciar-se de ideias como tempo de espera e acessibilidade aos serviços. Não fique impressão errada, a acessibilidade os serviços de saúde é de suma importância para todos nós. No entanto, na área da psicologia, subdimensionada a mais das vezes face às necessidades efetivamente sentidas.

A primazia, na gestão da consulta nas questões da acessibilidade e tempos de espera, acaba por obrigar os profissionais a fazerem mais primeiras consultas e a não terem espaço semanal, quinzenal, para efetuarem acompanhamentos. Assim, a preocupação sobre a acessibilidade às consultas de psicologia deverá ser acompanhada pela interrogação: acesso a quê?

Rui Tinoco

Psicólogo Clínico com trabalho de intervenção e investigação na área dos comportamentos aditivos - tema sobre o qual incidiu o seu doutoramento. Desde 2005 trabalha nos cuidados de saúde primários, onde desenvolve atualmente a sua atividade clínica e programas de intervenção comunitária entre os quais se encontra o PASSE.

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