Resumo

O presente artigo pretende demonstrar a importância do conceito de subcultura para a compreensão da formação da identidade desviante na toxicodependência. A fundamentação desta pretensão compreende dois momentos: o nível social e o nível individual. No primeiro tentaremos realçar o modo como a subcultura define condicionalismos sociais que influenciam de algum modo as evoluções individuais; no segundo momento, teceremos reflexões em torno dos vários tipos de gestão indispensáveis para que o sujeito possa prosseguir a sua conduta adictiva, a saber: gestão da imagem de si em relação aos outros do meio normativo; gestão da sua relação com a substância e com o que a rodeia; gestão cognitiva de si mesmo.

 

Notas sobre a construção psico-social da identidade desviante em toxicodependência

Destinamos o presente artigo à reflexão sobre o modo como o indivíduo toxicodependente constrói uma identidade desviante ao longo do seu percurso existencial. A compreensão de tal contrução implica o desdobramento da análise em dois momentos: o primeiro englobará a reacção aos seus consumos por parte dos outros membros da sua rede de suporte social e de instituições de controle - será o nível social; o segundo refere-se à contrução de si que o sujeito realiza, partindo dessa reacção e do modo como a gere no seu quotidiano - o nível individual. Socorrer-nos-emos de diversos autores inscritos na tradição de Chicago e em abordagens de natureza etnográfica. Estas fontes, se bem que da área da sociologia, tentam uma compreensão dos fenómenos desviantes sob o duplo signo do psicológico e do social (Matos & Agra, 1996). Procurar-se-á realizar aqui um panorama da síntese do social no indivíduo que necessita de ser estudado na sua dinâmica própria de construção de si e de significados. É esta interacção com o meio circundante que, aplicada na psicologia do desenvolvimento, trouxe tantos frutos para aquela ciência - e que, estranhamente, é deixada de lado na explicação de fenómenos transgressivos.

Cumpre ainda a realização de um esclarecimento: a reacção dos outros é uma reacção social na medida em que joga com representações colectivas, medos colectivos que se concentram em determinados espaços urbanos e em determinados grupos sociais; mas também implica o nível individual uma vez que o indivíduo desse grupo se constrói a si mesmo a partir desse contexto. É esta dupla significância que o conceito de "identidade desviante" dá conta: "identidade" - implica o sujeito e os seus significados, sendo algo que flui com o tempo e com o que os outros dizem do sujeito; "desviante" - porque remete para a construção social de uma etiqueta disponível para que o sujeito se identifique.

Utilizaremos na nossa reflexão o conceito de subcultura, como o lugar privilegiado do duplo nível de análise que pretendemos explanar.

 

CONCEITOS DE SUBCULTURA

O conceito de subcultura será pedra basilar da nossa análise, uma vez que se refere à dinâmica interna de um determinado grupo, minoritário no todo social, e também às interacções, muitas vezes de natureza conflituosa, que mantém com esse todo. Ao mesmo tempo é nesse grupo, na ideologia desse grupo, que o indivíduo se vai construir como um sujeito transgressivo - construção que implica, simultaneamente, determinações sociais e livre arbítrio (e como poderia ser de outro modo?).

Não existe, propriamente, uma teoria geral do conceito de subcultura. Os diversos autores que utilizaram este constructo teórico fizeram-no relativamente a uma população específica. As definições estão presas a contextos particulares que as relativizam e dificultam generalizações. Mesmo assim, Agra & Fernandes (1993) organizaram as possibilidades do conceito em torno do pólo instrumental e do pólo expressivo, que passamos já a expor.

 

Hipótese instrumental

A. K. Cohen (1955) estudando subculturas criminais da América do Norte foi o primeiro autor a formular esta possibilidade. Ela subentende uma visão utilitarista do conceito. Uma subcultura emerge sempre que exista um número suficiente de indivíduos com dificuldades de adaptação semelhantes e sempre que a interacção social permita um contacto mínimo entre esses indivíduos. Por razões puramente de ordem prática poderiam emergir associações criadoras de um ambiente desviante que enquadrasse os comportamentos não sancionados consequentes a essas desadaptações. (1)

Surge, pois, uma homogeneidade subcultural que se mantém como um mecanismo de adaptação instrumental: os sujeitos agrupam-se de algum modo para resolverem problemas em comum, sendo que esses problemas trazem consigo um certo estigma social. O sujeito que ganha status numa subcultura perde-o, na razão inversa, no todo social dito normativo.

É certo que esta função utilitária dificilmente deixa de ser observável em todas as subculturas, mas a formulação de Cohen passou-se a aplicar a subculturas que tendem apenas a estimular essa função no sujeito que é seu membro.

 

Hipótese expressiva

A dimensão instrumental não é, porém, a única configuração possível. Nos finais dos anos 60 tendo por base a emergência de uma série de grupos juvenis - rockers, teddy-boys, mods, hippies etc - a possiblidade expressiva é formulada. A escola de Birmingham, que tematizou sobre o assunto, via nesses movimentos juvenis tentativas colectivas de resolução, por parte da nova geração, dos problemas insolúveis da cultura lhe deu origem. (2) A hipótese, que nos parece agora um pouco datada, não se limita, porém, a esta formulação. Mais tarde, o conceito de subcultura dará conta de movimentos juvenis de natureza expressiva que fornecem um ponto de encontro a indivíduos provenientes dos mais variados estratos sociais. A vertente activista, no sentido político do termo, tende a ser relegada para segundo plano em favor de uma certa dimensão narcisística da existência - tratar-se-ia de propostas de vida alternativas às normativas, cativando militantes nos mais diversos quadrantes do social. (3)

Estamos perante uma definição que vai para além do instrumental, incitando outras dimensões dos indivíduos como a interrogação das suas existências, a adesão a este ou àquele ideário microgrupal. Emergiram por volta nos anos sessenta uma série de subculturas com ideários específicos e cosmovisões próprias. Nessas subculturas, o consumo de substâncias era apenas um dos elementos de uma vivência mais geral - de modo algum ocupava o lugar central. Era apenas um elemento de um sistema expressivo mais geral.

 

NÍVEL SOCIAL: as drogas em certas subculturas

Pretendemos fornecer uma contextualização das condicionantes sociais da construção da identidade desviante na toxicodependência: a complexidade do objectivo só poderá ser parcialmente cumprida através de ilustrações. A exemplificação a que nos propomos visa duas grandes áreas: primeiro, a evolução histórica dos consumos de heroína e a degradação progressiva da, digamos, sua imagem social - para isso utilizaremos um estudo clássico que procede a um balizamento histórico específico de uma grande cidade dos E.U.A.; segundo, ilustraremos o modo como uma determinada subcultura configura uma série de obstáculos que favorecem a emergência de uma carreira desviante em moldes bastante particulares e, de certo modo, previsíveis.

Pretendemos que, findo tal percurso, esteja feito o levantamento das duas grandes linhas do social para aqui relevantes: o olhar longitudinal que aventa hipóteses sobre a evolução da imagem social da droga; o olhar transversal que chama a atenção para os circunstancialismos que cada subcultura das drogas põe aos indivíduos.

 

Olhar longitudinal - o exemplo Nova Iorquino

Vejamos uma possível evolução da subcultura das drogas em Nova Iorque tal como foi analisada no estudo, hoje clássico, de Preble & Casey (1969). Na explanação que se segue tomaremos em principal linha de conta a tendência de passagem do nível expressivo (que não será expressivo a 100% como acima definimos) para formas mais instrumentais à medida que o acesso às drogas se torna mais difícil e os obstáculos sociais ao consumo se multiplicam. A história do uso da heroína é dividida em seis períodos: entre as duas grandes guerras; durante a segunda guerra mundial; de 1947 a 1951; de 1951 a 1957; deste ano a 1961 e de 1961 à data de elaboração do estudo.

No primeiro período observa-se um consumo de heroína em pessoas ligadas ao espectáculo, criminosos de vários tipos, prostitutas e proxenetas; posteriormente, durante a segunda grande guerra, dá-se uma súbita falha na distribuição da heroína sem consequências sociais a registar.

De 1947 a 1951 - os consumos aumentaram rapidamente, nomeadamente no que diz respeito à população imigrante de cor e à proveniente de Porto Rico que afluiram repentinamente à cidade, tendo alastrado também às comunidades de irlandeses e italianos, sem contudo despertar grande alarme. As relações sociais entre os consumidores mantinham-se estáveis e de alguma forma coesas: a heroína era barata, de boa qualidade, o seu consumo exigia pouca despesa diária e sucedia frequentemente em situações de festa.

De 1951 a 1957 - neste período observou-se um crescente consumo e iniciação ao consumo por parte de pessoas mais jovens - especialmente entre membros de gangs cansados de lutas e procurando novas alternativas. Em pouco tempo o modelo de herói juvenil passou do membro de gang irreverente e de casaco de peles para o rapaz da esquina que goza a sua heroína. Em consequência do aumento da procura e da venda deste produto ilícito a menores, os preços sofreram o primeiro aumento. A criminalidade associada também.

De 1957 a 1961 - o Sindicato, organização criminosa que se encarregara de abastecer a cidade, retira-se do mercado em virtude de um endurecimento legal e da crescente preocupação pública em torno do alastramento dos consumos à população juvenil. Porém, nem todos os membros do Sindicato observaram a directiva: o tráfico de heroína passou a ser realizado como um modo de fazer dinheiro rapidamente, recuperar de algum desastre financeiro. O tráfico passou a ser praticado de forma irregular, se bem que o Sindicato emprestasse com alguma regularidade somas a juros exorbitantes a certos traficantes participando, por isso, nos lucros da actividade.

De 1961 a 1969 - em 1961 surgiu uma falha no abastecimento da heroína durante algumas semanas. A pressão da procura foi tão grande que os vendedores puderam duplicar e triplicar os preços da heroína que começou também a ser adulterada. Quando o abastecimento normalizou, os dealers tinham aprendido a lição: existia mercado para venda do produto a preços elevadíssimos. Falhas cíclicas no abastecimento do mercado mantiveram pressão para que este estado de coisas se perpetuasse. O resultado na subcultura dos adictos foi desastroso: a coesão social fragmentou-se, os contactos entre consumidores reduziram-se cada vez mais a fins instrumentais - compra de droga a meias como forma de comprar maiores quantidades e, por isso, torná-la mais barata a cada consumidor; ou ainda realização conjunta de actividades criminais.

"There is no longer a subculture of addicts based on social cohesion and emotional identification, but rather a loose association of individuals and parallel couples. Heroin users commonly say, 'I have no friends only associates' " (Preble & Casey, 1969, p. 20).

Esta resenha da visão histórica dos consumidores em Nova Iorque, permite-nos detectar uma evolução subcultural que implica uma reordenação das duas definições acima alinhavadas. Observa-se a passagem da subcultura que, pelo menos em parte, é expressiva, a uma subcultura instrumental no pleno sentido do termo. Os pontos de inflexão prendem-se com os seguintes momentos: o alastramento da comercialização da heroína à camada juvenil desempregada de certos grupos minoritários; a reacção social que, ao nível das leis e da opinião pública, levou à retirada do mercado da organização criminosa mais experiente e o consequente abastecimento irregular do mercado; num último momento, as falhas de abastecimento de carácter cíclico, aliadas à procura constante, anteriormente criada, permitiram aos dealers o aumento dos preços e a degradação da qualidade do produto. Esta série de elementos, desencadeados em parte pela reacção social, desmantela definitivamente a organização expressiva da subcultura, reduzindo-a à parte mais instrumental. O consumidor viu-se preso num mercado em que não há alternativas de compra, controle de preço ou qualidade.

Tal evolução é exemplo típico da profecia que se auto-realiza enunciada por Thomas, mas aplicada à área das toxicodependências por Young (1971): as medidas repressivas tendentes a eliminar ou a circunscrever determinados comportamentos, se aplicadas a uma subcultura já organizada, terão o dom inverso de aumentar a radicalidade desses comportamentos. Nesse sentido o consumo de drogas rodeado de elementos expressivos foi despojado, reduzindo-se muitas vezes à dimensão auto-destrutiva e quase a-simbólica: consome-se porque se consome, destino final do consumidor junkie em fim de carreira.

A dimensão junkie, contudo, é apenas uma subcultura da droga entre muitas. Existem várias que não entram em contacto tão frequente com as instituições penais ou de saúde, onde são produzidas, normalmente, as caracterizações científicas. O trabalho de Adler (1993), a título de exemplo, tem a vantagem de nos dar a conhecer uma subcultura de mais difícil acesso, a dos dealers de maior dimensão, com o seu estilo de vida bem diferente, e outros obstáculos a tornear ao longo da sua carreira desviante. Por iniciarem o seu percurso transgressivo num ponto de partida diferente, a sua trajectória será necessariamente diversa da subcultura que em seguida nos debruçaremos.

 

Olhar transversal - a subcultura da droga crime

A conotação da droga fixou-se, através de um processo social de natureza longitudinal, nos aspectos negativos e prejudiciais da droga - a pista fornecida pelo caso de Nova Iorque é apenas um ponto de partida para a investigação da emergência da droga como estigma. A partir de então é essa dimensão a condicionante principal da construção da identidade do sujeito desviante. Tendo em linha de conta a rigidificação instrumental que o estudo de Preble & Casey deixa entrever (e note-se que um percurso de semelhante natureza observou-se no nosso país décadas mais tarde), tomemos a noção de carreira desviante tal como Faupel (1991) a concebe. Chamamos a este percurso transversal porque analisaremos as condicionantes subculturais num dado momento histórico - é uma análise transversal de um instante das mutações subculturais que se vão sempre observando.

A noção de carreira caracteriza-se por deixar de lado a dicotomia normal/anormal: passar-se-ia a tentar compreender dinâmicas semelhantes entre, por exemplo, profissionais liberais e desviantes de diversa natureza. Um outro aspecto a salientar é o facto de uma carreira ser construída pela vontade do indivíduo, mas também configura uma série de obstáculos e etapas previsíveis que lhe são, de certo modo, preexistentes. Por último, temos que a noção de carreira implica também uma experiência subjectiva que surge das actividades inerentes a essa carreira e os sentidos atribuídos às actividades.

"For our purposes, then, career is defined as a series of meaningfully related statuses, roles and activities around wich an individual organizes some aspects of his or her life". (Faupel, 1991, p. 24).

Na estruturação dessa carreira, Faupel considera como pilares da carreira desviante na subcultura que estudou dois eixos fundamentais: "Disponibilidade da Droga" e "Estrutura de Vida"; cruzando os eixos surgem definidos quatro campos como se observa na Fig 1:

    Estrutura de vida
    Alta Baixa
Disponibilidade da Droga Alta Adicto Estável
( stable addict )
Adicto extremo
(freewheeling addict)
Baixa Consumidor ocasional
(occasional user)
Junkie de rua
(street junkie)

Fig. 1: As fases da carreira droga crime

As dimensões quantitativas dos dois eixos só o são na aparência: o que é muita ou pouca droga varia conforme o indivíduo; assim como para a estrutura de vida - que se refere principalmente à existência ou não de comportamentos e papéis sociais que originam rotinas diárias regulares e previsíveis, sejam elas normativas ou desviantes. Sublinha-se igualmente que uma estrutura de vida alta fornece ao indivíduo situações sociais que de alguma maneira o ajudam a regular os consumos. Situações de anomia, de baixa estrutura de vida, retiram as referências sociais ao indivíduo que, assim, muitas vezes de forma involuntária, aumenta os seus consumos (o fenómeno pode observar-se em consumidores de outras substâncias como café ou tabaco em situações de férias em que a estrutura de vida é mais baixa). Mas debrucemo-nos um pouco sobre a tipologia proposta por este autor:

Para o consumidor ocasional, os relatos recolhidos não consideram nenhum motivo dramático da esfera do pessoal que possam explicar os consumos. A maior parte dos sujeitos foi introduzida na heroína por intermédio de amigos ou em situações sociais; não se viam como vítimas seduzidas mas como "participantes activos procurando os consumidores que se sabia terem fornecimentos de droga" (Faupel, 1991, p. 53) (4). Nesta fase a criminalidade é ocasional e experimental, ocorrendo de forma independente do consumo. O consumidor ocasional desconhece certas normativas subculturais, como por exemplo a proibição de introduzir neófitos ou crianças no consumo - para ele a droga é boa e deve ser partilhada com os outros. A estrutura de vida é alta mas a acessibilidade à droga é baixa.

Adicto estável: esta figura não se segue linearmente à anterior, há sujeitos que, sendo consumidores ocasionais, param os seus consumos ou mantêm-se indefinidamente nessa fase. O carácter individual e idiossincrático da evolução destas figuras é uma constante. O adicto estável mantém a sua estrutura de vida a um nível alto, aumentando também a disponibilidade e o acesso ao produto. Genericamente poder-se-á dizer que o indivíduo nesta fase se socializou e estabeleceu ligações com a subcultura. Casos existem em que o sujeito mantém um emprego legal paralelamente com uma actividade de tráfico. Nesta etapa o indivíduo conhece os traficantes, aprende a injectar e adquire outras competências básicas à vida subcultural. No caso de não se conseguir manter o emprego legal, a actividade de tráfico, a título de exemplo, fornece ao indivíduo uma forte estruturação dos seus hábitos quotidianos. É nesta fase que se desenvolvem as especializações criminais: prostituição, forjador de cheques, assalto domiciliário, a automóveis, roubo de artigos em lojas, carteirista etc... Observa-se que a actividade criminal precede a escalada dos consumos (tal facto observou-se também em Portugal no Projecto Droga - Crime). (5) O adicto desta fase adere aos princípios éticos da subcultura, ao mesmo tempo que exerce a sua actividade criminal de um modo planeado e cuidadoso.

"The so-called moral degeneracy caused by increased addiction is, from the stable's addict point of view, neither degenerate nor caused by addiction. What is taking place is normative conformity, wich is learned through a process of social interaction with other members of the subculture." (Faupel, 1991, p. 86).

Adicto extremo: esta figura despertou polémica, uma vez que não se observa em todas as situações (Brochu, 1996). É nossa opinião que o modelo de Faupel, ao entender uma não linearidade de sequências, permite perfeitamente a existência de consumidores com longa história de consumo que não tenham apresentado um padrão de consumos e um estilo de vida próprios desta fase. Mas adiante. Caracteriza-se esta etapa por uma maior disponibilidade de acesso à droga, com uma consequente erosão das estruturas externas de vida que propiciam uma desorganização dos consumos. Num determinado ponto da carreira da droga-crime, o desviante consegue um "big sting" (Faupel, 1991, p. 100), algo semelhante, na gíria portuense, a "uma fezada", quer por ter havido um roubo especialmente rentável; quer, no caso do pequeno traficante, por enganar um dealer em grande quantidade de produto ou por qualquer outro motivo. O certo é que a escalada de consumos eleva-se a altos níveis num curto intervalo de tempo. Faupel chama a atenção que a escalada, embora bem real nas suas consequências farmacológicas, só se observa nesta intensidade por contingências sociais. O intenso consumo isola o indivíduo de uma certa socialização subcultural - a sua especialização criminal é, digamos, interrompida podendo mais tarde, após a "fezada", encontrar dificuldades inesperadas para o seu reatamento.

Acrescenta o mesmo autor: "despite erractic, out-of-control consumerism, the freewheeling addict is able to maintain normative repectability" (p. 108). As normativas subculturais são respeitadas na sua máxima intensidade, ao mesmo tempo que há, muitas vezes, um isolamento ou diminuição da participação nas rotinas subculturais do tráfico ou de outras dimensões da criminalidade.

No junkie de rua, uma vez terminada a "fezada", e dependendo dos recursos e escolhas individuais, duas alternativas se impõem: o regresso à fase do adicto estável ou, se as coisas correrem mal, a entrada na degradação inerente a esta etapa. A disponibilidade da droga é reduzida, assim como a estrutura de vida - não há rotinas de vida definidas com clareza. A maior parte destes casos resulta numa inadaptação do consumidor à actividade criminal que anteriormente lhe garantia o rendimento monetário. Terminada a "fezada", a tolerância e a privação encontram-se em níveis tão elevados que o consumidor não arranja modo de os vencer eficazmente. No caso de actividades criminais como o roubo, assalto, falsificação, a interrupção observada na etapa antecedente pode originar uma desactualização por parte do sujeito das, por exemplo, novas técnicas utilizadas pela polícia, introdução de novos sistemas anti-roubo, ... Tal desadaptação, aliada à precipitação desencadeada pelo evitamento do síndrome de privação tornam o junkie um alvo fácil de captura ou manipulações por parte da polícia. Um adicto estável pode também passar directamente a esta fase se tiver perdido o emprego ou o apoio da família e não tiver conseguido arranjar uma alternativa estável de apoio financeiro. Independentemente da sua origem, o junkie de rua perdeu o controle dos seus consumos, não conseguindo organizar uma rotina de vida consequente: pratica actividades criminais de forma desorganizada e não especializada, correndo mais riscos e ficando mais vulnerável à captura. É esta vulnerabilidade que o torna mais facilmente sujeito a manipulações por parte da polícia e que desencadeia um processo de progressiva perda de estatuto subcultural. O junkie deixa de ser uma pessoa de confiança dos dealers que lhe poderiam dispensar quantidades de produto para o pequeno tráfico - as mais valias servir-lhe-iam para sustentar os seus consumos. Como não é de confiança, tem de comprar o produto na rua onde é mais caro e de menor qualidade. Paradoxalmente, é no momento do seu percurso de consumidor em que seria mais necessário o acesso à droga que se observa precisamente o fenómeno oposto.

Sem recursos, sem apoio, com pouco status subcultural o junkie vê-se forçado a romper com muitos códigos éticos que só abonam em seu desfavor: inicia novos sujeitos e menores no consumo, assume em casa o seu estatuto de consumidor porque passa a roubar objectos, adultera em demasia a droga se ainda tentar o pequeno tráfico... Segregado pela sua subcultura, sem alternativas, a actividade de crime é gerida pela necessidade da heroína.

Se bem que o estudo tenha sido realizado numa subcultura muito específica, é necessário realçar que existe uma carreira determinada em grande parte socialmente e que, se cruzarmos essa noção com o estudo de Preble & Casey (1969), poderíamos aventar a hipótese de que uma carreira organizada com esta severidade resulta de uma estável e por vezes implacável reacção social (sistema de justiça, policial, mecanismos inerentes ao mercado ilícito...) que mantém certas subculturas no nível mais intrumental. Tal carreira, ou o que lhe queiramos chamar, fornece então um quadro referencial para a construção individual da identidade desviante, bem como a sua actualização (outras subculturas da droga proporiam ao indivíduo outros percursos).

 

NÍVEL INDIVIDUAL: a construção de si

Como é que a subcultura condiciona a maneira como o sujeito se vê a si mesmo? Se no ponto anterior esboçámos uma possível evolução longitudinal de uma comunidade de consumidores exemplificando o processo da profecia que se auto-realiza (a subcultura de adictos de Nova Iorque é paradigmática para vermos como é que a heroína adquiriu a carga negativa que lhe é associada) para depois, acompanhando Faupel, compreendermos em que medida uma parte considerável da trajectória do consumidor é definida socialmente, agora é chegado o momento de invertermos o ponto de vista e acompanharmos o indivíduo no modo como ele pode tomar certas decisões, contornar determinadas contingências no interior ou em relação a certa subcultura.

Mais uma vez iniciamos o percurso com o que existe em comum entre o desviante e a normalidade:

"A preocupação com esta imagem (de si mesmo) pode levá-lo a desobedecer, a revoltar-se, mas pode também, e é o que sucede mais frequentemente, levá-lo a obedecer ainda mais; entendida neste sentido, a noção de indivíduo não se opõe de modo algum à noção de sociedade ou Estado. Pode então dizer-se que esse indivíduo é atingido no coração pelo poder público quando é atingido na sua imagem de si, na relação que tem consigo mesmo quando obedece ao Estado ou à sociedade." (Veyne, 1987, p. 10)

A emergência de mecanismos de controle social, como o aperfeiçoamento das tecnologias de identificação, a construção de arquivos com as histórias dos indivíduos onde são registadas as infracções e episódios individuais de vária índole, contribuiu sem dúvida para a generalização deste processo. Veyne chama a atenção para o facto de o indivíduo, por ter sido atingido no coração pelo poder público, passar a reagir ao Estado ou ao poder do mesmo modo como se relaciona com alguém que o humilha ou, pelo contrário, o elogia.

No século passado, Stuart Mill (1977) antecipava certos processos deste género - especialmente no caso em que o Estado se opusesse determinantemente à vontade de um certo número de indivíduos, poderia passar a ser sinal de coragem e determinação fazer o proíbido. Encontramo-nos, pois, perante uma disjuntiva: ou o indivíduo foi socializado normativamente e a imagem de si depende do poder público, obedecendo, por isso, às leis e às expectativas criadas; ou, pelo contrário, tal socialização falhou, a imagem de si continua a depender do poder público - agora num mecanismo inverso - podendo dar-se o caso de emergir uma subcultura que pretende suprir determinados problemas instrumentais mas principalmente fornecer uma ideologia, um suporte micro-social a essa imagem de si em falta. A subcultura, mesmo na sua versão mais instrumental, pode precisamente ter funções de suporte psicológico do indivíduo desviante.

Poderemos compreender melhor a ideia defendida por Matza (1981): uma pessoa que fuma marijuana pela primeira vez é já um funcionário do Estado. É funcionário porque se aproxima de uma substância que já está em grande medida significada de determinado modo pelo poder público. A sua liberdade de dar à marijuana este ou aquele sentido está condicionada por esse quadro de referências que não controla - mesmo se quiser relativizar esse quadro, como é comum acontecer em consumidores regulares, faz-se em sua oposição e socorrendo-se de um grupo de pares que de algum modo é desviante em relação aos valores normativos.

 

Gestão da imagem de si: a droga no indivíduo

Goffman (1988) denomina de estigma qualquer tipo de comportamentos que seja proscrito pela normatividade dominante. Por exemplo: a heroína, em Nova Iorque, foi adquirindo com o passar do tempo uma carga negativa, fortemente negativa até, passível de ter forte impacto nos outros o facto de se saber alguém consumidor. Este autor define estigma como qualquer comportamento que pode desacreditar o indivíduo que o pratica. A partir desse momento ou o estigma é invisível tendo o sujeito de gerir esse segredo de modo a não ficar desacreditado - embora possa ser desacreditável a qualquer momento; ou o estigma é visível e, dada a sua natureza desviante, infractora de consensos sociais, uma vez descoberto numa determinada pessoa tem o dom de impor esse traço relativamente aos demais papéis desempenhados pelo indivíduo - a pessoa é desacreditada em todos os momentos. Passa-se, por isso, a ser prostituta, homossexual, heroinómano em vez de se ter uma identidade mais heterogénea. Esta descoberta social pode segregar o indivíduo de determinadas esferas normativas, retirar-lhe recursos, deixando-o com a única alternativa de se tornar mais desviante. Assistimos aqui à esfera individual da profecia que se auto-realiza.

Em suma, o sujeito é:
Uma pessoa desacreditável - vê-se a braços com a necessidade de uma constante manipulação da informação; mantém laços com o normativo social mas simultaneamente constrói contactos com pequenos grupos desviantes, aos quais se alia para praticar os seus comportamentos condenáveis pela normatividade dominante.

Ou é Uma pessoa desacreditada - pelo seu estigma ser visível, a pessoa enfrenta um ciclo quotidiano de restrições. Procede-se a uma segregação espacial e relacional. O sujeito deixa de ter, em casos mais extremos, apoio da comunidade normativa, o grupo de apoio passa a ser exclusivamente o desviante. O desacreditado manipula a tensão que pode surgir em determinadas situações.

Em ambos, porém:

"Uma vez que em nossa sociedade o indivíduo estigmatizado adquire modelos de identidade que aplica a si mesmo a despeito da impossibilidade de se conformar com eles, é inevitável que sinta alguma ambivalência em relação ao próprio eu." (Goffman, 1988, p. 117).

Essa tensão insuperável, dadas as contingências sociais inerentes ao estigma, é parcialmente contornada no caso da existência de uma subcultura forte, fornecedora de modos alternativos de identificação. Nesse caso resolver-se-ia o problema da tensão do eu à custa de uma crescente socialização em valores alternativos e uma consequente perda de estatuto na sociedade em geral. Note-se igualmente que, como dissemos, esses modos de identificação alternativos constituem-se, grande parte das vezes, em oposição directa aos valores normativos.

No caso da subcultura ser fraca ideologicamente, o referencial normativo não é relativizado por uma contra-argumentação. O indivíduo vê-se forçado a uma série de adaptações cognitivas e existenciais, de que iremos ainda dar conta.

 

Gestão da substância: tornar-se fumador de marijuana

Mas exemplifiquemos o que temos vindo a dizer com um estudo clássico - a gestão da imagem de si implica a gestão da substância e do que a rodeia. Becker (1963) interessou-se pelo processo pelo qual um indivíduo se torna um consumidor de marijuana. Este caso fornece-nos a vantagem suplementar de ter sido objecto de reflexão por parte de outro grande autor das teorias do comportamento desviante como é Matza (1981).

Becker acha que nem todos os que cometem um acto não previsto, ou mesmo estigmatizado, têm a intenção de o fazer ou são movidos por um impulso bem definido. Por aproximações sociais, por convívio com um grupo de amigos, o indivíduo passa a encarar o comportamento desviante de outro prisma, ligeiramente afastado dos estereótipos dominantes. Matza denomina afinidade esse processo de aproximação, sendo resultado dele, apenas intenções - que podem ser favoráveis ou desfavoráveis à prossecução do processo de desviância.

Segue-se a fase seguinte, a aprendizagem/socialização na subcultura - o processo de afiliação de Matza - onde se compreendem, entre outras, as aprendizagens das técnicas de consumo. Para que o comportamento desviante se estabilize Becker considera crucial o processo de etiquetagem pública - o indivíduo é descoberto e passa a ser considerado desviante. Isto é acompanhado por uma "mudança drástica da sua actividade pública" (Becker, 1963, p. 32). Por essa altura, Matza defende observar-se o que denomina conversão: tal fenómeno envolve uma reconsideração de si mesmo e das suas afinidades. Seria o culminar do processo de afiliação: "processo pelo qual o sujeito se converte a uma conduta nova para ele" (Matza, 1981, p. 126), podendo-lhe dar novos significados em si (dentro de determinadas margens sociais como já vimos). O processo é inseparável da trajectória do indivíduo.

O sujeito aproxima-se de uma subcultura, começa a partilhar com ela certas práticas até que adquire uma identidade desviante. Passa a ver-se a si mesmo de um novo prisma, em que a actividade estigmatizada adquire um papel central na organização dessa nova identidade. Matza denomina essa etapa mais estável do percurso desviante de significação: o indivíduo, por já se considerar desviante, passa de algum modo a testemunhar contra si, seleccionando factos e episódios na sua própria existência que confirmam a sua diferença e o seu estatuto diverso dos demais.

E se agora sublinhámos a importância que esse processo de etiquetagem pública desempenha nessa mudança, também Goffman refere o facto de muitos estigmatizados, pertencentes a subculturas ideologicamente fortes, se referirem a esse momento como, finalmente, a chegada ao estado de graça em que a liberdade plena é alcançada.

Becker considera o caso dos fumadores de marijuana especialmente paradigmático, uma vez que a motivação desviante não antecede os comportamentos mas é construída à medida que eles se vão desenrolando. Por algum motivo o indivíduo contacta um meio não normativo em que a marijuana é fumada - no caso, músicos de jazz. Pelos exemplos que observa e conversas que ouve, o acto de fumar essa droga passa a ser encarado de outro modo. Passam a existir outras referências sobre o fenómeno além das decorrentes do senso comum. Fumadores existem com os quais o sujeito simpatiza e que contradizem o retrato esteoreotipado do drogado.

Neste momento o indivíduo pode avançar no processo ou manter-se por aí - as normativas dominantes e a sua escolha individual traçaram o afastamento. Mas em caso contrário, principia aqui o processo de socialização na subcultura. O indivíduo depara-se com situações em que todos fumam e acaba por experimentar - tem um longo caminho a percorrer. Num primeiro momento terá de aprender a técnica, saber o modo como se fuma: sem essa aprendizagem a dimensão hedónica da droga é-lhe vedada. De seguida, terá de aprender a percepcionar os efeitos da substância. Para Becker, estar-se high - sob o efeito da droga - implica duas dimensões: a existência de efeitos devidos à marijuana e o reconhecimento desses sintomas como consequência do consumo. Em muitos casos esse reconhecimento não é imediato e requer diversas tentativas. Aliás, estar high pode não ser agradável, serão necessárias mais tentativas; ao mesmo tempo aprendem-se as categorias linguísticas subculturais que dão sentido a esses efeitos. Esta última fase de aprendizagem é dedicada a saber 'gozar' os consumos.

Ser consumidor regular de marijuana requer, porém, mais do que esta aprendizagem. Os processos de controle social multiplicam obstáculos que obstam a que tal aconteça. Só na organização de micro grupos se consegue anular os efeitos desse controle. A passagem de consumidor ocasional para regular implica um afastamento moral, uma reconceptualização: a droga é benéfica; o que se aplica às drogas não se aplica à marijuana; a marijuana não é droga, entre outras estratégias. O que nos faz pensar nas denominadas técnicas de neutralização descritas por Sykes & Matza (1996) a que já voltaremos.

As dificuldades a superar na esfera do controle social passam pelas dificuldades de acesso à droga (estamos em 1963, o tráfico de marijuana ainda não tinha sido sistematizado como agora sucede) que era fornecido de modo irregular; pela necessidade de esconder os consumos - p. e. indivíduos que possuem ocupações normativas têm medo de ser descobertos high; e, por fim, o que já foi abordado: a definição do acto de consumir como ilegal implica a existência e a aculturação individual numa contra-ideologia que poderá ser mais instrumental ou expressiva conforme os casos.

Só quando ultrapassadas todas estas dificuldades de sobremonta, é que o sujeito desviante alcança o estado da marijuana, encontrando-se desde então sob o efeito permanente da substância. Esta integração subcultural fornece igualmente aos indivíduos um quadro referencial sobre os modos como usar a substância, bem como interpretar efeitos, o que explicaria a progressiva redução do aparecimento de episódios psicóticos de origem cannábica (Becker, 1963). Aproveitando esta interpretação, Young (1971) propõe mesmo a utilização da subcultura para educação de consumos e enquadramento de certos estilos de vida - só agora se começam a ensaiar algumas tímidas intervenções comunitárias que aproveitam esse ensinamento. Defendia ainda Young que uma forte repressão poderia desencadear processos de amplificação da desviância que extremassem a degradação física, psicológica e social dos consumidores.

 

Gestão cognitiva: neutralização da moral dominante

Curiosamente, é na sociologia que se faz um primeiro esforço de compreensão de uma espécie de adaptação cognitiva que será necessário suceder para que um indivíduo se adapte a um estilo de vida desviante. O estudo de Sykes & Matza (1996) sobre a delinquência juvenil fornece-nos uma série de técnicas de neutralização da culpabilidade inerente a certos comportamentos. Tal tentativa implica uma série de posições teóricas sobre as quais convém reflectir um pouco.

Defendem os autores a necessidade de abandonar a procura do que é radicalmente diferente no desviante, em favor de um estudo das interacções sociais que fornecem contextos de aprendizagem de competências subculturais específicas - esses processos não são diferentes dos processos inerentes à normatividade dominante exceptuando, evidentemente, nos conteúdos.

Apesar da antiguidade do estudo (a primeira publicação data de 1957), a crítica mantém-se de pé, em nosso entender, no que diz respeito à parte de relacionar o conteúdo do que é aprendido com os contextos dessa mesma aprendizagem. Sykes & Matza chamam a atenção para o facto de, apesar do sujeito se estar a socializar numa subcultura desviante, nunca poderá pôr de lado, completamente, a moral normativa. À semelhança dos dispositivos judiciais que prevêem o evitamento da culpabilidade moral no caso do réu conseguir provar que as suas acções aconteceram na ausência de intenção criminal, diversas subculturas desenvolveram mecanismos de desculpabilização moral que, porém, não são reconhecidos pela restante sociedade. Passamos a enunciar os mecanismos considerados por aqueles autores e que, apesar de tematizados para a delinquência, são também pertinentes, directa ou indirectamente, para a toxicodependência:

A negação da responsabilidade: sucede quando o indivíduo acredita que o seu acto criminal foi desencadeado por forças exteriores a si mesmo. O uso desse mecanismo requer uma aprendizagem de si próprio como coisa agida em vez de sujeito actuante. Facilmente se catalogam exemplos na toxicodependência: roubei porque estava de ressaca; não sabia o que fazia, estava pedrado (...)

A negação da ofensa: o indivíduo não considera o seu acto imoral apesar de reconhecer a sua ilegalidade, por exemplo: pedir "emprestado" um automóvel; alegar que os lesados podem bem com as perdas inflingidas; ou nos casos em que o indivíduo acha que a mãe deve apoiar e suportar tudo, apenas porque é mãe.

A negação da vítima: o indivíduo acredita que o sujeito objecto do crime merecia ter sido castigado por algum motivo. No caso da delinquência os assaltos a minorias, a homossexuais ou a prostitutas podem ser justificados desta forma. No mundo da droga, os dealers podem julgar ser legítimo burlar consumidores novatos; ou qualquer tipo de estratégia que vise a desvalorização da pessoa lesada.

A condenação dos condenadores: neste caso os condenadores não são vistos como possuídores de estatuto moral para castigar alguém, sendo, pelo contrário considerados hipócritas - a polícia é vista como corrupta, estúpida e brutal. O que sucede é que o desviante enceta um diálogo interior entre "os seus impulsos desviantes e a reacção dos outros; e atacando os outros, a falta dos seus próprios actos é mais facilmente reprimida e esquecida " (Sykes & Matza, 1996, p. 211). Apesar de não serem condenadores, muitas vezes observamos a desvalorização, por parte do toxicodependente, de todo o tipo de cuidados.

Apelar a lealdades mais fortes: este tipo de técnica tem por dom a suspensão da moral dominante no sujeito desviante - os imperativos sociais da sociedade em geral são sacrificados pelas exigências de pequenos grupos em que o sujeito se encontra socializado. Este tipo de estratégias pode justificar recaídas ou a manutenção de comportamentos adictivos.

 

EM JEITO DE CONCLUSÃO

Temos aqui representadas na óptica individual (e como não dizer psicológica?) as dificuldades, obstáculos a ultrapassar na estruturação da carreira desviante, bem como a noção de conversão - que dá conta de uma certa mudança interna na ordem das significações do indivíduo. Tal nível de análise terá de ser complementado com o nível social atrás apresentado. Será curioso aplicar estes dois níveis a casos diversos, outras subculturas, procurando: definir o que é estrutural (ou invariante) nas dinâmicas dos grupos numa sociedade; a invariância dos problemas que se põem ao indivíduo portador de um estigma. Finalmente, a mutabilidade de tudo isto: o sujeito apresenta-se na sua história individual, vai-se modificando, adaptando as suas cognições e projectos existenciais ao que vai vivendo.

As propostas estão lançadas. Partilhemos apenas mais uma pista para actualização destes estudos clássicos e com a qual finalizamos a nossa reflexão:

"Por analogia (com Becker) falaremos no 'estado da heroína': fase avançada do contacto com esta droga em que o indivíduo está preso do estilo junkie, olhando o mundo através do filtro opiáceo. Evitar de tal modo o tempo em que não está sob o efeito do pó que todo o tempo que vive é governado por ele. O 'estado da heroína' caracteriza-se por um tempo interior muito específico que, parece-nos, se adequa com particular êxito à economia psicológica da ghettização. Dito de outro modo: a adaptação psicológica ao ghetto pode ter na heroína um instrumento favorável." (Fernandes, 1998, p. 75).

Estaria por realizar uma tentativa de compreensão psico-social da emergência da figura junkie em Portugal. Faupel (1991) de algum modo explicou a sua produção social numa determinada subcultura mas deixou em suspenso a esfera individual. O próprio conceito de subcultura não é sensível, como se vê, a esta dimensão espacial subjacente ao ghetto.

Na pista de Fernandes, poderíamos acrescentar ao psico-social a vertente espacial das margens periféricas engendradas pela grande cidade. A adaptação psicológica ao ghetto implicaria, para a sua compreensão, a visão individual, a subcultural e a espacial: tratar-se-ia de estudar as sínteses individuais de significado em toda uma série de conexões.

Seria realizar um projecto de psicologia pós-moderna.

 

Notas

(1)
A noção de subcultura instrumental é definida classicamente do seguinte modo:
"... It is cultural because each actor´s participation in this system of norms is influenced by his perception of the same norms are shared only among those actors who stand somehow to profit from them and who find in one another a sympathetic moral climate within wich these norms may come to fruition and persist." (Cohen, 1955, p. 65).

(2)
P. Cohen (cit in Clarke, 1983) acha mesmo que a subcultura juvenil tenta resolver, ainda que de modo mágico, os problemas e conflitos que ficaram por resolver na geração paterna. Não há espaço para debater aqui as implicações de tal posição, fiquemos por uma outra definição, esta mais genérica, de subcultura expressiva:
"Sub-cultures must exhibit a distinctive enough shape and structure to make them identifiably different from their ´parent´ culture. They must be focused around certain uses of material artefacts, territorial spaces etc. wich significantly differentiate them from the wider culture."
(Clarke, Hall, Jefferson & Roberts, 1983, p. 13).

(3)
O que é bem sintetizado na seguinte afirmação:
"O desenvolvimento posterior do conceito demonstrou que a subcultura é uma solução colectiva que atravessa tranversalmente o tecido social nas suas repartições sociológicas clássicas, indo buscar a sua unidade em elementos expressivos e estilos de vida compartilhados por indivíduos pertencentes a estratos diversos. (Por exemplo Cf. Brake, 1985)." (Agra & Fernandes , 1993, p. 71)

(4)
Noutro estudo acha-se uma pista para esta conclusão à primeira vista tão ousada, mas sucessivamente reafirmada em vários estudos:
"This study has also uncovered a group of problematic addicts with conventional (middle-class) histories of socialization. In such cases the development of drug use is more easily explained by personal or family pathologies than by psychologically "normal deviant- socialization"."
(Grapendaal et al, 1995, p. 196)

(5)
O Projecto Droga Crime define três tipos de figuras desviantes existentes nas prisões portuguesas: o delinquente-toxicodependente; o especialista droga-crime; e o toxicodependente-delinquente. Assinalando-se uma clara preponderância do primeiro tipo, a que em seguida transcrevemos a definição:
"A primeira figura do comportamento deviante, o delinquente-toxicodepndente, afirmou-se na delinquência como modo habitual de vida antes do consumo ocasional e depois regular de drogas. Tendo-se especializado na delinquência aquisitiva antes do consumo de drogas, dá continuidade a esse tipo de comportamentos após a iniciação e consumo regular de drogas, praticando ocasionalmente e secundariamente delitos associados ao seu mercado ilícito," (Agra, 1996, p. 13)

 

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