Resumo

Muito poderia dizer-se sobre a relação entre a linguagem e o poder e sobre como esta relação está na base da construção de si mesmo, da experiência subjectiva, da identidade. Parece-me especialmente relevante explorar, numa perspectiva psicológica, (1) como a linguagem espelha o poder e a sua ausência e (2) como a estes, poder e não-poder, pode retirar perigosamente um sentido político. Passarei a debruçar-me mais cuidadosamente sobre cada um destes dois aspectos, relacionando-os com o processo de construção da identidade homossexual – por esta entendendo a apreensão subjectiva e vivencial de si enquanto gay ou lésbica - e referindo o papel fundamental que neste processo desempenham os significados opressivos da linguagem. Recorro a excertos discursivos de lésbicas e gays entrevistados no âmbito do projecto de Doutoramento que actualmente desenvolvo na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto com a designação Ser, pertencer, participar: construção da identidade homossexual, redes de apoio e participação comunitária. Finalmente, tentarei esboçar algumas ideias sobre o modo como a participação política em associações de defesa dos direitos homossexuais representa um contributo maior para a (re)construção da identidade de lésbicas e gays, ao tornar mais conscientes os significados opressivos nesta (re)construção encetados, assim oferecendo possibilidades de os combater.

 

I. Linguagem: Espelho do (Não-)Poder

É nas palavras e nos gestos do quotidiano que vamos construindo sentidos linguísticos, sentidos de poder e de não-poder. Todos reconhecemos que quem hesita, quem se descreve com dúvida, não está, por definição, muito seguro de si nem dos outros. Ao contrário, somos capazes de afirmar que gente com mestria nos gestos e nas palavras “há-de chegar longe”, “ser alguém na vida”. Esquecemos, no entanto, que estes diferentes níveis de “segurança” em si e nos outros se constroem em jeito de aprendizagem, se enraízam, se tornam involuntários. Pois bem, deixem-me citar alguns sujeitos entrevistados (a quem atribuo nomes fictícios) a propósito do que os seus contextos de vida lhes foram “ensinando”.

Em referência ao contexto familiar:

Maria - os meus pais sempre me disseram que o pior desgosto que podiam ter era que eu fosse uma lésbica, essa «coisa feia» (…); [depois de lhes ter contado que era lésbica] puseram-me de parte muito tempo; (…) eu, que até ali tinha sido o exemplo, a boa aluna, o orgulho, passei a ser a segunda filha, uma «defeituosa»

Em referência ao contexto académico:

João - [os meus colegas de escola] ofereciam-me nomes como «paneleiro», «bicha», «maricas» (…) e isto dignifica alguém ?!; (…) a professora gostava até de contar a história de Sodoma e Gomorra, terras onde «coisas porcas entre homens» os levava à morte

Certamente concordarão que contextos assim configurados justificam as hesitações que os sujeitos entrevistados referem ter sentido na definição de si enquanto homossexuais. Ouçamos, no que a estas hesitações toca, mais umas palavras:

Gabriel - havia sempre um sentimento de estranheza, um conceito [de homossexualidade] que eu desejava que não se aplicasse a mim e portanto eu não sabia o que [eu próprio] era, porque o que diziam ser bom [a heterossexualidade] também não me servia

Lurdes - começava a pensar: o que é que os outros vão dizer – a família, os amigos, os vizinhos? que nomes me vão chamar?, (…) e por isso era preferível estar calada, levando-me a fazer do meu mais belo desejo, o de poder amar outra mulher, o mais escondido dos meus segredos

Tocando antecipadamente as questões da participação associativa, refira-se que este enraizamento sistemático de um sentido menor de si comporta, logicamente, perigos de uma falsa-crença na impossibilidade de mudança. Não é difícil que mensagens recorrentes desta natureza retirem a lésbicas e gays a vontade de mobilização para a transformação social. Como afirmou Manuel, percebendo estes perigos e a possibilidade de os enfrentar:

[as associações de defesa dos direitos homossexuais] deram-me a descobrir, contrariando o que durante anos acreditei ser impossível, a enorme alegria de falar abertamente, de não ter medo, de gostar de mim, ao lado de gente com tantas cores, com tantos feitios, com tão diferentes experiências

 

II. Linguagem: Veículo para o Potencial Desinvestimento Político do (Não-)Poder

Quero centrar-me agora no problema dos estereótipos e no uso linguístico que sistematicamente deles é feito. Representam categorizações sociais abusivas, veiculam modos de poder, legitimam a opressão. E aqui chegamos, enfim, ao tema central do que partilho convosco: a homofobia. É dos estereótipos que esta vive, é pelo dizer e mostrar: “não gosto de, evito homossexuais” (na sua mais «simpática» versão!) que no mesmo saco são metidas as tão diferentes cores identitárias de que fui dando conta em ilustração discursiva. Assumam-se, então, as implicações desta noção de homofobia: se é fobia, vive de um objecto indiferenciado, ou seja, desde que pertença à categoria “homossexual” repele, é feio, evita-se; se é fobia, devia ser tratada, do mesmo modo que a heterofobia (alguém diz sofrer disto?!); se é fobia, desculpamos o fóbico porque doente se diz (onde está um homofóbico que se diga doente?!).

Faz-nos isto também questionar: porque pode a homossexualidade representar este “bicho mau” de que fogem os fóbicos? Como vimos anteriormente, alimentos para este “medo” parecem não faltar: os diferentes contextos de vida que fui sintetizando deram a perceber quanto de negativo e desvalorizante está comportado nos discursos que os entrevistados desenvolvem a respeito da (sua) homossexualidade. Dão também estes discursos a perceber como devagarinho, todos os dias, contribuem para que gays e lésbicas corram riscos de ir acreditando que podem efectivamente ser “bichos maus” – processo que habitualmente se conhece por homofobia internalizada.

Nada melhor do que ouvir quem disto sabe:

Fátima - durante longos anos senti-me mal em relação a esse meu lado [homossexual], que não era lado, era mesmo totalidade, mas que eu tentava afastar dos meus sentimentos; ao mesmo tempo, ia vivendo experiências afectivas [que reforçavam a vontade de me afirmar como lésbica], o que me causava ainda mais ambiguidade para comigo mesma

É com estes estereótipos que simplificamos a riqueza da diferença: que perigosamente passamos a acreditar que «homossexuais são todos iguais» – de preferência com “incompletudes” que se assemelhem. É com eles que quem oprime pretende jogar, seleccionando perversamente as atenções: porque em cada manifestação de orgulho lésbico e gay (que de orgulho só pretende ter a exacta medida do orgulho heterossexual) não é a riqueza da diferença que pinta os jornais, que recheia as conversas de (quase) todos nós, mas uma homogénea massa que a esconde. E é com eles, uma vez mais, que pomos em risco o sentido e a vontade da participação política: como fazer acreditar que vale a pena partilhar o que de não partilhável significa uma “massa de iguais”?

Carolina falou, em sentimento vivo, do estereótipo:

o que dói é o mundo abordar a homossexualidade de uma forma tão negativa; (…) de cada vez que ligo a televisão ou leio um jornal, de cada vez que ouço falarem de mim, percebo que o quem vem a público não é a comunidade [com todas as suas diferenças], mas uma colagem do que não tem a ver com ela: porque logo fazem de nós os prostitutos, os perversos, os pedófilos, ou qualquer outra coisa que jamais quisemos ser

 

III. Linguagem e Participação: Reconstruindo Identidades

Por fim, qual o sentido de participar social e politicamente? Voltemos aos dois temas maiores que aqui abordei, de novo levados pela mão discursiva dos sujeitos entrevistados.

 

III. 1. A respeito das palavras que espelham o poder e a sua ausência:

Guida (falando sobre o que, por intermédio da mobilização associativa, se “aprende” a dizer ao outro) - é quase preciso atirar à cara das pessoas: «eu sou lésbica e gosto muito de o ser»; penso que o movimento associativo torna isto quase uma necessidade em termos políticos, em termos de intervenção, ou seja, hoje os meus pais e os meus amigos já sabem [que sou lésbica] e aceitam-me como tal, e por isso eu não vou ter que estar a aturar nenhum comentário homofóbico de ninguém

Jorge (falando sobre o que, por intermédio da mobilização associativa, se “aprende” a dizer a si mesmo) - [na associação em que tenho participado] pude verificar que a verdadeira liberdade se baseia no facto de a pessoa, sem medos, poder dizer que é o que é , que a homossexualidade a descreve e que disso só há que fazer uma coisa positiva

 

III. 2. A respeito dos estereótipos, da consciencialização destes e do que pessoalmente é reconstruído no processo de combate aos mesmos:

André - eu tinha uma ideia estereotipada dos homossexuais, que era também a ideia que eu tinha de mim próprio e que ia buscar à sociedade; (…) foi pela participação [em associações de defesa dos direitos homossexuais] que descobri que essa ideia era errada, que somos pessoas perfeitamente normais, tão normais como todas as outras, e que entre nós há muitas diferenças, que são afinal as diferenças com que cada um de nós enriquece o mundo ao ser pessoa

A aprovação parlamentar, em Março de 2001, da extensão do estatuto legal de união de facto aos casais homossexuais é, a este respeito, digna de referência:

Salomão - o que, para mim e sobretudo, as associações conseguiram de verdadeira vitória ao verem aprovada esta lei foi alterar a ideia [estereotipada e homofóbica] de que a maior parte dos homossexuais não quer uma relação estável, (…), que apenas querem saltar de relação em relação: se é verdade que muitos de nós podem ainda não estar preparados para essa estabilidade, muitos outros de nós querem-na; (…) com esta lei, a noção de fidelidade fica validada e legitimada, o que dá aos outros uma imagem muito mais positiva da homossexualidade

Penso serem, estas, palavras bastantes para acreditar que, pouco a pouco, reformulamos um poder que não nos serve e o transformamos num outro poder, desejado e gratificante. Resta, a cada um de nós, uma cuidada reflexão sobre o que (não) dizemos, sobre o que gratuitamente calamos ou acusamos em torno de múltiplas formas de amar. Resta, a todos, a contribuição sistemática para que a palavra que cala e oprime, para que o gesto em insulto se reconfigurem e se transformem numa universal dignificação dos amores que sempre nos diremos. E que sempre lhes diremos.