Resumo

As intervenções preventivas constituem um dos vectores essenciais de qualquer estratégia nacional de controlo do “problema das drogas”. No entanto, a impacto das acções de prevenção na redução dos problemas relacionados com o abuso de substâncias psicoactivas depende, em larga medida, do grau em que tais acções sejam capazes de integrar os métodos, actividades e outras características que a investigação tem identificado como estando associadas aos programas mais eficazes nesta área. Promover a transposição dos conhecimentos científicos acumulados neste domínio para programas de prevenção, tentando superar o hiato existente entre a investigação e a prática, representará um dos mais significativos desafios da prevenção do abuso de drogas.

 

1. Introdução

O consumo de substâncias psicoactivas representa um problema social que assume contornos preocupantes no nosso país. Embora a extensão deste problema esteja ainda longe de uma caracterização rigorosa, é hoje consensual que os problemas relacionados com o consumo de álcool e de outras drogas representam um dos mais sérios desafios que se coloca à sociedade portuguesa.

As respostas a este desafio têm variado em função das concepções de intervenção prevalecentes em diferentes momentos socio-históricos. No entanto, quase todas as propostas de intervenção sustentam o papel crucial desempenhado pelas estratégias de prevenção. Não surpreende, deste modo, que, particularmente ao longo da última década, se tenham multiplicado as acções de prevenção, realizadas em diferentes contextos e envolvendo recursos e métodos muito diversificados.

Por outro lado, é forçoso reconhecer que as intervenções preventivas na área das drogas representam um domínio caracterizado, historicamente, por uma sucessão de tentativas mais ou menos fracassadas de controlar o fenómeno do uso/abuso de drogas.

Embora as intervenções preventivas tenham conduzido a resultados inconsistentes no que se refere à capacidade de modificar o abuso de drogas ou outros comportamentos desviantes, um manancial de conhecimentos, originários da investigação teórica e empírica, tem vindo a ser acumulado ao longo das últimas duas décadas.

Com efeito, os resultados da investigação realizada neste domínio permitiram mesmo identificar um conjunto de factores susceptíveis de conferir às intervenções preventivas uma maior eficácia (NIDA, 1997). No entanto, os avanços da investigação na área da prevenção das toxicodependências parecem não ter tido ainda tradução na sua incorporação generalizada nos programas de prevenção.

Tendo presente estas considerações iniciais, procede-se neste artigo a uma reflexão sobre o passado, o presente e o futuro da prevenção do abuso de drogas.

 

2. O passado: o nascimento da ciência da prevenção do abuso de drogas

Falar do passado da prevenção das toxicodependências envolve mais do que uma mera enunciação dos fracassos registados neste domínio da intervenção. A análise da evolução histórica das estratégias de prevenção do abuso de drogas permite, com efeito, retirar alguns ensinamentos susceptíveis de orientar os esforços futuros nesta área.

Um dos ensinamentos que releva da história da prevenção das toxicodependências é o de que não existem soluções simples para problemas sociais complexos. Dito de outro modo, não é possível prevenir o uso/abuso de drogas recorrendo a abordagens lineares e reducionistas como as que se baseiam unicamente no pressuposto de que as informações acerca das drogas constituem um obstáculo suficientemente poderoso para que o jovem se abstenha de consumir drogas.

A dificuldade em aceitar aquilo que é hoje uma evidência incontornável, foi, e ainda é hoje, responsável pela acumulação de um número muito elevado de fracassos nesta área. É que a história da prevenção também nos ensina que as abordagens informativas não só se revelaram ineficazes como mostraram potenciar alguns dos efeitos que pretendiam inibir ou reduzir (e.g., Stuart, 1974; Barresi e Gigliotti, 1975; Morgan e Hayward, 1976).

A constatação da ineficácia das estratégias preventivas centradas na disseminação de informações sobre as drogas teve, no entanto, o mérito de desencadear um conjunto de transformações, as quais marcaram a inscrição deste domínio na categoria de área científica. Ou seja, assiste-se, a partir dos anos 70, ao nascimento e constituição da ciência da prevenção do abuso de drogas.

Este aspecto merece ser realçado pois a obtenção deste estatuto terá permitido que o domínio da prevenção das drogas se demarcasse progressivamente dos pressupostos de natureza filosófica ou moral em que se baseou no passado (Negreiros, 1998).

Entre outros aspectos, a emergência deste domínio científico teve expressão no aparecimento de formulações teóricas progressivamente mais elaboradas bem como numa preocupação, ainda hoje muito saliente, com a avaliação dos efeitos das estratégias de prevenção. A inscrição algo tardia da prevenção das drogas num registo científico poderá mesmo explicar o fenómeno muito específico desta área que consiste em sublinhar, incessantemente, a necessidade de submeter qualquer intervenção preventiva a uma avaliação rigorosa dos seus efeitos.

Com efeito, a preocupação em avaliar os efeitos das estratégias preventivas começa já a delinear-se em diversos estudos conduzidos nos anos 70 (e.g., Goodstadt, 1974; Berberian et al., 1976; Wepner, 1979), prolongando-se, obviamente, pelos anos 80 (e.g., Shaps et al. 1981; Tobler, 1986; Beauchesne, 1986) e anos 90 (e.g., Bagnall, 1990; Logan, 1991; Norman et al, 1997; Tobler e Stratton, 1997).

 

3. O presente: hiato entre investigação e prática ?

Analisar o estado actual da prevenção das drogas envolve, necessariamente, uma referência à situação existente no nosso país. Recentemente (Negreiros, 1998), descrevemos alguns indicadores que foram considerados negativos no que se refere à situação da prevenção das toxicodependências em Portugal. A identificação desses “indicadores negativos” resultou de uma apreciação global das acções de prevenção que têm sido realizadas no nosso país, no decurso dos últimos dez anos.

Esquematicamente, os aspectos que foram considerados negativos em relação à situação actual no domínio da prevenção das toxicodependências incluiam:

a. uma predominância das chamadas intervenções "inespecíficas", as quais, pelo seu carácter vago e impreciso, prestam-se ao desenvolvimento de uma multiplicidade virtualmente infinita de acções, mas onde está ausente qualquer suporte científico para a sua elaboração e aplicação;

b. recurso a acções pontuais, frequentemente em meio escolar, centradas no fornecimento de informações acerca das drogas e dos seus efeitos ou de acções geradoras de medo (e.g., apresentação de slides de indivíduos toxicodependentes que evidenciam os efeitos da deterioração física decorrente do abuso de drogas);

c. ausência, quase generalizada, de procedimentos de avaliação dos efeitos das intervenções preventivas. Quando são utilizados, tais procedimentos resumem-se, frequentemente, a uma avaliação do grau de satisfação dos participantes em relação às actividades preventivas;

d. ausência de uma coordenação e articulação das acções em curso, daí resultando, muitas vezes, uma duplicação desnecessária de esforços nesta área;

e. deficiências notórias ao nível da formação dos técnicos envolvidos na execução de projectos preventivos;

f. escassez de materiais de prevenção adaptados à realidade socio-cultural portuguesa;

g. insuficiente utilização das potencialidades do sistema educativo no sentido de incluir conteúdos e estratégias orientadas para a prevenção do abuso de drogas.

A esta lista de indicadores negativos acrescentaria um outro menos referido, o qual tem, no entanto, alguma importância para o desenvolvimento deste domínio. Trata-se da aparente fraca apetência dos investigadores e profissionais portugueses para realizar investigação na área da prevenção do abuso do álcool e outras drogas. Com efeito, é notória a escassez de estudos que têm sido realizados nesta área em Portugal. Isto mesmo pode ser comprovado examinando, por exemplo, o conteúdo dos artigos publicados na revista Toxicodependências desde a sua fundação, em que só um número muito reduzido de textos aborda questões, directa ou indirectamente, relacionadas com o domínio da prevenção.

Esta lista de indicadores negativos não tem subjacente o pressuposto de que tudo o que tem sido feito em Portugal é negativo ou não tem qualidade. Pelo contrário, nos últimos anos tem-se assistido à aplicação generalizada de programas de prevenção, o que revela, só por si, a forte vitalidade deste domínio. Desses programas, uns terão mais méritos do que outros.

Em todo o caso, e tendo presente a diversidade de programas e estratégias actualmente em aplicação no nosso país, não surpreenderá que uma porção significativa dessas intervenções possa apresentar deficiências aos níveis da concepção, execução, ou mesmo avaliação. No entanto, é praticamente impossível saber quais as intervenções preventivas, de entre as dezenas que foram realizadas em Portugal nos últimos anos, que se têm revelado mais eficazes.

Embora não solucionando inteiramente esta questão, um modo de a superar poderia consistir, por exemplo, em estabelecer um conjunto de princípios básicos genericamente associados aos aspectos que parecem caracterizar as intervenções mais eficazes nesta área (e.g., utilização de métodos interactivos; tipos de estratégias; duração adequada das intervenções, etc.). A observância destes princípios gerais poderia conduzir a uma melhoria significativa da qualidade das intervenções sem que tal implicasse qualquer limitação à liberdade de concepção das intervenções preventivas por parte das diversas instituições ou comunidades envolvidas neste tipo de acções. Ao mesmo tempo, permitiria uma gestão mais racional dos recursos que têm sido canalizados para este domínio da intervenção nas toxicodependências.

 

4. O futuro: superar o hiato entre a investigação e a prática

Embora seja sempre um exercício difícil prever de que forma um determinado domínio da intervenção psico-social poderá evoluir, destacariamos dois episódios ocorridos recentemente para desenvolver algumas reflexões gerais sobre o “futuro” da prevenção das toxicodependências.

O primeiro, refere-se a uma informação transmitida pela APA - American Psychological Association - em 15 de Agosto de 1997, dando a conhecer os resultados de três estudos que, genericamente, avaliavam diferentes tipos de estratégias de intervenção psico-social dirigidas a crianças e adolescentes.

Especificamente, um dos estudos incluia uma avaliação do programa D.A.R.E. - Drug Abuse Resistance Education; outro estudo analisava o impacto da educação sexual na escola; por último, o terceiro estudo examinava a eficácia da legislação sobre os conteúdos dos programas de televisão no sentido de satisfazer o que os seus autores designaram por “necessidades educacionais” das crianças.

A notícia salientava que, com base nos resultados destes três estudos, seria legítimo concluir que as estratégias de intervenção psico-social que têm como população-alvo as crianças e os adolescentes não se têm revelado inequivocamente eficazes. No que se refere ao estudo que avaliou a eficácia do programa D.A.R.E., por exemplo, verificou-se que os alunos que participaram nesta intervenção, ao fim de 6 anos, não consumiam menos drogas do que os alunos que não participaram no programa. Do mesmo modo, não foram observadas diferenças entre os dois grupos no que se refere a variáveis como as atitudes em relação à escola, as aspirações escolares, ou mesmo a prática de comportamentos anti-sociais.

Um segundo dado, que também nos chega dos E.U.A., revela que, após um declíneo acentuado do consumo de drogas durante os anos 80, está a verificar-se uma inversão desta tendência, já evidente nos estudos epidemiológicos conduzidos partir de início dos anos 90. Alguns desses estudos mostram, por exemplo, que a percentagem de alunos do ensino secundário que refere ter consumido drogas ilícitas durante o último ano, aumentou de 22%, em 1992, para 35%, em 1995. O uso de marijuana é o que tem registado um maior aumento. Assim, por exemplo, a percentagem de alunos a frequentar o 8º ano de escolaridade que refere ter consumido marijuana pelo menos uma vez ao longo da vida, aumentou de 10,2% em 1991 para 19,9% em 1995, o que representa um aumento de 92%.

Estes dois aspectos que seleccionamos para iniciar algumas considerações sobre o futuro da prevenção das toxicodependências poderá induzir a conclusão segundo a qual as avanços no domínio da prevenção não têm sido suficientes para fazer diminuir o número de jovens que se inicia no consumo de diferentes tipos de drogas. No entanto, estabelecer uma relação de causa-efeito entre estes dois aspectos (eventual fracasso da prevenção em meio escolar e aumento das taxas de prevalência do consumo de diferentes tipos de droga) seria bastante questionável.

De seguida, são apresentados quatro argumentos básicos, entre outros possíveis, que contariam este tipo de associação (i.e., o fracasso da prevenção origina um aumento do consumo de drogas):

(1) A popularidade de um programa de prevenção não é sinónimo de eficácia do programa. O que se passa com o DARE é que embora se trate de um programa aplicado em cerca de 70% das escolas americanas e adoptado em mais de 44 países a sua eficácia é nitidamente questionável. Com efeito, uma avaliação recente deste programa (Rosenbaum e Hanson, 1988) confirmou o que já se suspeitava: o programa não produz qualquer efeito preventivo no uso de drogas, embora tenha tido efeitos imediatos e a curto-prazo num conjunto de variáveis mediatizadoras (e.g., atitudes em relação às drogas, aquisição de competências de recusa). No entanto, a maioria desses efeitos acaba por dissipar-se com a passagem do tempo.

(2) Em função do exposto no ponto precedente, é razoável supôr que a proclamada ineficácia dos programas de prevenção em meio escolar, e a sua incapacidade em suster o aumento do número de consumidores, esteja relacionada com o facto de a maioria das escolas não integrar os mais recentes resultados da investigação nesta área nos respectivos programas de prevenção.

Para reforçar esta perspectiva, refira-se que a ausência de maiores e mais persistentes efeitos associados à aplicação do programa D.A.R.E. parece dever-se, entre outros factores, a limitações quer do conteúdo das sessões quer dos métodos utilizados (Rosebaum e Hanson, 1998). Por exemplo, este programa utiliza com menos frequência do que os programas preventivos que se têm revelado mais eficazes em prevenir o uso de drogas métodos activos que implicam um intenso envolvimento dos participantes nas actividades do programa.

Em suma, programas de elevada qualidade (cf. Tobler, 1997 para uma revisão desses programas) estão associados a reduções significativas no uso de diferentes substâncias psicoactivas, verificando-se igualmente que esses efeitos têm tendência a persistir no tempo.

(3) É irrealista pensar que mesmo os melhores programas de prevenção serão capazes de controlar um problema social tão complexo como é o abuso de drogas. Este ponto re-envia para as considerações iniciais que efectuamos a propósito da evolução do domínio da prevenção. Este domínio foi caracterizado durante muito tempo por propôr soluções simplistas para fenómenos bastante complexos. Esta têndencia parece persistir ainda hoje, nomeadamente, quando se procura atribuir à prevenção virtualidades e poderes que ela, na verdade, não tem. De facto, a procura de uma panaceia para o problema das drogas tem feito com que muitas vezes se fixem expectativas demasiado elevadas para um mero programa de prevenção.

(4) Importa sublinhar, por último, que as estratégias de intervenção orientadas para a redução da procura, nas quais se inscrevem os programas de prevenção aplicados em meio escolar, constituem uma fracção muito reduzida dos esforços para controlar o problema das drogas nas sociedades actuais. Deste modo, a dificuldade em suster o aumento do consumo de drogas deverá conduzir a um questionamento global das medidas de controlo do uso de drogas. Nos EUA, por exemplo, que representa, sem dúvida, o país em que as medidas de controlo do problema das drogas são mais rigorosas, a população toxicodependente é hoje equivalente à que existia no início do século XX (Smart, 1997). Alguns autores chegam mesmo a admitir estar-se perante a perspectiva de uma catástrofe social sem paralelo neste país, quando, na primeira década do século XXI, as crianças atingirem a idade de maior vulnerabilidade ao uso de drogas.

 

Bibliografia

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