Resumo

Ao longo dos últimos anos, as competências transversais têm sido apontadas, no novo espaço europeu, como uma meta significativa de modo a cumprir o desenvolvimento dos indivíduos e das sociedades através da qualificação dos agentes produtivos e da promoção de uma maior autonomia na construção dos projectos de vida dos cidadãos. A formação surge como um dispositivo que possibilita a promoção destas competências, algo que não deverá ser conceptualizado numa lógica funcionalista linear, mas sim, tendo em conta os contextos económicos, sociais e culturais dos alvos a que se destina. Na Europa de livre mercado de bens e serviços torna-se urgente que a formação promova a transversalidade de competências dos indivíduos para desenvolverem as suas actividades profissionais num espaço cada vez mais global e exigente em termos de competitividade. Daí que, recentemente, se tenham delineado projectos a nível europeu com o objectivo de avaliar e promover estas competências de cariz estrutural que não estão confinadas a um contexto local/nacional específico. Refere-se, a título ilustrativo, o projecto Venezia 2 que se destina maioritariamente a jovens com um baixo nível de qualificações e cujo principal objectivo é promover as referidas competências transversais, com especial ênfase ao nível do processo de aprendizagem da língua materna.

Tendo em conta o tema que o título desta comunicação sugere, o itinerário reflexivo que aqui se propõe detém-se, num primeiro momento, nos aspectos que caracterizam as sociedades e o mundo actual; prossegue com um olhar atento sobre as necessidades da formação que emergem nesta conjuntura e termina com a ilustração de um projecto europeu, Venezia 2, destinado à promoção de competências transversais no âmbito da literacia.

 

As faces da globalização

Ao longo das últimas décadas, o mundo tem sofrido mutações que transformam necessariamente o modo como vivemos, compreendemos e perspectivamos o futuro, sendo uma das características mais notórias a intensificação das relações entre os vários países. De facto, configuram-se, cada vez mais, interacções transnacionais que incluem a globalização dos sistemas de produção e transferências financeiras, a “omnipresença” de imagens e informações através dos media e a crescente mobilidade de pessoas nos mais diversos contextos e funções (Santos, 2001). Apesar de existir uma pluralidade de designações relativas à situação do mundo actual (globalização, modernidade reflexiva, globalização, entre outros), parece haver um consenso relativamente às dimensões que caracterizam o presente e o futuro próximo das sociedades como o risco, a incerteza e a imprevisibilidade, ou como refere Azevedo (1999, p.27) a “condenação à complexidade”.

A globalização e os fenómenos que a põem em marcha são processos dinâmicos que envolvem conflitos nem sempre visíveis, sendo possível identificar duas faces da mesma moeda, o lado das oportunidades e o lado sombrio da modernidade (Giddens, 1996). Quanto ao primeiro, este parece ser mais visível socialmente, constatando-se muitas vezes que o discurso da globalização é a história dos vencedores contada pelos próprios (Santos, 2001). De facto, toda esta conjuntura permite que os indivíduos se confrontem com um leque mais abrangente de opções que advém da desterritorialização das relações sociais antigamente reguladas (e consequentemente limitadas) por tradições, ideologias ou nacionalismos (ibidem). A mobilidade de bens, serviços e pessoas permite a criação de uma constelação de redes e relações potencialmente promotoras do desenvolvimento humano e do enriquecimento económico, social e cultural das sociedades. Cada vez mais os indivíduos constróem a sua identidade a partir de referentes mais globais (por exemplo, a União Europeia), o que não é necessariamente incompatível com a valorização das identidades locais/regionais. Mais particularmente ao nível laboral, preconiza-se a deslocação de trabalhadores para locais em que existam oportunidades de emprego, podendo os indivíduos através do seu trabalho participar no desenvolvimento de qualquer outro país que não o seu de origem e beneficiar de experiências formativas nesse mesmo contexto.

Relativamente ao lado sombrio destes fenómenos, salienta-se o agravamento das desigualdades sociais e económicas que, embora tenha vindo a ser reconhecido pelas instituições internacionais, parece ser encarado como um “mal necessário” numa lógica funcionalista de “short-term pain for long-term gain” (Hespanha, in Santos, 2001). No âmbito do emprego esta situação actual parece conduzir a uma redução de direitos nos países ricos –sob a capa eufemística de flexibilização- e à inibição destes direitos e redução dos salários nos países mais desfavorecidos como forma de dar resposta à competição globalizada (ibidem). Este lado sombrio, objecto da reflexão por parte de uma minoria há algum tempo atrás, tem vindo a ser cada vez mais exposto e conscencializado pelos vários grupos sociais de diferentes nações. Uma das traduções mais imediatas desta tendência parece ser o aumento de manifestações públicas (também estas cada vez mais “globalizadas”) que contestam os pressupostos subjacentes ao processo de globalização.

 

Sob o signo da ambivalência

Nesta conjuntura de frágeis equilíbrios e constantes paradoxos, qual será o lugar da Formação e como pode este dispositivo constituir-se como promotor do desenvolvimento de indivíduos e sociedades no mundo global? Recentemente, vários autores (Brown, 1999; Ashton, 1999; Keep, 1999) têm-se referido a uma mudança paradigmática no âmbito da formação para o trabalho. Estes autores preconizam a superação dos antigos modelos Fordistas e Tayloristas e a construção de modalidades laborais com base no desenvolvimento cada vez mais exigente de competências. No âmbito deste novo paradigma, as empresas substituiriam a produção em massa por uma produção dirigida às necessidades individuais dos clientes e a noção de competição assentaria, não mais no preço dos produtos mas sim, na sua qualidade. Desta forma, as novas competências exigidas aos trabalhadores serão, entre outras, a autonomização, adaptação a novas situações, resolução criativa e não estandardizada de problemas e “inteligência colectiva” que correspondem ao modelo proposto pela OCDE de “high performance workplace” (Keep, 1999). É notório, nesta mudança paradigmática, a substituição da noção de skill enquanto atributo discreto, individual e relativo às especificidades de cada posto de trabalho pela noção mais genérica e estruturante de competência transversal que se actualiza e transfere aos diferentes contextos de vida dos indivíduos.

No entanto, a formação de competências não acontece no vazio, sendo importante não segmentar esta questão de outras de carácter mais global como as políticas económicas e sociais, sob pena de ingressarmos numa concepção perigosamente ingénua das potencialidades ilimitadas deste dispositivo. Neste sentido, é importante identificar dois mitos que envolvem estas questões: “o mito do emprego para todos” e o “mito da concertação dos vários parceiros sociais”.

Relativamente ao primeiro, há que desmistificar as falsas assunções que garantem a existência de empregos “à espera” de pessoas qualificadas e que, consequentemente, responsabilizam os indivíduos que não apostam no desenvolvimento das suas competências pelo seu desemprego ou condições precárias do seu actual trabalho. Realça-se também a maior dificuldade de pessoas licenciadas em garantir a sua empregabilidade devido ao facto de existir um menor número de empregos que exigem qualificações superiores. Os indivíduos que possuem este tipo de qualificações são, frequentemente, preteridos, no âmbito das propostas que surgem no mundo laboral, por serem considerados “over-qualifyed”. Este aspecto permite ainda a reflexão sobre a extensão da influências das variáveis estruturais nos diferentes sectores do mundo laboral, desde aqueles em que não se exige um nível elevado de qualificações até ao pólo oposto.

Quanto ao segundo mito, salienta-se que nem todos os sectores da economia são permeáveis às inovações paradigmáticas aqui referidas, sendo a adesão a estes novos valores muitas vezes um exclusivo das empresas mais abertas às influências exteriores transnacionais. Na realidade, nos sectores mais tradicionais de produção, existem significados associados ao trabalho e à formação que constituem obstáculos a estas mudanças, como por exemplo, a valorização de competências mais práticas da ordem do saber-fazer e não das competências transversais, a valorização da estabilidade dos procedimentos no âmbito dos postos de trabalho e não a criatividade e o desafio no seio das organizações, o que também se traduziria num “empowerment” (ainda temido) dos agentes produtivos (Keep, 1999).

Desta forma, a conceptualização da formação deverá acompanhar atentamente estas mudanças, desafiando o princípio até aqui aplicado em alguns domínios do “just-in-time and just-enough” (Poole & Jenkins, 1997 cit. in Keep, 1999) através de uma reflexão constante dos seus modelos e das suas práticas. De acordo com Beraza (2000) a formação não deve ser encarada exclusivamente sob uma perspectiva estratégica, ou seja, um meio para atingir determinado fim mas, sobretudo, como uma forma de desenvolvimento pessoal e social (Coimbra, 2000; Imaginário, 1999). Este objectivo não poderá ser alcançado se a formação se restringir à “prescrição” de skills específicos susceptíveis de serem aplicados exclusivamente em contextos de trabalho repetitivos e pouco exigentes do ponto de vista desenvolvimental. Segundo Coimbra (2000, p.53): “...o skill, ou este saber fazer mais prático, de execução mais específica, mais preso a determinados contextos e condições de trabalho e às vezes até a um posto de trabalho, este saber fazer da execução do trabalho prescrito, não é senão um dos níveis mais elementares da competência (...) mas não é isto que chega para formar trabalhadores e profissionais de elevado nível de autonomia, de iniciativa, de criatividade e de empreendimento e capazes de responder a estes desafios que se vão identificando nos novos contextos de trabalho e nas novas formas de organização do trabalho.” Neste momento, a ênfase é colocada nas pessoas e nas equipas de trabalho e não tanto nas competências: actualmente, procura-se o “homem certo para o lugar incerto”. Desta forma, advoga-se a necessidade de promover competências generativas baseadas em processos sistémicos que possibilitem aos indivíduos enfrentar a novidade de situações e de contextos de uma forma criativa e adequada, no fundo, de uma forma “competente” (Coimbra, 2000). É precisamente num campo mais restrito destas competências transversais que nos situaremos de seguida.

 

Literacia(s) no mundo actual

A literacia pode ser conceptualizada num sentido mais específico, como uma das dimensões das denominadas competências básicas (Johnson & Troppe, 1992; Bynner, 1999) ou num sentido mais lato, que utilizaremos ao longo desta reflexão, como “capacidade de usar as competências (ensinadas e aprendidas) de leitura, escrita e cálculo...com base em diversos materiais escritos (textos, documentos, gráficos), de uso corrente na vida quotidiana (social, profissional e pessoal” (Benavente et al., 1996 cit. in Imaginário, 1998). A literacia está não raras vezes associada à noção de empregabilidade, sendo inclusivamente apresentada como um dos alicerces mais significativos da entrada no mundo do trabalho (Bynner, 1999). Na realidade é possível entrever a importância desta formação de base no posterior desenvolvimento de outro tipo de competências mais específicas, o que permite identificar as competências no âmbito da literacia como competências com potencial generativo, ou seja, como meios para o contacto com novas realidades e para a construção de novos saberes. Frequentemente, este tipo de competências é designado como competências-chave, devido, precisamente, ao facto “abrirem” novas possibilidades de aprendizagem.

Outra variável associada à literacia é a participação activa dos indivíduos na comunidade envolvente através de organizações políticas, sociais, religiosas e recreativas, emergindo, deste modo, como um possível instrumento de empowerment de indivíduos e sociedades (Guthrie et al., 1991). A literacia, enquanto realidade dinâmica, deve sempre ser enquadrada num determinado contexto, tendo sido descrita uma relação triangular entre literacia, sociedade e indivíduo, na qual a identificação de uma pessoa com um determinado grupo social e a sua percepção de literacia estão intimamente relacionados (Ferdman, 1999 cit. in Goodley, 1998). Um exemplo desta relação é o facto de na cultura ocidental se ter valorizado bastante as competências associadas à literacia, conduzindo a uma associação quase linear (mas que sabemos eminentemente cultural) entre o domínio destas competências e as capacidades intelectuais .

Actualmente, o domínio da literacia é perspectivado não só a um nível local - enquanto “kit identitário” (Gee, 1990, cit. in McCarthey, 2001) de uma determinada região/país-, mas também global, na medida em que se constitui como passaporte para o conhecimento de outras culturas e identidades. Neste sentido, as exigências da literacia são cada vez maiores já que se preconiza a aprendizagem de outros idiomas para além da língua materna, não só pela mais-valia do conhecimento dos mesmos mas, sobretudo, pela sua transversalidade dado que permite o aceder a outras áreas do saber (atente-se, por exemplo, na importância do domínio da língua inglesa para aceder à Internet). Tendo em conta que o sistema linguístico de uma sociedade influencia largamente a sua identidade cultural e a sua percepção do mundo envolvente que apropria e conhece precisamente através da linguagem, o domínio de vários idiomas permitirá um conhecimento mais aprofundado das características idiossincráticas de pessoas e culturas de outra nacionalidade. Se o que se pretende é a capacidade de desenvolvimento de actividades profissionais num espaço global e de integração dos indivíduos em equipas de trabalho transnacionais e multiculturais, o desenvolvimento de competências ao nível da linguagem e dos vários idiomas constitui um importante ponto de partida para a concretização destes objectivos.

Um conhecimento aprofundado dos idiomas comunitários aliado a uma capacidade de adaptação a fórmulas de trabalho e estilos de vida diversificados é condição indispensável para que os cidadãos da União Europeia possam beneficiar das oportunidades profissionais e pessoais geradas a partir de um mercado interior sem fronteiras (Rey, 1999). Por outro lado, a ausência deste tipo de conhecimento poderá conduzir a uma limitação de oportunidades e à exclusão / marginalização no âmbito do mundo laboral. Como refere Rey (1999, p. 388-389): “Un buen conocimiento de varias lenguas comunitarias se convierte en condición indispensable para que los ciudadanos de la Unión Europea puedan beneficiarse de las posibilidades profesionales y personales que les brinda la realización del gran mercado interior sin fronteras. Esta capacidade linguística debe completarse com la facultad de adaptarse a medios de trabajo y de vida marcados por culturas diferentes. (...) El futuro trabajador necessita mentalizarse de que saber idiomas es sinónimo de éxito profesional y de riqueza personal: conocer otras realidades, poder entrar en contacto com outra gente sin que el idioma sea una barrera es rentabilizar al máximo sus capacidades tanto humanas como professionales.

 

Venezia 2: a descrição de um projecto europeu

Tendo em conta esta necessidade, têm vindo a surgir, nos últimos anos, projectos europeus destinados a avaliar e promover competências transversais, como é o caso do projecto Venezia 2 (integrado no Programa Europeu Leonardo Da Vinci) que tem como principal objectivo a construção de um CD-ROM que possibilite a promoção do desenvolvimento de capacidades de leitura, escrita e comunicação em jovens com dificuldades de aprendizagem ao longo do seu percurso escolar e adultos com poucas qualificações. Através da construção multimédia de um cenário potencialmente motivador com vista a despertar o interesse daqueles a quem se destina (neste caso, a acção desenrola-se num restaurante típico de Itália e desenvolvem-se actividades e diálogos sobre este país), são apresentados vários exercícios repartidos em três graus de dificuldade, informações de teor prático (escritas e faladas) sobre diferentes temas relativas ao cenário apresentado e diálogos entre jovens acerca de questões com que se confrontam frequentemente na sua fase desenvolvimental (relações familiares, independência económica, projectos escolares, amizade, entre outros).

À medida se foi desenrolando a fase de experimentação deste CD-ROM, tornaram-se mais visíveis as suas potencialidades, nomeadamente, em relação ao público que poderá abranger: este CD-ROM parece ser igualmente interessante para jovens e adultos que pretendam aperfeiçoar ou consolidar os seus conhecimentos de uma língua estrangeira, permitindo uma apropriação das estruturas mais usuais e práticas de cada idioma. Neste projecto existem doze parceiros institucionais provenientes da França, Alemanha, Luxemburgo, Reino Unido e Portugal que são responsáveis pela tradução deste CD-ROM para o idioma de cada nacionalidade e pela adaptação deste instrumento ao contexto idiossincrático que pretende servir. Parece-nos este projecto um exemplo vivo de uma interacção transnacional a vários níveis:

(a) Ao nível dos processos: a construção partilhada deste instrumento implica um diálogo conjunto entre os vários parceiros que articulam as dimensões do global e do local, respectivamente, em relação ao contexto europeu mais abrangente e às especificidades do país onde irá ser implementado. Este tipo de interacção ao nível do processo de construção e criação de projectos tem vindo, nos últimos anos, a ser cada vez mais implementado devido ao enriquecimento que proporciona. Por um lado, o trabalho conjunto permite que profissionais de vários países integrem uma equipa multicultural e desenvolvam metodologias de trabalho partilhadas, diferentes daquelas habitualmente utilizam nos seus países de origem. Estes profissionais são chamados a desafiar os seus pressupostos e os seus métodos de trabalho, adaptando-os a uma nova situação, a novas formas de relacionamento, isto é, a um novo contexto, o cerne das denominadas competências transversais.

(b) Ao nível dos conteúdos: a temática da exploração de um país europeu (Itália) e a reunião de jovens de diferentes nacionalidades nas interacções apresentadas denuncia uma intenção de sensibilizar e promover a curiosidade dos utilizadores deste CD-ROM em relação a um universo europeu de pessoas e identidades culturais diversas. A partir dos estímulos apresentados neste CD-ROM, é possível, no contexto formativo, promover a exploração dos significados associados à interacção com pessoas de outros países e culturas. Parece constituir-se também como uma oportunidade de desmistificacão de crenças e mitos irracionais que advêm, frequentemente, do desconhecimento de diferentes realidades que se afastam das vivências mais próximas dos indivíduos. Este pode ser um meio para discutir diferenças (salientando aquilo que é particular e específico a cada país), bem como semelhanças entre as diferentes culturas. Em relação às semelhanças, parece extremamente importante a questão dos diálogos introduzidos sobre temas relacionados com este público – alvo e que transparecem muitos aspectos comuns a todos os países.

(c) Ao nível dos produtos ou resultados: a introdução nos países de origem de um “produto europeu”, isto é, um meio de promoção das competências transversais no âmbito da literacia a utilizar primordialmente no âmbito formativo. A criação e a posterior divulgação deste tipo de instrumentos permite a sensibilização quer dos indivíduos, quer dos meios empregadores para a emergência desta nova realidade das interacções transnacionais aos vários níveis. Poder-se-á considerar que estes produtos conferem visibilidade ao tipo de trabalho efectuado, facilitando e promovendo novos projectos e novos laços transnacionais.

Realça-se também que o formato em CD-ROM deste instrumento parece abrir ainda uma outra possibilidade que é, precisamente, a incorporação nas práticas formativas das novas tecnologias de informação/comunicação, cujo domínio é cada vez mais considerado uma competência básica para a integração na sociedade actual (Bruce, 1997; Bynner, 1999; Castro & Coimbra, 2000). De acordo com Bruce (1997) a literacia deve sempre ser compreendida em contexto, os seus significados vão-se transformando à medida que as pessoas usam novas representações e novas tecnologias no processo de leitura e escrita, estabelecendo-se assim uma relação dialéctica e mutuamente reconstrutiva entre a literacia e a sua matriz tecnológica. Se as exigências das relações que os indivíduos estabelecem com o mundo convidam cada vez mais a uma capacidade de constante adaptação, este tipo de dispositivo tecnológico (através da conjugação da sua estrutura, concepção visual, linguagem e conteúdos) poderá proporcionar o contacto com múltiplas perspectivas, complementando, neste sentido, os métodos mais tradicionais dos processos utilizados na aprendizagem da leitura e da escrita (Castro & Coimbra, 2000).Contudo, como qualquer tecnologia de informação/comunicação (TIC), este tipo de instrumento adquire diferentes contornos consoante os contextos no qual é acolhido. Apesar de se constituir como um meio susceptível de ser utilizado individualmente através das mais diversas actividades, este CD-ROM reveste-se de novas potencialidades se for integrado num contexto que lhe confira referências e significados particulares, por exemplo, no contexto de formação. Ao longo do processo formativo o CD-ROM pode ser objecto não só de “acção” por parte dos indivíduos, como também de “reflexão” sobre as actividades realizadas no âmbito de um contexto relacional, simultaneamente seguro e desafiante, constituído pelo formador e pelo grupo. Ao referir a relevância destas três dimensões para uma intervenção que vise o desenvolvimento situamo-nos numa lógica de exploração reconstrutiva (Campos & Coimbra, 1991; Coimbra, 1991) que articula a “...experiência de acção com a sua integração, decorrendo este processo no contexto de uma relação interpessoal significativa” (Campos & Coimbra, 1991, p.11).

Quanto à dimensão da acção, as actividades adquirem uma determinada intencionalidade, sendo possível equacionar as diferentes potencialidades do instrumento em questão. Assim, atendendo às necessidades particulares dos indivíduos que constituem o seu público-alvo, é importante que exista uma sistematização das actividades a realizar (promoção da discussão sobre determinado tema, realização de exercícios de papel e lápis, dinamização de trabalhos em pequeno grupo, entre muitas outras) e um ou mais agentes (formadores) que possam guiar o decurso das mesmas. Não se pretende defender uma abordagem formativa rígida e de carácter meramente instrutivo (o que destituiria os indivíduos do papel activo que deverão ter ao longo do seu processo de formação) mas sim, proporcionar os meios e as condições essenciais para a utilização deste CD-ROM e um convite à exploração das suas potencialidades.

Quanto à reflexão/integração, esta poderá conduzir a uma apropriação pelos sujeitos das estruturas subjacentes à acção, reenviando-os, num processo dialéctico, para as possibilidades de realização de novas e diferentes actividades. É importante que na utilização deste tipo de meios, como o CD-ROM Venezia 2, as actividades desenvolvidas sejam sempre acompanhadas de um processo de reflexão/integração para que os indivíduos tenham oportunidade de construir significados pessoais a partir das experiências que realizam no âmbito da formação.

Relativamente ao contexto relacional, as suas dinâmicas facilitam a criação de uma base segura a partir da qual se exploram as possibilidades de acção, como também o enriquecimento, pela heterogeneidade das características e níveis de desenvolvimento dos elementos do grupo, da reflexão/integração partilhada. A dinâmica acção/reflexão só poderá desenvolver-se a partir desta base segura que lhe confere um determinado enquadramento e significado.

Relembrando a necessidade premente e incontornável de eleger o desenvolvimento pessoal e social o principal referente da formação (cf. Coimbra, 2000), afigura-se importante repensar os contributos desta metodologia de intervenção –– denominada pela categorização, exploração reconstrutiva –– para as futuras direcções da formação. Este será um dos caminhos para que a formação se constitua enquanto agente consciente e interventivo nas sociedades actuais, proporcionando aos indivíduos experiências desenvolvimentais que lhes permitam usufruir das oportunidades “globais” do mundo actual e lidar mais adaptativamente com o seu “lado sombrio”, isto é, a incerteza, a instabilidade, imprevisibilidade e a insegurança, também elas “globais”.

 

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