Não pretendo traçar aqui uma história ou uma descrição exaustiva do desenvolvimento da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP) ou da psicologia fenomenológico-existencial organísmica, chamada de humanista, mas destacar o que parecem ser linhas fundamentais de seu processo de constituição.

Recebemos, no Brasil, e na América Latina, uma ACP e uma Psicologia humanista que decorrem de intensas fermentações de certas tendências da psicologia, da filosofia e da cultura em geral no interior da Cultura Norte Americana no início do século e até a década de setenta. Se observarmos com atenção, há como que um encontro de águas filosófico, de teória psicológica e cultural, que envolve, num primeiro momento, num período cultural e politicamente agitado, um encontro de vertentes da filosofia, da psicologia e da cultura européias, com vertentes da filosofia, da psicologia e da cultura norte americanas. Este encontro particular destas vertentes, desdobra-se, desde o período anterior a segunda guerra, até os anos setenta. E constitui a formulação básica das psicologias humanistas, e da ACP em particular.

Num segundo momento, e vendo o processo de nossa perspectiva, resultados dos encontros das vertentes européias e norte-americanas transbordam para a América Latina e para o Brasil. São, inicialmente, recebidos de um modo um tanto acrítico e impessoal, digamos, como talvez não poderia deixar de ser. E constituem-se como alternativas no campo das psicologias, das psicoterapias, das pedagogias e de outras abordagens das relações humanas.

Progressivamente, entretanto, as perspectivas psicológicas, filosóficas e culturais latino americanas, e brasileiras, em particular, em nosso caso, começam a marcar um presença crítica diferenciada, e a reinvidicar perspectivas próprias, no processo de constituição destas abordagens em nosso meio. Desenvolve-se um movimento vigoroso neste sentido, a partir do início da década de oitenta. Podemos falar, assim, pelo menos em nosso meio, de uma vertente brasileira e latino americana, no processo de constituição da ACP e da psicologia humanista entre nós. De modo que a recepção dos produtos do encontro de uma vertente européia com uma vertente norte americana não mais se dá de um modo passivo. Há a constituição de uma perspectiva brasileira e latino americana, e que participa diferenciadamente do encontro das águas que constituem a ACP e a psicologia e psicoterapia fenomenológico-existencial organísmica, dita humanista.

 

1. VERTENTE EUROPÉIA.

A FILOSOFIA DA VIDA DE F. NIETZSCHE.

Falar da vertente européia de constituição da ACP e da psicologia humanista é remontar, inevitavelmente, à contribuição de F. Nietzsche ao processo de constituição da cultura da Civilização Ocidental. Porque foi Nietzsche, na segunda metade do século passado, quem, opondo-se às tendências predominantes nas religiões, na filosofia, na ciência, na moral, afirmou o valor incondicional do corpo, dos sentidos e do vivido, da vida e da vivência humana, tal como elas se manifestam em sua espontaneidade. Precisou antagonizar-se com a religião, pesadamente animada por uma perspectiva socrática de desvalorização do corpo e da vida. O ideal ascético, em sua forma religiosa, sempre foi um dos grandes algozes do corpo e da vida, do vivido e da autonomia humana no âmbito da cultura da Civilização Ocidental. Sempre com o pressuposto de um além, de uma vida além, à qual a vida do aquém deveria sacrificar-se. Afirmar o valor incondicional da vida do aquém e da perspectiva do vivido, foi um mérito da filosofia Nietzscheana. Nietzsche precisou confrontar-se desta forma com uma filosofia idealista, que desmerecia a subjetividade e a perspectiva do vivido em privilégio de uma verdade universal, conceitual e abstrata.

Em sua crítica da cultura ocidental, Nietzsche atacou mesmo a ciência como modo de produção da verdade, entendendo-a como subalterna à arte neste sentido, na medida em que a arte privilegia o vivido em suas intensidades e fluxos, e compromete-se, desta forma, com a afirmação deste vivido, da vida, e com a criação, com a criatividade expressiva de uma superabundância de forças de vida. Nietzsche busca fazer uma crítica do que ele chamou de inversão socrática, como inversão perpetrada pela filosofia de Sócrates na perspectiva de valor da cultura pré-socrática. Os pré-socráticos valorizavam fundamentalmente o corpo, os sentidos e o vivido, enquanto que Sócrates expressa os fundamentos de um tipo de cultura que despreza-os e que passa a valorizar o abstrato e o teórico. Com isto, Nietzsche re-lança na cultura moderna da civilização ocidental os fundamentos da perspectiva ética de afirmação do vivido, de constituição dele como fundamento do verdadeiro e dos valores, perspectiva ética de afirmação do corpo e dos sentidos, que vai constituir posteriormente um fundamento básico das psicologias fenomenológico-existenciais organísmicas, ditas humanistas, e da ACP.

 

S. KIERKEGAARD

Anos antes de Nietzsche, que viveu na Alemanha, Kierkegaard contrapôe-se, na Dinamarca, a perspectivas filosóficas que desvalorizam a perspectiva do indivíduo e da subjetividade. Desenvolve toda uma reflexão em que afirma o valor da perspectiva da subjetividade e do indivíduo, criticando em particular a perspectiva universalizante, sistematizante e conceitual da filosofia de Hegel.

Jean Wahl, comentando a filosofia de Kierkegaard, observa:

"À procura da subjetividade que encontramos em Hegel, à paixão e ao desejo da totalidade, Kierkegaard vai opor a idéia da verdade como subjetividade. (...) À força do conhecimento, afirma, esqueceram-se do que era existir. (...)

‘É necessário procurar uma verdade que não é uma verdade universal, mas uma verdade para mim’. Uma idéia para a qual eu quero viver e morrer.

Ao pensamento hegeliano vai, portanto, Kierkegaard opor a paixão. O perigo do pensamento hegeliano é fazer-nos perder a paixão.(...)

O hegelianismo comete o erro de querer explicar todas as coisas. As coisas não devem ser explicadas, mas vividas. Assim, em vez de querer aprender uma verdade objetiva, universal, necessária e total, Kierkegaard dirá que a verdade é subjectiva, particular e parcial (...). O pensamento nunca pode atingir senão a existência passada ou a existência possível; mas a existência passada ou a existência possível são radicalmente diferentes da existência real.

(...) onde há existência não pode realmente haver conhecimento."

Diferentemente de Nietzsche, entretanto, Kierkegaard assume uma perspectiva eminentemente religiosa, cristã, à qual dedica a sua reflexão filosófica. Não obstante, sua reflexão vai constituir-se como uma das mais importantes fontes do Existencialismo moderno. Que vai assim, desde esta origem, possuir também uma vertente religiosa – ilustrada, por exemplo, por Gabriel Marcel e outros. Vertente esta que desdobra-se ao lado de outras vertentes do Existencialismo que afastam-se de qualquer perspectiva religiosa e configuram-se mesmo como anti-religiosos, sofrendo com certeza a influência das perspectivas de Nietzsche, como é o caso de Sartre.

Não obstante, se são discerníveis as influências de F. Nietzsche e S. Kierkegaard nas origens das psicologias e psicoterapias fenomenológico existenciais, já não é tão nítida uma contribuição de outros existencialistas, influenciados pelos trabalhos de Kierkegaard e de Nietzsche.

 

A FENOMENOLOGIA

A Fenomenologia teve uma profunda influência nos desenvolvimentos das vertentes da Psicologia que desaguam na constitutição da Psicologia e Psicoterapia Fenomenológico-Existencial organísmica, desde os trabalhos pioneiros de de Brentano e de Stumpf. A obra de Edmund Husserl criou, a partir dessas influências, toda uma revolução nas perspectivas de produção do conhecimento na Civilização Ocidental. Husserl partiu de uma crítica da metafísica, e de uma crítica do positivismo, para constituir uma abordagem epistemológica e uma ontologia fundamentadas não em pressupostos teóricos mas na própria vivência de consciência pré-reflexiva do sujeito cognoscente, em sua correlação intrínseca com o mundo. Elege assim a vivência de consciência pré-reflexiva do sujeito cognoscente como o critério de produção do conhecimento.

Esta postura de Husserl tem efeitos imediatos na psicologia e, em particular, na psicoterapia, criando junto com as posturas existencialistas uma alternativa aos modelos psicanalíticos e comportamentais.

Todo um conjunto de abordagens psicológicas e psicoterápicas originais vão desenvolver-se a partir da perspectiva da fenomenologia, conjugada com as perspectivas do existencialismo. Dentre elas a Escola da Psicologia da Gestalt, desenvolvida pelos alemães W. Kohler, K. Koffka e M. Wertheimer, que vai se propor explicitamente o desenvolvimento de uma psicologia fenomenológica, servindo assim como importante suporte para o desenvolvimento de linhas de psicologia e psicoterapia fenomenológico existenciais, em particular da psicologia organísmica desenvolvida por K. Goldstein.

Estas psicologias e psicoterapias vão ter fundamentalmente como método a valorização de uma atitude fenomenológica, e mesmo como objetivo o desenvolvimento da habitualidade de uma atitude fenomenológica. Como pano de fundo estará sempre o pressuposto de que é a perda desta habitualidade de uma atitude fenomenológica o fator preponderante no desenvolvimento dos distúrbios e desajustes humanos, assim como na perda de seus potenciais criativos.

Uma epistemologia e uma ontologia fenomenológicas, e uma afirmação existencial da vivência de consciência, do vivido, passam a constituir-se, assim, como um eixo fundamental das abordagens fenomenológico-existenciais em psicologia e psicoterapia.

 

A FILOSOFIA DIALÓGICA DA RELAÇÃO DE MARTIN BUBER.

À medida em que a psicologia e a psicoterapia vão ganhando colorações francamente fenomenológicas e existenciais, desenvolve-se um questionamento acerca do papel e da auto-concepção do psicólogo e do psicoterapeuta. Este papel e auto-concepção passam por um crítica severa, e pela redefinição de sua relação com o cliente. O psicólogo e o psicoterapeuta já não podiam ser mais um ser ou um agente meramente objetivista ou metafísico. Nesta linha, Ronald Laing, um psicoterapeuta fenomenológico-existencial inglês, diria, tempos depois: "Ninguém encontrará a pessoas estudando-as meramente como objetos..."

Laing captava a questão em seus fundamentos. Ele não falava meramente dos clientes, falava igualmente dos profissionais. Se o cliente não é meramente objeto, o psicólogo, o psicoterapeuta, igualmente, não são meramente sujeitos. Muito menos sujeitos técnicos, que aplicam um certa tecnologia sobre os clientes, ou supostos objetos de conhecimento e de intervenção.

Valorizou-se fundamentalmente, em psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial, a perspectiva de que o psicólogo e o psicoterapeuta são fundamentalmente sujeitos de relação. De uma correlação intrínseca e ativa que envolve vivencialmente os envolve no encontro com o cliente, dentro dos limites da instituição em que este encontro ocorre.

Mais que isto, constatou-se o poder da valorização desta relação no sentido do desenvolvimento do cliente, e mesmo do terapeuta.

A filosofia dialógica da relação de Martin Buber estava por trás destes desenvolvimentos na concepção do papel do psicoterapeuta e mesmo na re-conceituação da psicoterapia e do trabalho em psicologia, na medida em que ele exercia forte influência sobre os psicólogos e psicoterapeutas fenomenológico-existenciais pioneiros. Num segundo momento, a filosofia de Buber serve como importante perspectiva de esclarecimento da natureza de processos que se desenvolvem com a prática do modelo fenomenológico existencial de psicologia e psicoterapia, para quem, praticando este modelo, não estava familiarizado com as perspectivas desta filosofia.

A filosofia dialógica da relação de Martin Buber tematiza a coisificação natural, e não natural, da condição humana. E a possibilidade de sua superação, pela afirmação da relação que nos engaja na concretude de nossa existência, seja na esfera da relação com a natureza não humana, com os outros seres humanos, ou com a esfera espiritual. Buber nos oferece uma perspectiva de vivência e de compreensão das possibilidades naturalmente transformadoras do encontro dialógico, em particular do encontro inter-humano com o cliente.

 

A PSICOLOGIA ORGANÍSMICA DE KURT GOLDSTEIN

Kurt Goldstein foi um médico neuropsiquiatra, fundamentado na teoria fenomenológica da Gestalt, que se desconstruiu a si próprio, no sentido da constituição de uma psicologia e de uma psicoterapia fenomenológica. De um eminente neuropsiquiatra e pesquisador, Goldstein morreu estudando fenomenologia e existencialismo. Antes disto, entretanto, estabeleceu com o seu trabalho as bases da psicologia organísmica, fundamentado nas concepções da psicologia fenomenológica da gestalt, e em seus estudos neurológicos com pacientes que haviam sofrido lesão cerebral decorrente de traumatismo de guerra.

Seus estudos deram-lhe o fundamento para insurgir-se contra a psicologia cartesiana institucional de então, em particular contra a psicologia de Wundt. Goldstein contrapôs os seus estudos, no âmbito da revolução da Gestalt, a uma psicologia fundamentada na distinção corpo-mente, e na compartamentalização do corpo e do psiquismo humano em funções independentes, sem uma consideração adequada para com os importantes aspectos de seu funcionamento sistêmico. Em particular, sem uma consideração adequada para com as capacidades de auto-regulação e de auto-atualização sistêmicas do organismo.

Influenciado por W. Reich, Goldstein valorizou fundamentalmente estas capacidades de auto-regulação e de auto-atualização do organismo como fundamentos de sua compreensão do ser humano e de sua psicologia organísmica. E é esta sua psicologia organísmica que oferecerá um importante fundamento para as psicologias e psicoterapias fenomenológico existenciais, em particular tal como elas se constituem nos trabalhos de A. Maslow, F. Perls e Carl Rogers.

 

PSICOTERAPEUTAS FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAIS EUROPEUS.

Freud ainda era vivo quando a fenomenologia e o existencialismo começaram a invadir certos segmentos do movimento psicanalítico. Isto ocorreu tanto na Alemanha, como na Suíça, como na França e nos Estados Unidos. Alguns psicanalistas começaram a ser influenciados pelas perspectivas da fenomenologia, de Heidegger, da filosofia da vida de F. Nietzsche e do existencialismo de S. Kierkegaard, e passaram a criticar os aspectos deterministas e biologizantes, e o papel fortemente tecnicista do terapeuta na concepção psicanalítica.

Foram os primeiros psicoterapeutas fenomenológico existenciais formais de que se tem notícia. Ludwig Binswager fundou um instituto de Psicanálise na Suíça, era bastante próximo de Freud, e assim continuou. Mas desviou-se dos conceitos psicanalíticos e desenvolveu uma abordagem ligada às perspectivas fenomenológicas e existenciais de Heidegger, e que tinha como interêsse fundamental não a análise no sentido psicanalítico do termo, mas a análise da estrutura da existência do cliente em sua facticidade e afetividade próprias.

M. Boss e E. Minkovski foram dois expoentes deste momento pioneiro do desenvolvimento das psicologias e psicoterapias fenomenológico existenciais. Foram eles, junto com K. Goldstein, que exerceram uma forte influência no processo de desenvolvimento dos psicoterapeutas fenomenológico existenciais norte americanos.

 

DISSIDENTES DO MOVIMENTO PSICANALÍTICO

Outros dissidentes do movimento psicanalítico, e que desenvolveram sistemas próprios tiveram uma marcada influência no desenvolvimento da psicologia e psicoterapia fenomenológico-existencial, em particular sobre o seu momento norte-americano. Dentre estes podemos destacar a C.G. Jung, W. Reich, S. Ferenczi, O. Rank e os culturalistas E. Fromm, K. Horney e H.S. Sullivan.

Com a sua psicologia profunda Jung assenta uma crença na benignidade da natureza humana, que vai potencializar e reforçar, de dentro da psicanálise, idênticas perspectivas da psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial. Com o seu conceito de individuação como uma apropriação cada vez mais plena do homem das camadas mais profundas de seu ser e de sua vinculação com o universo, e com uma compreensão deste processo como o desdobramento da própria saúde do ser humano, Jung contrapôs-se a um modelo psicanalítico freudiano, que bipartia a natureza humana em pulsão de morte e pulsão de vida, e que entendia uma necessidade de coação social para que o ser humano não realizasse justamente aquilo o quê ele seria mais profundamente: para psicanálise um poço de instintos destrutivos e anti-sociais.

Para Jung não. Em seus níveis mais profundos é que residia para ele a saúde do ser humano, e o desdobramento desta saúde era extamente, para ele, a apropriação e integração em sua personalidade pela pessoa destes níveis mais profundos de seu ser.

Além de ter marcado a história da psicanálise tradicional, através de seus estudos sobre a análise das resistências, Reich configurou-se como um dos seus mais notórios dissidentes. Reich trouxe o corpo para a psicoterapia. através de suas reflexões, a psicoterapia e a própria concepção da natureza humana em psicoterapia passou a valorizar o corpo e a deslocar-se de uma perspectiva de super-valorização e reificação do psíquico. Foi Reich um dos primeiros a sustentar a perspectiva de uma auto-regulação organísmica.

S. Ferenczi e O. Rank marcaram um momento forte dentro da psicanálise de descrença com relação à aplicação de técnicas, e de valorização da relação imediata entre o terapeuta e o cliente como fator de potencialização deste. Foram explícitos em sua crítica a uma postura eminentemente técnica.

Mais que isto, O. Rank foi profundamente influenciado pelas perspectivas de F. Nietzsche, e buscou integrar estas perspectivas como fundamento de seu sistema de psicoterapia. Dizia estar para Freud assim como Nietzsche estava para Schopenhauer. É esclarecedora a passagem de Deleuze, que mencionei em outro momento, comentando a relação de Nietzsche com Freud. Deleuze diz o seguinte:

"Do que precede, deve-se concluir que Nietzsche exerceu influência sobre Freud? Segundo Jones, Freud negava-o formalmente. A coincidência da hipótese tópica de Freud com o esquema Nietzscheano explica-se suficientemente pelas preocupações ‘energéticas’ comuns aos dois autores. Seremos ainda mais sensíveis às diferenças fundamentais que separam suas obras. Pode-se imaginar o que Nietzsche teria pensado de Freud: aí ainda ele teria denunciado uma concepção muito ‘reativa’ da vida psíquica, uma ignorância da verdadeira ‘atividade’, uma impotência em conceber e em procurar a verdadeira ‘transmutação’. Isto pode ser imaginado com mais verossimilhança visto que Freud teve entre seus discípulos um nietzscheano autêntico. Otto Rank devia ter criticado em Freud ‘a idéia insípida e terna de sublimação’. Ele reprovava Freud por não ter sabido liberar a vontade da má consciência ou da culpabilidade. Queria apoiar-se nas forças ativas do inconsciente, desconhecidas para o freudismo e substituir a sublimação por uma vontade criadora e artista. Isto o levava a dizer: sou para Freud o que Nietzsche era para Schopenhauer. Cf. RANK, A Vontade de Felicidade."

Otto Rank emigrou para os EUA e lá teve forte influência, a partir de suas perspectivas -- que valorizavam a relação espontânea entre o terapeuta e o cliente e a potencialização da criatividade -- sobre o meio do qual emergiria a psicologia humanista norte americana, em particular sobre Rogers.

Os chamados Culturalistas - Erich Fromm, Karen Horney, e H.S. Sullivan -- foram, dentre os psicanalistas, importantes fontes de inspiraçãoi para a psicologia humanista. Traziam consigo da Europa - para os Estados Unidos, no caso, em particular de Fromm e Horney -- toda a densidade teórica e institucional da psicoterapia psicanalítica européia. Mas desviaram-se dos fundamentos biologistas de Freud para desbravarem a nova perspectiva da reflexão cultural no âmbito da psicologia e da psicoterapia. No caso de Fromm, enfatizou explicitamente a benignidade do potencial humano e a sua tendência natural a uma explicitação produtiva e saudável, num meio que atendesse a suas necessidades básicas. Sullivan enfatizou o papel da relação entre o terapeuta e o cliente como um dos fatores fundamentais da produtividade do processo terapêutico. Teve, desta forma, assim como Ferenczi e Rank, marcante influência sobre o desenvolvimento das linhas de psicoterapia humanistas que desconfiaram do primado da técnica para privilegiar a relação imediata e natural com o cliente no processo do trabalho psicológico e psicoterapêutico.

Estamos aqui, já, na interface entre as vertentes Européia e Norte Americana. Fromm, Horney emigraram da Europa para a América e aqui viveram grande parte de suas vidas, elaborando o seu trabalho e suas obras. Naturalmente que suas idéias foram marcadamente influenciadas pelo meio no qual passaram a viver, trabalhar e escrever.

 

GESTALTERAPEUTAS

Ainda na interface entre as vertentes Européia e Norte Americana, não podemos deixar de mencionar os Gestalterapeutas. A Gestalterapia tanto influenciou e foi influenciada pela psicologia humanista Norte Americana que tornou-se uma de suas correntes reconhecidas. Na verdade, a ACP e a Gestalterapia desenvolveram-se no sentido de uma forte e interessante convergência, que manifesta-se de um modo mais claro em países como o Brasil.

Estas convergências poderiam ser entendidas como convergências anunciadas, uma vez que raízes fundamentais da Gestalterapia são igualmente raízes da Psicologia Humanista norte americana, tais como a psicologia organísmica de K. Goldstein, a fenomenologia e a filosofia da vida de F. Nietzsche. Não podemos esquecer o poderoso vículo que representa para estas abordagens a filosofia dialógica da relação de M. Buber.

É importante destacar, todavia, que, não obstante as convergências, há particularidades.

A gestalterapia é um embrião totalmente concebido na Europa, diferentemente das demais abordagens da chamada psicologia humanista. Esteve muito mais próxima, na figura de seus fundadores, das fontes originais da Fenomenologia, do Existencialismo, da Filosofia do Diálogo de Buber, da Psicologia Organísmica, da Mística Judaica, da cultura e dos conflitos da Europa.

De modo que, incorporada ao meio da Psicologia Humanista norte americana, trazia muito fortemente marcada a influência destas origens, no estilo de Fritz Perls, na formação de Laura Perls e de outros getalterapeutas.

Sofreu e sofre influências marcadas da vertente Norte Americana, mas igualmente a influenciou e influencia, a partir destas suas peculiaridades.

 

2. ENCONTRO DAS ÁGUAS 1. O ENCONTRO DAS ÁGUAS EUROPEU.

Há, na constituição da psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial, que depois redundará na psicologia humanista, o que talvez possamos chamar de um primeiro encontro das águas. Um encontro das águas especificamente europeu.

Acredito que este encontro das águas realiza-se, em primeiro lugar, na Psicologia Organísmica de K. Goldstein, na medida em que esta, partindo de sólidos fundamentos neurológicos, vai incorporar as idéias de auto-regulação do organismo, em grande medida devidas a Reich, e as perspectivas da Fenomenologia, através da mediação da Psicologia da Gestalt de Kohler, Kofka e Wertheimer.

Por outro lado, a pioneira Psicoterapia Existencialista européia também corporifica, nos trabalhos de Binswanger, Boss, Minkovski e outros uma importante dimensão do encontro das águas europeu, na medida em que recebe os influxos diretos da filosofia da vida de F. Nietzsche, das filosofias de Kierkegaard, de Heidegger e da fenomenologia de Husserl, além de importantes inspirações da psicologia organísmica de K. Goldstein.

Não podemos esquecer, igualmente, que a Gestalterapia originária é fundamentalmente parte deste processo de encontro das águas europeu. Dentre outras raízes, a gestalterapia originária, sintetizada por F. Perls, integra as influências originais da Fenomenologia e do Existencialismo europeus, aí incluindas as perspectivas da filosofia da vida Nietzsche.

Um lugar de destaque na constituição desta vertente estará reservada à influência da Filosofia Dialógica da Relação de M. Buber, na medida em que Laura Perls, esposa de Fritz e uma das pioneiras, foi sua aluna. Fritz Perls foi igualmente influenciado pelas perspectivas de Buber, que expressaram-se na constituição de sua abordagem.

A Gestalterapia originária integra igualmente as perspectivas da Fenomenologia através das obras dos teóricos da Escola da Gestalt, com um diferenciado lugar para a teoria de campo de K. Lewin. A psicologia organísmica de Goldstein é igualmente uma importante raiz no processo de constituição da Gestalterapia, que integra, também através desta, as perspectivas da fenomenológicas da Gestalt. A Gestalterapia é, em seguida, transplantada para os EUA, depois de uma escala na África do Sul.

 

3. A VERTENTE NORTE AMERICANA

As perspectivas da Fenomenologia e do Existencialismo como possibilidades de abordagens de psicologia e de psicoterapia foram recebidas com reservas, de um modo polêmico, mas igualmente com muito entusiasmo nos Estados Unidos. Para certo tipo de psicoterapeuta e psiquiatra, e, a seguir, de psicólogo norte americano elas cairam como uma benção, já que configuravam uma nova e potente alternativa para uma dicotomia entre a abordagem psicanalítica e a abordagem comportamental.

Com a grande capacidade da cultura dos EUA para assimilar a novidade que comporte possibilidades produtivas, as linhas gerais da fenomenologia e do existencialismo foram entusiasticamente incorporadas pela cultura da psicologia e da psicoterapia norte americanas. Nos EUA estas perspectivas foram intensa e criativamente trabalhadas e elaboradas, amalgamando-se com perspectivas próprias da cultura local. O que resultou numa revolução sem precedentes na história da psicologia e da psicoterapia, resultando, em particular, na consolidação teórica e prática de uma abordagem fenomenológico existencial de psicologia e de psicoterapia.

 

WILLIAM JAMES E A PSICOLOGIA CIENTÍFICA PRAGMÁTICO EMPIRISTA NORTE AMERICANA.

A psicologia científica universitária norte americana desenvolveu-se fortemente influenciada pelas idéias pragmático empiristas de W. James. Foi no âmbito desta psicologia que aportaram as idéias da Fenomenologia e do Existencialismo como possibilidades de abordagens de psicologia e de psicoterapia. Um grupo de psicólogos, como observamos, buscava alternativas para os excessos do behaviorismo e para as perspectivas fortemente teorizantes e tecnicistas da psicanálise.

No que pesem todas as diferenças e conflitos entre a mentalidade vigente na psicologia universitária científica norte americana - herdeira das idéias pragmáticas de James, e dos filósofos empiristas ingleses - e as perspectivas da fenomenologia e do existencialismo, houve uma profícua integração entre ambas as perspectivas, pelo menos até certo ponto, o que resultou na constituição da psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial organísmica, dita humanista, nos EUA.

Por outro lado, é interessante observar que certas perspectivas da filosofia de James potencializavam este encontro. Muito especialmente a sua crítica e aversão a perspectivas e concepções absolutistas e aprioristas em filosofia, representados para ele pelo hegelianismo. James contrapunha-se ao elementarismo psicológico da Psicologia Experimental de Wundt, confrontado igualmente pela Fenomenologia desde Brentano e Stumpf, e em particular pela Teoria da Gestalt, em privilégio de uma valorização da experiência fenomenal.

A concepção de verdade de James permitia uma integração com as perspectivas fenomenológico existenciais, em particular ao nível da psicologia e da psicoterapia, ainda que suscitassem conflitos a níveis filosóficos mais profundos. Para James

"A verdade (...) deixa de ser concebida como adequação entre o pensamento e o pensado, a mente e a realidade exterior, ou então como coerência de idéias entre si para tornar-se funcional. Nessa ordem de idéias, uma proposição é considerada verdadeira na medida em que possa orientar o homem na realidade circundante e conduzí-lo de uma experiência até outra. A verdade -- para James --não é algo rígido e permanente; pelo contrário, modifica-se e expande-se sempre."

(...) A verdade deve satisfazer a duas condições diferentes. Em primeiro lugar o pragmatismo de James salienta a necessidade de as proposições exigirem comprovação para serem admitidas como verdadeiras. Neste sentido a verdade seria a verificabilidade. (...) Essa primeira condição da verdade, estabelecida pelo pragmatismo entende ‘consequência prática’ como um modo de ‘consequência teórica’. A segunda condição estabelecida por James para a identificação de uma verdade consiste no seu valor para a vida concreta. Esses dois modos de conceber a verdade unem-se na concepção de verdade como algo essencialmente ‘aberto’ e em constante movimento. Em síntese, para William James, a verdade não é algo feito ou dado; é algo que ‘se faz’ dentro de uma totalidade também em constante processo de ‘fazer-se’.

A nível de uma reflexão filosófica mais particularizada, esta concepção certamente choca-se com perspectivas da fenomenologia e do existencialismo. Em particular em torno das questões relativas a este princípio de utilidade da verdade na existência, que já animava as críticas de Nietzsche à perspectiva dos filósofos empiristas e dos evolucionistas ingleses. Mas, no encontro das águas da vertente européia com a vertente norte americana de psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial estas perspectivas da filosofia pragmática de W. James serviram como um poderoso gancho de integração entre a mentalidade da psicologia pragmática norte americana e as influências fenomenológico existenciais que lhe chegavam, então, da Europa.

A verdade não era absoluta, como queriam as correntes filosóficas a que ambas as tendências se opunham, a verdade era produto de construção e estava intimamente associada à existência e ao vivido, a verdade não era teórica.

Esta integração de perspectivas pragmáticas com perspectivas fenomenológico existenciais forneceu importantes e preciosos suportes e possibilidades para o trabalho psicológico e, em particular, para as urgências e emergências do trabalho psicoterápico, com clientes em crise existencial, em sofrimento intenso, e carentes de transformação e de superação de seu status-quo, carentes de construção de verdades novas, a partir dos dados de suas vidas, de seus sentidos e potencialidades e das urgências de suas existência.

 

PSICOTERAPEUTAS EXISTENCIALISTAS NORTE AMERICANOS

A. Maslow, R. May, A. Angyal constituíram destacadamente um segmento e um núcleo pioneiro de psicoterapeutas existenciais norte americanos. Médicos psiquiatras, foram profundamente influenciados pelas idéias de K. Goldstein e pelas perspectivas da fenomenologia e do existencialismo em psicologia e psicoterapia.

Maslow foi um importante pesquisador e teórico da psicologia norte americana, realizando estudos sistemáticos acerca das necessidades humanas e acerca da auto-atualização da personalidade e do que ele veio a chamar de personalidade auto-atualizante.

Através de seus estudos, cursos, palestras, contrapôs-se a um predomínio da Psicanálise e do Comportamentalismo no meio da Psicologia Norte Americana. Seus trabalhos estenderam-se à psicologia organizacional. Suas concepções humanistas terminaram por ser um dos fundamentos do que hoje entendemos como a filosofia Controle Integrado da Qualidade no gerenciamento empresarial.

Junto com May, Angyal e Rogers constituiu um núcleo pioneiro em torno do qual a Psicologia Fenomenológico Existencial Organísmica norte americana começou a organizar-se como o movimento da Psicologia Humanista.

May foi um importante dinamizador da psicologia e psicoterapia existencial norte americana. Foi um dos organizadores do pioneiro livro Existencia, que pela primeira vez trazia aos Estados Unidos as concepções de psicoterapeutas existenciais europeus, como Binswanger, Boss, Minkovski, Stauss e outros. Autor de profícua obra literária no âmbito da psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial.

 

CARL R ROGERS

Rogers foi um dos mais produtivos e ativos epígonos da psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial norte americana. Foi um dos revisores do livro Existencia, editado por May e outros. Fez parte destacada do movimento da psicologia humanista, desencadeado, dentre outros, por A. Maslow. Trabalhou por uma perspectiva própria no campo da psicologia e da terapia, desenvolvendo nestas áreas uma abordagem produtiva e com características próprias, que difundiu-se por todo o mundo, servindo de suporte para o desenvolvimento de abordagens peculiares no âmbito da pedagogia, do trabalho com grupos e do manejo da relações humanas em geral. Comento mais a seu respeito ao longo de alguns dos capítulos e em trabalhos anteriores.

 

FRITZ PERLS

Fritz Perls, alemão, formou-se em medicina, na Alemanha, e especializou-se em psiquiatria, praticando inicialmente a Psicanálise. Desiludido com a Psicanálise dedicou-se a desenvolver a Gestalterapia como uma nova abordagem de psicoterapia, a partir da influência de certos dissidentes da Psicanálise, como W. Reich, da Psicologia Organísmica de Goldstein e das concepções fenomenológicas da psicologia da gestalt, do existencialismo e de suas experiências no meio teatral.

Ainda como psicanalista, viveu na África do Sul. Voltou à Europa, e emigrou em seguida, definitivamente, para os Estados Unidos. Lá encontrou, no fervilhante meio da cultura norte americana do início dos anos cinquenta, o ambiente mais do que propício para a apresentação de uma abordagem fenomenológico existencial de psicoterapia. Com a experiência que trazia da Europa, atuou intensamente na constituição e divulgação de sua abordagem como uma abordagem fenomenológico existencial de psicoterapia, integrando-se desta forma na emergência da psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial organísmica norte americana.

 

4. ENCONTRO DAS ÁGUAS 2: DA VERTENTE EUROPÉIA COM A VERTENTE NORTE AMERICANA.

Muito do fundamental deste encontro parece estar no que descrevemos acerca do encontro e articulações da psicologia científica pragmática norte americana com a psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial, e com a própria fenomenologia e existencialismo, que nos Estados Unidos aportavam, vindos da Europa. Deste encontro brotou a possibilidade prática de uma abordagem fenomenológico existencial de psicoterapia, e o seu desenvolvimento prático de um modo até então insuspeitado na Europa.

Pragmatismo, Fenomenologia e Existencialismo, apesar de suas distinções, conflitos, contradições e incompatibilidades, produziram e produzem um agenciamento prático que parece interessante desvendar e promover em suas possibilidades.

Do lugar cultural e histórico em que estamos hoje, não podemos negligenciar os pontos conflitantes e mesmo as distorções que se desenvolveram neste processo. É interessante observar que a chegada do Existencialismo nos EUA representa em grande medida a chegada de uma corrente filosófica de cunho fortemente antagônico com relação às tendências fortemente religiosas, e mesmo puritanas, predominantes na Sociedade Norte Americana. A valorização do corpo, dos sentidos, do vivido, não poderiam ser assimiladas em uma tal sociedade sem atritos.

Isto é particularmente verdadeiro no que concerne às figuras e às idéias de F. Nietzsche, fortemente críticas com relação à perspectiva religiosa. Há que se acrescentar, ainda, que estas perspectivas da fenomenologia e do existencialismo aportavam nos EUA, vindas em grande parte da Alemanha, com a qual o EUA encontravam-se em hostilidades, hostilidades que redundaram na Segunda Guerra Mundial. Curiosamente, vinham trazidas por exilados, que na Alemanha também antagonizavam-se e eram perseguidas pelo Nazismo.

As idéias trazidas da Europa para os Estados Unidos, por intelectuais exilados, antes, durante e depois da segunda guerra, provocaram forte reação cultural na Sociedade Norte Americana. Em particular porque, além de configurarem-se como corpos estranhos fundavam-se basicamente, em grande medida, nas idéias de Freud, Marx e Nietzsche, associados a sexo, amoralismo, ateísmo e oposição à propriedade.

No âmbito da Fenomenologia, podemos dizer que estas idéias aportava numa sociedade de mentalidade fortemente empirista, empirismo contra o qual se insurgira a própria Fenomenologia em seus primórdios, na busca de fundar uma epistemologia e uma ciência humana que partisse exatamente da subjetividade humana desprezada pelo empirismo.

Assim, ainda que do ponto de vista prático, a associação de Fenomenologia e Existencialismo com Pragmatismo e Empirismo tenha se revelado muito produtiva no processo da criação e desenvolvimento de abordagens fenomenológico existenciais de psicologia e psicoterapia, existiram e existem problemas nesta integração...

Muita gente nos EUA adotou as perspectivas da Fenomenologia e do Existencialismo com a avidez de quem abocanha uma batata quente. E, consequentemente, com a urgência, em seguida, de quem dela precisa se livrar. Este parece ter sido o procedimento de amplos setores da Psicologia e Psicoterapia Fenomenológico Existencial norte americana.

Num primeiro momento, a Fenomenologia e o Existencialismo, rudimentarmente compreendidos de um modo geral, a princípio, revelavam-se como um manancial com enormes possibilidades. Mas a compreensão de suas implicações, em particular com relação a uma perspectiva religiosa, foram se revelando incômodas. Houve tendências de "mitigar", então, os aspectos "negativos" do Existencialismo e da Fenomenologia. Isto implicou num certo tipo de cristianização do Existencialismo, não religioso e mesmo anti religioso, que inspira as origens da psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial. E num certo tipo de empirização da Fenomenologia.

Estes processos distorsivos, evidententemente, resultaram e resultam frequentemente na perda da originalidade criativa da abordagem.

No caso da perspectiva religiosa, existe sempre o recurso aos existencialismos religiosos, que são uma realidade desde Kierkegaard. De meu ponto de vista particular, parece-me difícil conceber a psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial sem a importante contribuição da crítica de F. Nietzsche e a perspectiva de sua filosofia da vida. Mas compartilho da idéia de que cada um deva encontrar os seus próprios caminhos.

 

5. ENCONTRO DAS ÁGUAS 3: DA VERTENTE EUROPÉIA/NORTE AMERICANA COM A VERTENTE LATINO AMERICANA.

De nossa perspectiva particular, um momento crucial é o do encontro dos resultados do encontro da vertente européia/norte americana da psicologia e psicoterapia fenomenológico-existencial organísmica, dita humanista, com a vertente latino americana.

Podemos falar de uma vertente latino americana?

Muitos certamente responderiam imediatamente que não. Muitos até que acham que deveríamos receber exatamente e preservar o que foi produzido anteriormente. Isto seria impossível e impertinente, além de configurar-se como uma desonestidade para com o passado da Abordagem, e com relação a nós próprios. Primeiro porque o que se produziu no encontro das vertentes européia e norte americana não é uma totalidade acabada, fechada, e que possa ser eleita ao estatuto de dogma ou de ortodoxia. Muito pelo contrário, pela postura básica de seus produtores pioneiros, esta abordagem rejeita qualquer tipo de fechamento, e entende a realidade natural e desejável de que ela seja contínuamente criada e recriada na atualidade de sua vivência concreta. Qualquer tendência a um dogmatismo, ou ortodoxia, além de impertinente e retrógada, depreza esta saudável postura.

Por outro lado, para recebermos os bons produtos formulados pela Abordagem, não poderíamos anularmo-nos como sujeitos. Não poderíamos negar a singularidade de nossas perspectivas e de nossos interesses comuns. Nunca se aprende exatamente o que se ensina, a aprendizagem, como sabemos, envolve, para bem ou para mal, o dialógico e a reinvenção e é, em sua efetividade, a interatuação de parceiros ativos.

Por outro lado, e o que é mais importante, a realidade tem negado uma recepção passiva no processo de encontro das vertentes européia/norte americana com a vertente latino americana.

Quero deter-me mais no que se refere à Abordagem Centrada na Pessoa e à Gestalterapia.

Os resultados do encontro europeu/norte americano chegaram-nos originalmente através dos livros de Rogers, e da recepção de colegas pioneiros que participavam de atividades nos EUA ligadas à abordagem, e que iniciavam núcleos formadores. Muito tempo depois, chegaram os livros de gestalterapia e profissionais a elas ligados.

Na década de setenta, e uma vez mais na década de oitenta, Rogers e colegas que com ele trabalhavam, em particular John Wood e Maureen Miller, estiveram no Brasil, realizando palestras, entrevistas e workshops, residenciais, e não residenciais, com grandes grupos de participantes. Já aí, o Brasil e a América Latina tinham um papel significativo no desenvolvimento da abordagem, na medida em que Rogers e seus colegas estavam aprendendo intensamente sobre este tipo de grupo, e mesmo reformulando, a partir de seus trabalhos, a concepção de seu modelo de trabalho com grupos e de facilitação, e toda a concepção de sua abordagem.

Estas experiências brasileiras, das quais os brasileiros foram parceiros muito participantes, tiveram uma importância muito grande neste processo.

Alberto Segrera, do México, com o decidido estímulo de Rogers, foi um pioneiro de um momento pós-Rogers da ACP, quando organizou o Primeiro Forum internacional da Abordagem, em Oaxtepec, no México, em 1983. A abordagem passou a ter, para bem ou para mal, um forum efetivo, que tem se constituído como a referência mais abrangente da abordagem.

Neste forum, no México, os Latino Americanos afirmaram as diferenças de sua perspectivas, realidades e necessidades com relação aos europeus e aos norte americanos. Foi criado o Encontro Latino Americano da ACP, como instância que pudesse reunir os praticantes da abordagem da América Latina para que pudessem compartilhar, inventar e reinventar as suas perspectivas. O encontro ocorre a cada dois anos desde então. E tem se constituído como uma vigorosa referência e um vigoroso fator de dinamização e de desenvolvimento da Abordagem, e de integração de profissionais nela interessados, em toda a América Latina. A comunidade de praticantes da Abordagem na América Latina tem se integrado e se desenvolvido, em grande parte, graças ao influxo do Encontro Latino.

Na América Latina, a comunidade de profissionais praticantes da abordagem superou sem grandes traumas a morte de Rogers, em função, em grande parte, da referência em que se constituiu este encontro. Processo que não ocorreu nos EUA e na Europa, onde a carência da presença física de Rogers, e a falta de um núcleo consensual de integração tem causado muita perplexidade e desorientação.

O Encontro Latino deu origem a outros encontros pela América Latina. Surgiram o Encontro do Nordeste do Brasil da ACP, o Encontro Argentino, o Encontro Uruguaio, o Forum Brasileiro da ACP, O Encontro do Sudeste e o do Norte, cogita-se o Encontro Carioca da ACP, e a lista tende a crescer.

Estes encontros têm fornecido o apoio para um amalgamento entre as pespectivas, realidades e necessidades da América Latina, e os produtos do encontro das vertentes européia e norte americana da psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial.

Houve, num primeiro momento, uma reflexão crítica com relação aos fundamentos da prática da ACP. Uma reflexão com relação a uma concepção tradicional de pessoa no âmbito da ACP demasiado reificada, e conceitualmente aniquiladora da realidade humana de grandes setores de populações da América Latina. Uma concepção de pessoa que não integra a socialidade, a historicidade, a cultura, a transindividualidade da pessoa, uma pessoa definida não de uma forma genericamente humana, mas segundo as realidades sociais e humanas, culturais, das sociedades de Primeiro Mundo.

Desde a atividade do Grupo Latino no primeiro Forum Internacional da ACP, que foi colocada uma crítica vigorosa contra uma tal concepção de pessoa. Assumir esta concepção de reificada de pessoa na América Latina é alienar das possibilidades da abordagem amplos segmentos da população, e colaborar com o processo de sua aniquilação já a um nível conceitual.

Esta crítica tem se desdobrado nos Encontros Latinos e nos outros encontros da ACP na América Latina, e tem potencializado o desenvolvimento de concepções da pessoa que integrem a diversidade de sua cultura, de sua socialidade, de sua transindividualidade. Isto se refere, igualmente, à própria pessoalidade do profissional.

Por outro lado, tem se desenvolvido um movimento vigoroso de reflexão acerca dos fundamentos filosóficos fenomenológico existenciais da abordagem, e acerca do modo como eles se constituem na sua teorização e prática. Este movimento passa, em primeiro lugar, por uma crítica de uma distorção pragmático empirista que os fundamentos fenomenológico existenciais sofreram nos EUA. Há um movimento de recuperação dos fundamentos da Fenomenologia e do Existencialismo, em particular da filosofia da vida de F. Nietzsche, que forneceram o substrato básico para o desenvolvimento da psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial organísmica.

O resultado é que a abordagem goza, pelo menos no Brasil, desde os anos setenta, de um florescimento e vigor que não se observa em outros locais da Europa e dos EUA, onde entrou, frequentemente, em franca decadência, em particular depois da morte de Rogers.

Recuperada a perspectiva dos fundamentos fenomenológico existenciais organísmicos da abordagem, parece importante preservar uma atitude pragmática, uma valorização existencial da prática e da ação, que foram tão importantes contribuições da Cultura Norte Americana e que permitiram os importantes desenvolvimentos da abordagem nos EUA e a sua propagação pelo mundo.

A Gestalterapia constituiu-se intensamente, no Brasil, como uma opção forte no âmbito das psicologias e psicoterapias fenomenológico existenciais. O vigor das posturas de Perls chegaram-nos através da literatura, ainda que o que foi publicado no Brasil tivesse um caráter excessivamente fragmentário, e carente até recentemente dos textos básicos de Perls, como o Gestaltherapy e o Ego Hunger and Agression.

Profissionais norte americanos, como Maureen Miller O’Hara, tiveram uma importante contribuição pioneira no desenvolvimento da Gestalterapia no Brasil. No caso de Maureen, sempre intimamente associada à ACP.

O antigo Centro de Estudos de Gestalterapia de São Paulo, no que pese limitações, teve um importante papel na difusão das idéias e práticas da Gestalterapia, colaborando junto com o programa de formação do Instituto Sedes e Spaientiae, como o mais importante núcleo pioneiro de formação de profissionais de várias partes do país. Thérèse Tellegen teve um importante papel como uma referência fundamental em todo este processo.

A Gestalterapia passa também, no Brasil, por todo um processo de resgate de seus fundamentos fenomenológico existenciais dialógicos e de recriação dos referenciais de sua prática.

Desenvolveu-se o Encontro Brasileiro de Gestalterapia, que tem reunido periodicamente os profissionais interessados na abordagem e servido como palco para a apresentação de desenvolvimentos da abordagem no Brasil e discussão de idéias. O que é preocupante, todavia, é que frequentemente estes encontros têm adquirido um caráter extremamente formal e burocrático, distanciado da experiência mais vital e pessoal dos participantes, ao mesmo tempo em que não raro são parasitados por tentativas de desenvolvimento de culto de personalidades.

 

TRANSINDIVIDUALIDADE, INDIVIDUALIDADE, PESSOA E PSICOLOGIA*

A pessoa - seja o outro ou nós próprios - como síntese de relações sociais não é, de um modo geral, apreendida pela psicologia, mesmo na maior parte dos esforços mais recentes voltados para o que se entende como Psicologia Social. Concebemos frequentemente a pessoa apenas como indivíduo, ou seja, apenas o que ele é reificadamente, uma individualidade isolada. Ou então concebemos a pessoa a partir de categorias macro da análise social. Em ambos os casos nos escapa a pessoa concreta, a pessoa particular na concretude de sua atualidade existencial, de sua cotideaneidade e de seus vínculos sócio culturais. Construímos e tratamos a pessoa como uma abstração, sem vínculos com a realidade efetivamente vivida, o indivíduo meramente reificado. Destruímos conceitualmente a pessoa, na medida em que não podemos ou não queremos apreender, respeitar e estar à altura das dimensões sociais transindividuais que constituem a sua personalidade.

Levar em consideração a pessoa na concretude de sua atualidade existencial e, ao mesmo tempo, transcender a sua mera reificação exige que, de fato, entendamos o como o sistema social a que ela se vincula particulariza-se na sua constituição, tanto na gênese como na dinâmica atual de seu ser-no-mundo, desde os níveis mais macro-sociais, até as sua diferenciações culturais mais particulares. Para isto, a idéia da dimensão da transindividualidade da pessoa como intrinsecamente constituinte de sua pessoalidade e de sua existência, amalgamada a sua individualidade, oferece-nos ricas possibilidades, na medida em que nos possibilita entender a síntese entre o individual e o social que a constitui em sua concretude e, ao mesmo tempo, constitui o seu sistema social.

Lucien Goldmann, sociólogo francês, desenvolveu o conceito de transindividualidade, ao nível da sociologia, como o conjunto das características psicossociais compartilhadas pelas pessoas de um dado sujeito coletivo histórico, de um dado sujeito transindividual. O que Goldman chama de sujeito coletivo é um dado agrupamento sócio cultural e histórico, composto por uma multiplicidade de indivíduos, e que compartilham certos elementos de uma constituição psicossocial e comportamental comum -- uma certa transindividualidade comum --, assim como um certo povo, um agrupamento sócio cultural, uma classe social, etc.

O presente ensaio busca tematizar, a concepção da transindividualidade ao nível da psicologia, confrontando-a com os modos vigentes de interpretação da pessoa, e indicando a fertilidade da concepção da transindividualidade para a resolução de certos impasses com que se confronta a psicologia e a psicoterapia na atualidade, e para o desenvolvimento de perspectivas novas, tanto ao nível da sua teorização como ao nível de sua prática.

 

PSICOLOGIA DA PESSOA E DO INDIVÍDUO REIFICADOS

"O conceito puro de sociedade é tão abstrato quanto o conceito puro de indivíduo,
assim como o de um eterna antítese entre ambos".
(Adorno/Horkheimer)

Conceber o indivíduo e a individualidade parece ser fundamental para uma boa e saudável apreensão da realidade social e da pessoa, não apenas para a psicologia, mas para a própria sanidade do sistema social humano - sem falar, naturalmente, da importância do indivíduo para si próprio. No interior do indivíduo, como observou Buber, recria-se a coisa pública. O modo como se concebe o indivíduo, entretanto, não pode ser uniforme, e sofre uma influência profunda do interjogo das forças sociais e de seus vetores ideológicos.

Temos praticado, sob a influência de todo o positivismo ideológico, uma psicologia fundamentada numa concepção do indivíduo que, na verdade, limita-se simplesmente a sua dimensão reificada. Temos praticado uma psicologia do indivíduo e da pessoa reificados.

A reificação é um modo de concepção da realidade que isola certos elementos e seus processos dos processos que lhe dão origem. A concepção do indivíduo reificado, e, mais que isto, a sua hegemonia no ambiente da psicologia, tem uma longa história de constituição. Encarna na atualidade uma dimensão do velho embate entre a transformação e a manutenção da realidade social.

A idéia de indivíduo remonta à filosofia materialista de Demócrito. "Indivíduo" é a tradução latina de "atomon". Inicialmente esta palavra era utilizada sem referência à pessoa humana, numa perspectiva puramente lógica. A idéia enfatizava "aquilo que não pode ser dividido". Com a filosofia cristã, o conceito toma uma forma mais definida, a partir da idéia de imortalidade da alma individual, de onde se origina mais enfaticamente o conceito de pessoa, cuja doutrina constitui um momento importante no desenvolvimento histórico da concepção de Indivíduo. A Escolástica desenvolveu a exploração do singular e do particular da idéia de indivíduo, no momento em que se afirmavam os estados nacionais contra o universalismo medieval. Leibniz deu forma definitiva ao conceito, definindo o indivíduo a partir de seu simples ser. Esta formulação ligava-se intimamente a sua concepção de mônada. Na sua Monadologia, ele define as mônadas como "os verdadeiros átomos da natureza", que "não têm janelas por onde qualquer coisa possa entrar ou sair". O mundo, para ele, é o melhor e mais perfeito dos mundo possíveis, escolhido por Deus.

A concepção de Leibniz oferece um modelo conceitual para a visão individualista do ser humano concreto na Sociedade Burguesa. É este o conceito de indivíduo que inspira a sociologia acadêmica, positivista, que se origina com Comte, e que, desde os seus primórdios, dirige as suas atenções para o conjunto da sociedade e para o seu movimento, esquecendo a pessoa concreta, o indivíduo, e integrando-se, desta forma, à tradição filosófica.

Hegel, contrapondo-se às idéias dos românticos alemães, dirige suas críticas às concepções de uma pura individualidade, afirmando que o ser-para-si do singular representa um momento necessário do processo social. Observa, não obstante, que este momento é necessariamente negado e transcendido no fluxo deste processo. O indivíduo é, assim, para Hegel, momento necessário do processo social, mas que como tal caracteriza-se apenas como um particular aparencial que exerce uma atividade negadora da realidade universal, realidade esta que o vence e o nega, para afirmar-se enquanto universal. Na sua dinâmica, a universalidade nega-se a si própria, numa negação da negação que afirma o particular. Assim, o particular existe e se exprime como negação da negação.

A psicologia que herdamos, seja da colonização européia, seja da neo-colonização norte-americana, está marcada profunda e visceralmente por uma concepção do indivíduo que não leva em consideração, por motivos diversos, a sua dimensão social, e que fundamentam-se numa definição do indivíduo a partir da perspectiva meramente de sua reificação, uma concepção do indivíduo meramente circunscrito a sua particularidade e reificação. Estas perspectivas estão frequentemente comprometidas com uma perspectiva empirista e positivista que valoriza a particularidade do empírico como critério de verdade científica. Esta linha epistemológica caracteriza-se como uma das duas tendências das ciências humanas que derivaram do trabalho de Saint Simon.

Saint Simon, que foi contemporâneo de Hegel, defrontava-se com duas tradições ideológicas que derivavam do final do feudalismo. Ambas criticavam a realidade de então. A tradição representada por De Maistre, De Bonald, Lamennais interpretava a situação decorrente do final do feudalismo em função da ordem, revindicando as virtudes seculares da sociedade feudal cristã. A outra tradição, representada principalmente por Condorcet e Montesquieu, assumia a nova situação, e enfatizava a dimensão do progresso e da mudança social. Saint Simon, como socialista utópico, situou-se nesta segunda corrente. Preocupado com a necessidade de reorganizar a sociedade, trabalhou em um projeto de desenvolvimento de uma "science de l’home" concebida como ciência social. Enfatizou, na constituição desta ciência, a análise das forças organizadoras do sistema social, os conflitos entre as classes, as funções das ideologias, o equilíbrio entre os diversos sistemas e a dinâmica a longo prazo dos mesmos até a sua desaparição.

A partir de Saint Simon, as ciências humanas, via sociologia, sofreram uma fragmentação binária, cada uma das partes constituindo-se como antípoda da outra. Esta cisão representa-se, por um lado, pelo conceito de ciência que deriva dos trabalhos de Comte, e, por outro, pelos trabalhos de Marx.

Comte foi secretário particular de Saint Simon. Rompeu com Saint Simon, e elaborou as suas idéias a partir das idéias dele, afiliando-se a seguir à tradição ideológica antagônica a de seu antigo mestre; tradição esta que tinha sua ênfase na ordem social e nos valores da sociedade feudal.

Marx foi profundamente influenciado pelas idéias de Saint Simon, tendo adotado algumas das mais importantes, que tiveram um papel fundamental no desenvolvimento de suas análises e de sua metodologia. Marx foi também marcadamente influenciado, como se sabe, pelas idéias de Hegel. O conceito de totalidade social, de importância capital na Dialética Marxista, está presente tanto em Saint Simon quanto em Hegel. Por outro lado, a idéia do antagonismo entre as classes é originariamente de Saint Simon. Marx a adota e reinterpreta, atribuindo diferentes composições às classes.

Segundo Munné, ainda que a ciência comtiana seja inteiramente inspirada na obra de Saint Simon, Comte rejeitou os conceitos fundamentais dele, conceitos estes que foram incorporados pelas análises e metodologia de Marx. Comte preocupava-se com uma ciência da ordem social. Propunha-se como objetivo o de alcançar um sistema social em perfeito equilíbrio. Desta forma, os antagonismos entre as classes e, por implicação, a totalidade contraditória e conflitiva do sistema social, configuravam um grave obstáculo à constituição do seu modelo, e foram cuidadosamente evitados. Comte prescindiu assim da consideração adequada pela totalidade social, e do reconhecimento do conflito subjacente, indicado por Saint Simon, privilegiando, assim, a ordem vigente, do equilíbrio funcional estabelecido, como princípio epistemológico. Na prática, a sua concepção de ciência proibe, como norma epistemológica, a abstração racional, o pensamento. O domínio dos fatos, do dado, ascende a critério de verdade, e o que com ele conflita é necessariamente mau.

Assim, segundo estas linhas gerais, consolidou-se a bifurcação de base no âmbito das ciências humanas, tendo por fundamento a questão da consideração pela totalidade social e pelo antagonismo entre as classes. Desenvolveu-se, de um lado, a tradição positivista comtiana, centrada no empírico, no dado, no aparente, na ordem, na harmonia supressora da luta, na reprodução, na adaptação. Do outro lado, desenvolveu-se a veretente materialista dialética, cujas tendências maiores são o antropologismo humanista, o antipositivismo ideológico e o criticismo radical, privilegiando como focos fundamentais de interesse a compreensão do conflito, a totalidade, a luta pela harmonia, e não a harmonia supressora da luta, a mudança social, ao invés da reprodução, e a transformação do homem, ao invés de sua adaptação.

Numa outra vertente, a concepção empirista dos filósofos empiristas ingleses configurou, também, uma importante contribuição para uma concepção de uma individualidade isolada da pessoa, uma perspectiva de concepção da pessoa e da individualidade reificadas.

A concepção individualista, reificada, da pessoa constitui um pedra fundamental da psicologia tradicional. Nesta condição, com nuances e comprometimentos particulares, definem-se, de um modo geral, as correntes da psicologia contemporânea. O dado fundamental é que, ao limitarem à sua aparência a concepção do indivíduo, elas o destroem em sua concretude, passando a lidar com uma abstração sem fundamento, que já não se vincula mais a sua realidade de fato.

As orientações teóricas fundamentais da psicologia, que herdamos de nossa colonização e de nosso atual processo de neo-colonização, inclusive quando se definem no chamado campo da psicologia social, trabalham com esta abstração irracional. Eventualmente realizam esforços, com resultados insuficientes ou fundamentalmente limitados, e por isto comprometidos, no sentido de inserir o indivíduo em um certo contexto social mais amplo.

O indivíduo, como síntese do conjunto das relações sociais concretas jamais é concebido. Escapa, como se fosse próprio do domínio de uma outra disciplina que não a psicologia. Trata-se dele ora como uma misteriosa, e curiosa caixa preta, que recebe inputs e que produz outputs, sem que se considere de relevância a sua interioridade, o segredo da caixa preta, buscando-se conformá-lo à ordem social existente, ou mantê-lo segundo os padrões do que é a sua aparência. De outra forma, ainda nos estritos limites de sua aparência, concebem-no como um ser isolado, reificado, que se explica a si próprio, e que explica, inclusive, a história. O Behaviorismo, a Psicanálise ou a chamada Psicologia Humanista incorrem nestas limitações.

Ainda que seja necessário levar em consideração as suas importantes contribuições, precisamos atentar para a realidade de que a situação da psicologia, não obstante as suas conquistas, torna-se cada vez mais bizarra. Em particular entre nós, que a praticamos em um contexto de terceiro mundo. Assemelhamo-nos cada vez mais a "marcianos", com exóticas teorias, ou teorias e práticas supersimplificadoras relativas ao psiquismo e ao comportamento das pessoas, cada vez mais leves no espaço e soltas no tempo, numa terra de famintos. Uma vaga sensação de anacronismo nos invade, e parecemos dinossauros, ou elefantes brancos, buscando encarnecidamente defender a nossa pele, inexoravelmente fadada, neste caso, à extinção.

Tem a psicologia alguma coisa a dizer sobre o macrofenômeno da fome? Sobre a corrupção institucionalizada? Sobre os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres? Sobre a cancerosa esterilização da vida cotidiana e da vida em geral? Sobre as ameaças de aniquilação do planeta? Sobre a cultura eco-suicida? Tem a psicologia alguma coisa a dizer sobre a realidade? Ou a psicologia nada tem que ver com a realidade?

Sem dúvida que podem ser agitados os argumentos que afirmam que, ao nível das pessoas em crise ou em dificuldade, a psicologia funciona e temos obtido resultados (para não se falar da área da indústria). Será isto verdade? O que será que isto de fato significa? É indubitável que existem bons profissionais, que, além de se terem habilitado a atualizarem-se a si próprios como seres humanos, manejam com destreza um arsenal teórico e prático de valor. O trabalho deles é valioso. Mas o quanto das chamadas curas psicológicas, ou seja lá que nome se dê, devem-se efetivamente aos méritos da psicologia? O quanto não se deve apenas à dinâmica natural das relações sociais, a fatores institucionais, rituais, meramente simbólicos, ou em função simplesmente do tempo?

Qualquer que seja a resposta, a realidade, todavia, é que, no marco da psicologia tradicional, cresce a nossa sensação de estranheza com relação ao contexto concreto, para não falar no caos profissional em termos de mercado de trabalho... Na verdade, a coisa vai muito mais além. Um mínimo de espírito crítico, e nos flagramos conspirando contra a comunidade humana, produzindo e reproduzindo a cultura da opressão e da exploração, o seu conhecimento psicológico especializado e a sua prática. É um impasse que nos destrói, porque destrói o nosso trabalho e a nossa capacidade de trabalho. De princípio, nos posicionamos pelo vivo, pelo humano, pela sua defesa e afirmação. Se buscamos, entretanto, rastrear um pouco mais criticamente as fontes, consequências e implicações de nosso trabalho, descobrimo-nos frequentemente conspirando contra a vida e contra o humano.

Não, seria o caso de indagarmos mais profunda e criticamente sobre o que entendemos por psiquismo e comportamento humanos, sobre a sua natureza e modo concreto de constituição na formulação de nossas teorias e pesquisas? De que outra forma podemos criticar o conhecimento que nos faz alienígenas à realidade concreta; de que forma podemos construir criticamente um conhecimento que nos possa inserir ativa e de forma produtivamente humana nesta realidade, ou, por outra, um conhecimento que dela não nos retire? Quando nos ocupamos destas questões, revela-se para nós em toda a sua precariedade e insuficiência a concepção do indivíduo e da pessoa meramente reificados.

Na verdade, buscar transcender a mera apresentação, e entender, em sua concretude, o modo de constituição do indivíduo, da pessoa, exige uma opção de valor, um descompromisso com o estabelecido e uma definição a respeito da perspectiva sob a qual queremos pensá-lo, sob qual perspectiva queremos pensar a sociedade, sob qual perspectiva queremos pensar e exercer a psicologia. Queremos continuar a fazer uma psicologia da perspectiva da classe dominante - gerente, no nosso caso particular, da empresa transnacional de exploração da opressão? Ou queremos fazer psicologia, produzir e reproduzir o conhecimento psicológico, da perspectiva da comunidade humana, buscando conhecer e entender a nossa conjuntura sócio-cultural e histórica, a inserção da psicologia, posicionando-nos radicalmente dentro dela pelo humano como valor absoluto?

A primeira opção de valor é largamente a psicologia que temos e que praticamos, que não pode ser desmerecida em suas conquistas e atualidade histórica, mas que evidencia a cada momento o fim de seu tempo, sufocada pelas contradições de seu próprio modelo, e pela necessidade de se reinventar a si própria como uma psicologia que transcenda à mera reificação dos processos humanos. A psicologia do indivíduo reificado não pode ser boa nem para a classe dominante, a quem serve. Na medida em que ela retira do seu campo a totalidade social do humano, seus antagonismos e conflitos, constrói um modelo irracional e abstrato para representar a pessoa. Modelo este que, aplicado a pessoas concretas, aniquila-as conceitualmente porque trata não mais de permitir, preservar e facilitar os desdobramentos de sua integridade e de seu potencial, mas, antes, de enquadrá-las ativamente em prescrições, explicitadas ou não, compatíveis com um projeto de conservação do status-quo. O que significa conservá-las em sua reificação por via de todos os tipos de dissimulações.

Se se trata, pois, de compreender o indivíduo e a pessoa concretos, e produzir uma ciência a eles aplicáveis, é imperativo transcender o nível da reificação, e buscar, e considerar, os elementos concretos de sua constituição como tais.

 

SUJEITO TRANSINDIVIDUAL, PESSOA E PSICOLOGIA

"O indivíduo surge, de certo modo, quando estabelece o seu verdadeiro eu e eleva o seu ser-para-si,
a sua unicidade, à categoria de verdadeira determinação(...) Só é indivíduo aquele que se diferencia
a si mesmo, que estabelece como norma a auto-preservação e o desenvolvimento próprio(...) Entretanto,
mesmo esta autoconsciência da singularidade do eu, que não basta para fazer por si só, um indivíduo, é uma
autoconsciência social(...) a ‘autoconsciência’ é a ‘verdade da consciência do próprio eu’,
mas a sua satisfação só é alcançada numa outra autoconsciência.
(Adorno/Horkeheimer)

"... A essência humana não é abstrato, residindo no indivíduo único.
Em sua efetividade é o conjunto das relações sociais.
(Marx)

"... Penso que toda dualidade radical é ideológica."
(Goldmann)

Diante das dificuldades, limitações e compromissos ideológicos conservadores que nos coloca a concepção da psicologia fundamentada em uma concepção reificada do indivíduo, como sendo o ser humano concreto, vemo-nos compelidos pela necessidade de buscar um conhecimento e uma compreensão do indivíduo humano mais compatíveis com aquilo que ele apresenta ser em sua efetividade.

É um lugar comum a afirmação de que o ser humano é um ser social e político. Não obstante, as teorias psicológicas, e as nossas especulações a respeito desta socialidade e caráter político, não vão muito além deste limite e, em geral, esfumaçam-se onde as deixamos implicitadas. Quando não nos satisfazemos com idéias fáceis e simplificadoras. De um modo geral, apenas adicionamos, na prática, ao nosso modelo do indivíduo reificado, mais uma característica abstrata, e nos damos por satisfeitos (ou exaustos), e encerramos as nossas indagações.

Quando nos dispomos a efetivamente conhecer o indivíduo humano de fato, em toda a sua complexidade e concretude, evidenciam-se imediatamente os limites do modelo empirista de ciência. Se queremos preservar a integridade de nosso foco de atenção e de estudo, em sua complexidade, não podemos reduzí-lo a sua aparência sensível, ou a outras abstrações idealistas, sob pena de destruí-lo enquanto tal, em privilégio de uma invenção nossa, à qual nomeamos, e com relação à qual desenvolvemos todo um universo linguístico de abstrações. Se queremos pensar o indivíduo humano e com ele relacionarmo-nos em sua concretude, necessitamos transcender a aparência reificada que se nos apresenta como abstração de uma forma mais imediata. Para tal, necessitamos de uma abstração racional, que se define como tal enquanto momento de uma práxis efetiva, reflexão filosófica, que entende a necessidade de conhecer o próprio conhecedor, como momento fundamental do conhecimento do objeto.

O indivíduo humano de fato não pode ser dividido, como indica a sua designação. É uma unidade que afirma-se por sua integridade. Para conhecê-lo adequadamente, entretanto, é necessário levar em consideração as diferentes dimensões do processo de sua constituição. Neste sentido, apenas a relação imediata com ele, e a reflexão, podem nos auxiliar, na medida em que nos possibilitam abordá-lo na dimensão daquilo que o define imediatamente, e naquilo que o constitui, mas que não está presente ao nível do sensível, na situação imediata.

Lucien Goldmann, sociólogo francês que desenvolveu importantes estudos sociológicos da cultura em geral, e em particular da arte e da literatura, desenvolveu e utilizou a idéia do sujeito transindividual como constituinte da pessoa, pessoa que se configura para ele como uma íntima articulação de individualidade e de transindividualidade. Desta forma, Goldman transcende a uma concepção meramente aprencial da pessoa, concebendo a dimensão social e histórica de sua constituição. Goldmann trabalhou com a idéia de transindividualidade ao nível da sociologia, em busca de uma sociologia da totalidade que, ao mesmo tempo, pudesse dar conta de uma compreensão da produção cultural, e da produção artística em especial, enquanto produzidas por indivíduos particulares que, ao expressarem-se singularmente, expressam, simultaneamente, a subjetividade coletiva de um grupamento sócio histórico, o sujeito transindividual de sua pertinência.

Pôde, assim, entender a pessoa humana, em termos de sua constituição básica, como um sujeito individual, e como constituinte e constituída pela atualidade e atualização de um sujeito transindividual. O sujeito individual constituído por tudo aquilo que configura e determina como tal a sua individualidade, e funda-se em seu corpo e em sua historicidade pessoal. E a transindividualidade, constuída pela pertinência da pessoa a um dado sujeito transindividual histórico, na medida em que a pessoa tem suas categorias mentais e o seu comportamento organizados e determinados pelo sujeito coletivo, pelo grupamento sócio histórico de que participa, composto por uma multiplicidade de indivíduos, uma coletividade humana historicamente situada, datada e localizada, um sujeito transindividual histórico.

No que pese não haver no âmbito da psicologia tradicional uma elaboração adequada da concepção de um sujeito transindividual concreto como constituinte concreto da pessoa, a idéia parece extremamente fértil, e com um potencial enorme de esclarecimento para os impasses em que se debate a psicologia contemporânea, em termos teóricos e em termos práticos, na armadilha da reificação do indivíduo humano, concebido exclusivamente em função da dimensão de sua individualidade.

O ser humano nasce dotado de um aparelho biológico auto-regulável. Dadas as condições biológicas e sociais compatíveis com as suas necessidades, ele evolui naturalmente no sentido da atualização plena de suas potencialidades. A dimensão biológica, entretanto, como se sabe, explica muito pouco da pessoa, na medida em que, ainda que esta dimensão não possa ser desprezada, é na trama das relações sociais concretas do contexto sócio-histórico que vamos desvendar o que a constitui e define efetivamente como pessoa. O biológico carece apenas de condições qualitativas adequadas. Mas a adequação destas e o modo como elas se organizam, o que determinará fundamentalmente a pessoa que conhecemos, constiui-se a partir da realidade sócio-cultural e histórica concreta, que se configura na pessoa, como indicou Heller, como uma segunda natureza.

Sabemos que nenhuma das dimensões, biológica e social, podem ser isoladas empiricamente numa pessoa. Da mesma forma que não podemos isolar, na evolução da espécie, o desenvolvimento anátomo fisiológico mais especializado do desenvolvimento da cultura. Igualmente de nenhuma delas se pode prescindir. A questão é de como organizar a nossa compreensão destas dimensões, que sabemos fundamentais, na constituição da pessoa concreta. As implicações efetivas de cada uma delas na organização das categorias mentais da pessoa, de sua ação e de seu comportamento.

Antes de configurar-se com eu, o indivíduo já desenvolve um processo fundamental de interação com um grupo social. Grupo social que se constitui como uma diferenciação particular dos agrupamentos humanos, uma diferenciação particular de uma determinada cultura humana, num determinado momento histórico. Isto implica no fato de que a pessoa, antes de constituir-se como um eu, organiza o seu comportamento, a sua percepção de si e do mundo, em função dos padrões organizativos do seu agrupamento, na concretude de seu momento histórico. Vale dizer que esta relação na organização da pessoa não se dá, apenas, numa determinada fase de seu desenvolvimento - a partir da qual a pessoa seria autônoma no processo de constituição de si. É, na verdade, um padrão intrínseco à constituição da pessoa em cada momento de sua atualidade. Um padrão mantido e desdobrado a partir da relação recíproca com objetivações culturais determinadas.

Desta forma, numa certa dimensão muito real, podemos entender que a pessoa desenvolve a sua subjetividade, não simplesmente como uma subjetividade individual - correspondente a sua personalidade isolada, mas, intrínsecamente, também, como a subjetividade de sua coletividade. Assim, ela não é, neste nível, meramente, a portadora de uma subjetividade individual que se relaciona com outros de uma forma inter-subjetiva; mas a portadora, igualmente, de uma subjetividade transindividual.

Isto não significa uma negação da individualidade e da singularidade da pessoa, mas apenas o reconhecimento de que estas remetem-se naturalmente às dimensões mais universais que as constituem. De tal forma que a individualidade e a singularidade não podem ser tratadas como em si exclusivos, sem que, com isto, não venhamos a mutilar essencialmente a pessoa, na medida em que a sua singularidade e a sua individualidade não podem explicar-se por si próprias. Desta forma, a pessoa com quem interagimos não pode ser entendida ao nível da psicologia apenas na sua individualidade, na medida em que esta, ainda que real e efetiva, configura-se apenas como um momento da atualidade da constituição da pessoa, que se define como individualidade apenas na medida em em que se remete à(s) universalidade(s) de que participa. Ou seja: a pessoa só pode ser entendida em sua plenitude na medida em que está referenciada ao, e respeitada em termos, do sujeito transindividual de que é parte e que constitui, uma vez que ela própria se constitui como síntesae indissociável de individualidade e transindividualidade, que só existe enquanto tal, destruindo-se se fragmentada.

Assim, para preservarmos conceitual e relacionalmente a integridade da pessoa com que interagimos, é necessária a apreensão e a confirmação, na relação imediata com ela, do eventualmente inaparente que a constitui, da invisibilidade que a constitui de forma tão efetiva quanto o que é mais imediatamente visível em sua pessoalidade: a sua transindividualidade concreta e efetiva, nas múltiplas determinações de sua socialidade e de sua historicidade.

Como sabemos, e é necessário levar em consideração, o sujeito transindividual não é homogêneo. Constitui-se de uma multiplicidade de diferenciações contraditórias. Num dado contexto, temos os níveis de organização da ordem social, que variam, desde os mais macrosociais, até os mais microsociais: o grupo familiar, por exemplo, que, particularizando os primeiros, constituem o mundo cotidiano das relações e dos objetos e usos imediatos da pessoa, no qual ela satisfaz as suas necessidades e organiza-se enquanto tal.

Num mundo que encaminha-se cada vez mais para uma Cultura Planetária, podemos conceber a comunidade humana em sua totalidade como o nível mais abrangente da transindividualidade humana, na medida em que somos e nos configuramos cada vez mais, para bem ou para mal, enquanto humanidade, como um sujeito transindividual efetivo. Este nível de compreensão, entretanto, ainda que não possa ser negligenciado, uma vez que oferece o contexto mais amplo de definição do humano, é, em si só, demasiado genérico para a compreensão da pessoa em sua concretude, para a comprreensão de sua realidade e de suas condições cotidianas de vida.

A classe social, na medida em que determina as condições da existência concreta da pessoa, pela determinação do modo como exterioriza a sua energia vital, como se relaciona com o produto desta exteriorização, pela determinação do modo como vive, como produz os meios de sua existência e se reproduz, é o sujeito histórico básico a partir do qual podemos formular a compreensão da transindividualidade da pessoa. A realidade histórica da classe social, no seio da estrutura da organização do trabalho, haverá de determinar a sua cultura particular e importantes dimensões da transindividualidade das pessoas que a constituem. Não podemos, não obstante, absolutizar a determinação de classe na constituição da transindividualidade eda pessoa, uma vez que uma sociedade cada vez mais complexa oferece a emergência de uma multiplicidade cada vez maior de determinações possíveis.

O sujeito coletivo constitui-se de inúmeras e importantes diferenciações, que se organizam em agrupamentos hierarquizados, dos mais macro-sociais aos mais micro-sociais, caracterizados cada um deles por suas diferenciações culturais e transindividuais particulares. Temos, assim, diferenciações de ordem econômica, étnica, religiosa, nacional, regional etc., que organizam a família como um agrupamento micro-social básico. Desta forma, a transindividualidade característica da pessoa de um dado agrupamento social não se constitui a partir de uma influência homogênea, mas a partir de uma multiplicidade de influências, de maior ou menor peso, que se integram com maior ou menor coerência na diferenciação cultural de seus agrupamentos particulares. A coerência e unificação da diferenciação particular de cultura que o indivíduo compartilha com seus semelhantes, sempre em íntima conexão com os elementos materiais de seu mundo, haverá de determinar uma maior ou menor unidade, a partir de sua múltiplas influências constituintes, o que determinará à pessoa uma mais ou menos árdua tarefa existencial de integração, com vistas à organização de seu ser e de comportamento no mundo.

A transindividualidade da pessoa é uma articulação, pois, das diversas dimensões da transindividualidade do sujeito histórico coletivo que lhe é pertinenete, e que dizem respeito à produção e à satisfação de suas necessidades, e à atualização de seu potencial humano. A consciência e as demais categorias mentais da pessoa organizam-se em função desta transindividualidade, na medida em que interagem dinâmica e contraditoriamente com a sua individualidade.

Não seria lícito pensar que esta transindividualidade seria impressa na pessoa passivamente. Na verdade, como demonstra a Psicologia Genética, a individualidade da pessoa tem um papel fundamental, desde o mais rudimentar início de sua existência, uma vez que a atividade construtiva da pessoa existe como um fator que lhe é inerente. Na verdade, a pessoa potencialmente descobre e reinventa em si própria a sua transindividualidade, ou seja, a transindividualidade de seu agrupamento histórico; com as nuances particulares de sua existência pessoal, limitadas estas pelas condições de sua vida material.

Goldmann funda o sujeito individual nos fenômenos da ordem da libido. Acho que não é um fundamento conceitualmente refutável com facilidade, mas nem por isto isento de limitações e complicações. Uma delas é a dificuldade de se entender as articulações entre individualidade e transindividualidade a partir desta base, uma vez que misturar libido com história equivaleria a misturar água com óleo. Não quero, entretanto, negar validade ao fundamento libidinal para o sujeito individual, mas apenas indicar esta dificuldade, cortejando-a com outras concepções que oferecem o próprio desenvolvimento da psicanálise e de outras linhas de psicologia, em particular a psicologia genética de Piaget.

A Escola de Budapest, principalmente com os trabalhos de Agnes Heller e G. Markus, e os trabalhos desenvolvidos por Lefèbvre, na França, indicam-nos também novas possibilidades, ainda que tendam a sair da perspectiva marxiana.

Goldmann, dentro de sua perspectiva sociológica, preocupou-se mais significativamente apenas com esta perspectiva do sujeito transindividual e da transindividualidade, limitando-se a observar como uma obra de arte ou um produto cultural outro, mesmo quando criado materialmente por um único indivíduo, configurava-se, também, como produto da criação coletiva de um dado sujeito transindividual, na medida em que este sujeito coletivo também produzia e organizava as categoria mentais do produtor. Goldmann estava interessado basicamente neste sujeito coletivo, constituído por uma pluralidade de indivíduos, e que particularizava-se na produção cultural de seus indivíduos.

Para nós, numa perspectiva psicológica, faz-se necessário entender não apenas esta dimensão, de uma transindividualidade característica de um dado sujeito histórico coletivo, mas em particular o modo como a transindividualidade se organiza na pessoa e organiza a pessoa, em articulação solidária com a atividade construtiva de sua individualidade. A compreensão destas dimensões do fenômeno humano permite-nos a abertura de inúmeras possibilidades teóricas e, principalmente, o esclarecimento de inúmeros impasses com que se defronta atualmente a teoria e a prática da psicologia. Em particular a compreensão da pessoa numa perspectiva histórica e social, em toda a concretude de sua constituição, e não apenas ao nível de sua aparência.

Questões como a da mortalidade da individualidade e a durabilidade da transindividualidade; da transindividualidade e desempenho do agente institucional; da objetivação, manutenção e recriação da transindividualidade; do encontro inter-individual de diferentes sujeitos transindividuais; da clínica psicológica a partir de uma perspectiva que integre a transindividualidade; das relações entre investigador, transindividualidade e investigação; de aprendizagem, pedagogia e transindividualidade, e inúmeras outras, oferecem importantes vias de reflexão e estudo, com um grande potencial de esclarecimento de importantes setores da vida e da prática cotidiana, da prática científica e da prática política em nosso tempo.

 

CONCLUSÃO

A idéia da transindividualidade como efetivamente constituinte da pessoa, em articulação com a sua individualidade, oferece-nos assim a possibilidade de uma compreensão de fato da pessoa na concretude de sua constituição, uma vez que nos possibilita compreendê-la concretamente como síntese de relações sociais. Ao contrário das concepções que se fundamentam numa concepção do indivíduo reificado, ou numa perspectiva meramente sociológica, ela nos propicia condições de entender concretamente a pessoa como síntese de relações sociais, e como participante e constituinte de uma dado sujeito histórico.

 

 

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