Iremos discorrer sobre um trabalho de assessoria escolar realizado pela Equipe do Projeto Incluir, que teve como objetivo acompanhar a escola na inclusão de uma aluna. Ana, de oito anos, tinha hipótese diagnóstica de DGD (Distúrbios Globais do Desenvolvimento) e iria para a primeira série, em uma outra unidade da escola em que já estudava.

Após alguns encontros com a direção da escola, decidimos que o trabalho aconteceria por meio de supervisões com a própria direção e os cinco professores de Ana. Desde o início havia o pedido de que estivéssemos com a aluna em classe, pois a diretora queria que observássemos como a criança se comportava na escola.

No início destes encontros, a equipe encontrava-se extremamente queixosa de Ana, diziam não saber o que fazer com a aluna, que segundo a coordenação, chorava intensamente, não parava na classe, batia nos professores e soltava gritos repentinamente. Segundo os professores, seu comportamento incomodava não só a eles, como também atrapalhava a concentração das outras crianças.

A coordenação nos enderereçava a demanda de que pudéssemos responder sobre o que eles deveriam fazer com Ana. Nos perguntavam se ela era capaz de suportar a introdução dos limites e se era capaz de entender o que falavam, já que não se comunicava verbalmente com eles e mal respondia aos seus pedidos. Fazemos um parênteses, de que Ana não tinha nenhum comprometimento orgânico que justificasse o fato dela não falar; falava algumas palavras soltas.

Em nossas reuniões com a direção, eram freqüentes as visitas de Ana na sala onde estávamos. Quando isto acontecia observávamos que a equipe não realizava intervenções que a impedisse de estar ali, num local onde os outros alunos não podiam circular. Para Ana parecia ser permitido fazer o que queria, ela transitava pelas classes, ficava na sala da direção com os adultos. A equipe escolar não se dirigia a ela no sentido de interpretar a sua intenção de estar com os adultos, nem tão pouco barravam a sua permanência ali.

Diante desta paralisação que Ana causava na equipe escolar, entendemos que era preciso, naquele momento, acolher a angústia que viviam pelo inusitado que esta aluna desencadeava, mas também era preciso começar a questioná-los sobre o fato de deixarem Ana circular pela escola e de não introduzirem os limites educativos, limites estes fundamentais para todos os alunos e principalmente para uma aluna como Ana que parecia perdida diante desta nova situação escolar.

Ana teria que aprender a lidar com as novas referências que esta escola lhe apresentava, tarefa complexa que só se efetivaria com a ação dos professores no sentido de ajudá-la a compreender as novas mudanças. Se para a escola estava difícil entendê-la, podemos supor que para Ana, enfrentar estas mudanças não era diferente.

Nossas primeiras intervenções foram no sentido de tentar resgatar, junto à escola, sua possibilidade de educar Ana, deixando claro para ela, as regras já existentes, mesmo que isso pudesse provocar uma crise de choro, gritos ou reações corporais em qualquer um que introduzisse as leis da escola, leis necessárias pois regulam o convívio social.

As dúvidas trazidas pela escola: se Ana era uma criança inteligente, se poderia ser educada como os outros e se deveria estar na escola regular, eram freqüentes, assim, insistiam no pedido de que a observássemos em sala de aula para que avaliássemos o quão difícil era a tarefa de mantê-la na classe.

Acolhemos esta demanda, sem, no entanto, atendê-la, justamente por supormos que os próprios professores poderiam lidar com estes impasses. Propusemos, então, por meio de encontros individuais com estes professores, a reflexão sobre sua prática, na intenção de resgatar os interesses que Ana apresentava e assim ajudá-los a pensar em maneiras de aproveitar os próprios recursos dela, conciliando-os com a temática das aulas.

Neste sentido, uma intervenção significativa neste processo se deu a partir de uma idéia do professor de Educação Física. Este professor sugeriu que Ana tivesse a companhia de um outro aluno durante o período na escola, que a ajudasse tanto nas atividades, quanto a permanecer na classe, já que sua relação com os colegas estava bastante preservada (lembremos que ela só batia nos adultos).

A partir dessa parceria com os colegas, Ana passou a ficar mais em sala de aula, parou de bater nos adultos e passou a interessar-se pelas atividades dos colegas, pois sua apostila era diferente da deles. Uma das professoras que dava aula para a classe da Ana, teve essa percepção, e sugeriu que ela tivesse a mesma apostila que os outros. Após estas intervenções, foram feitos diversos comentários de Ana, tais como: “ela leu o ano letivo”, “ela está na fase pré-silábica”, ou ainda, que estava falando, diferentemente de antes, muitas palavras.

Aos poucos, nestes encontros, os professores começavam a discorrer que percebiam que Ana era capaz de entender o que falavam para ela e também , que, se ela não respondia ao que pediam poderia ser pelo fato de não querer ouví-los, e, não simplesmente pelo fato de não entendê-los.

Alguns professores passaram a pensar que Ana batia nos adultos pois eles poderiam não estar entendendo o que ela queria lhes dizer, ou porque, talvez quisesse chamar a atenção para algo, já que não conseguia se expressar com palavras. Deixaram de lado a idéia que ela batia por “maldade”, ou que este era um ato de “descarga de energia”, “um reflexo”.

Ana também passava a ser reconhecida por sua habilidade e interesse em recortar e colar, que a destacava perante o grupo e que a fazia pertencer significativamente ao universo escolar. Esta sua habilidade suscitava muita surpresa nos professores, surpreendidos pela discrepância entre atitudes tão bizarras de Ana e sua habilidade em recortar, como se ela não pudesse ser capaz de realizar algo tão bem.

Foi interessante acompanhar como a equipe foi conseguindo se desfazer da idéia inicial que tinham de Ana, a idéia de que talvez não fosse aquela escola o lugar para ela. Este Acompanhamento, sustentado pela escuta, abriu espaço para que os profissionais percorressem o caminho da queixa e da impossibilidade de trabalhar com a aluna, para a construção de uma educação possível. Intervenção esta, que possibilitou à Ana ser olhada como uma aluna, o que por sua vez, restituiu aos professores seu lugar de educador.

Encerramos nosso trabalho na escola numa reunião com todos os professores e a direção, na qual todos puderam falar dos ganhos de Ana e dos seus próprios ganhos diante desse grande desafio. Como uma professora disse: “No começo a gente agüentava, agora é diferente.”