Resumo
Neste trabalho procura-se demonstrar, inicialmente, que as duas atitudes relativas à sexualidade adotadas no Ocidente no decorrer dos dois últimos milênios – a que encara o sexo como um dever a ser cumprido preferencialmente sem prazer, que remonta ao início da cristandade, e a mais recente, que concebe o prazer sexual como algo que se dá sobretudo quando liberto de deveres correlatos –, apesar de suas diferenças inegáveis, mantêm-se igualmente presas a um mesmo quadro de referência: o que situa o prazer e o dever em dois pólos opostos que ora pendem para um extremo, ora para o outro. No prosseguimento das argumentações, essas duas formas de se conceber a relação entre o prazer e o dever, aparentemente antagônicas, embora igualmente presas a um mesmo quadro de referência, são contrapostas a uma outra, radicalmente diversa: a elaborada pelo pensamento hindu, onde o prazer (kama), em vez de se opor ao dever (dharma), é absorvido nele. Por meio dessa contraposição, própria à abordagem antropológica, torna-se evidente o caráter particular e relativo das concepções sobre a sexualidade atualmente em voga, que, tendo se constituído através da negação das repressões tradicionalmente impostas, afirmam-se como inscritas na natureza humana e, como tais, universalmente aplicáveis.
“A dúvida antropológica não consiste unicamente em saber que não sabemos nada, mas em expor resolutamente o que acreditávamos saber, e até mesmo a nossa própria ignorância, aos insultos e aos desmentidos infligidos aos hábitos e idéias que nos são muito caros por aqueles hábitos e idéias que podem contradizê-los em seu mais alto grau” (LÉVI-STRAUSS, 1973, p.37).1
Vivemos hoje uma época de grande permissividade sexual, tanto na escolha do parceiro, que é limitada apenas pelo desejo de cada um, quanto no tipo de relacionamento adotado. Experiências homossexuais, bissexuais ou que incluam outras pessoas além do casal já não são execradas pela opinião pública como intrinsecamente más ou degradantes. A produção de filmes ou de romances que abordam tais vivências como fenômenos situados no contexto da vida cotidiana, e não mais em espaços marginais, revelam essa crescente tolerância em relação a práticas sexuais alternativas. A mesma aceitação manifesta-se em relação ao estatuto do relacionamento instituído, entre os quais se incluem encontros ocasionais em que as pessoas ficam umas com as outras sem assumir tipo algum de compromisso, arranjos mais estáveis que podem ser com ou sem coabitação, casamentos que se afirmam como tais, embora não o sejam de direito, casamentos a três2 e assim por diante.
Nessas circunstâncias, a possibilidade de as pessoas se unirem e de se manterem unidas em decorrência única de elos subjetivos ligados ao desejo é tida como um direito inquestionável do indivíduo, cuja fidelidade maior situa-se na relação que ele mantém consigo mesmo, com seus prazeres, sua felicidade e seu bem-estar pessoal.3
Deveres, obrigações e compromissos inquebrantáveis ligados ao casamento tradicional heterossexual e indissolúvel, assim como a percepção deste como o locus privilegiado do exercício da sexualidade, são descartados como retrógrados e postos em dúvida, juntamente com a idéia de que o amor seria o componente básico e essencial ao exercício da sexualidade plena. A trilogia amor-casamento-sexualidade, denunciada pelas feministas como o instrumento ideológico da manutenção da opressão feminina,4 vai se tornando cada vez mais desacreditada como o caminho mais adequado à realização pessoal, em termos sexuais e afetivos. Muitos jovens que optam pela coabitação, em detrimento do casamento, agem assim por acreditarem que “a falta de compromisso, a precariedade institucional de sua relação, é a garantia mesma de sua qualidade” (PROST, 1994, p.92).
Tais concepções sobre as relações erótico-afetivas, nas quais o cumprimento do dever e o usufruto do prazer parecem se opor de forma inelutável, revelam-se claramente nas considerações feitas pela psicanalista e sexóloga Regina Navarro Lins, a partir das experiências de vida de seus clientes e dos participantes de seus seminários e palestras sobre sexologia. Nesse sentido, o trabalho de Regina Navarro Lins tem um valor etnográfico indiscutível. Suas generalizações a respeito das condições mais propícias à obtenção do prazer sexual ou ao papel do sexo no casamento carecem, todavia, de uma melhor fundamentação, já que o material pesquisado que serve de base para suas inferências reflete apenas uma visão de mundo particular, peculiar a um determinado grupo social: o composto por pessoas de classe média que costumam freqüentar sessões de terapia psicanalítica e interessar-se pela sexologia, residentes provavelmente na cidade do Rio de Janeiro ou em regiões próximas.
O fato de as idéias expressas por essas pessoas refletirem uma visão de mundo mais ampla, a correspondente aos grupos mais modernizados do mundo ocidental contemporâneo – o que é ressaltado através de citações da literatura referente a essa temática –, não elide a necessidade de manter sua particularidade, uma vez que as generalizações de Lins em relação às condições mais propícias à obtenção do prazer, com base no conjunto do material pesquisado, continuam, mesmo assim, a ser peculiares a um contexto cultural específico, representado por esses grupos mais modernizados, e não à humanidade como um todo.
Foi por não ter considerado a forma pela qual essa classe de pessoas vivencia suas relações erótico-afetivas como algo peculiar a uma determinada época e lugar, mas sim como estando inscrita na natureza humana, que Lins outorga a tais experiências um caráter de inevitabilidade, o que a leva a afirmar que em toda relação estável, onde “o sexo acaba se tornando um hábito e um dever”, esse se torna, inelutavelmente, tedioso. Tendo acatado a idéia de que “a relação amorosa e sexual com a mesma pessoa por um tempo prolongado leva à falta de estímulo e interesse”, já que a manutenção de um parceiro estável tem sempre por efeito fazer com que “tudo fique repetitivo e sem graça” (LINS, 1997, p.152), a oposição entre o dever e o prazer, que transparece no discurso de seus informantes, é tida, igualmente, como algo presente em todas as épocas e lugares, e não como uma concepção peculiar a um determinado contexto cultural.
Fundamentada nessas premissas, parece-lhe inevitável que “a maioria das mulheres, depois de algum tempo de casamento, faça sexo sem nenhuma vontade” (LINS, 1997, p.153). Dessa perspectiva, a opção pelo exercício de uma sexualidade liberta de qualquer tipo de obrigação - tornada viável após a liberação das mulheres do controle sobre a sua sexualidade imposto pela ideologia patriarcal - parece ser a melhor maneira de se evitar que a relação se estrague, “que o compromisso transforme o sentimento em hábito e rotina” (LINS, 1997, p.159-60). A declaração de uma jovem pedagoga de vinte e seis anos de que sua recusa a ter filhos com seu companheiro, com quem coabita há quase três anos, decorre do receio de que a chegada de um filho imponha à relação uma estabilidade que a apavora ilustra muito bem essa atitude preventiva quanto ao estabelecimento de compromissos recíprocos.
Um outro depoimento, utilizado por Lins para exemplificar a crença na existência de uma incompatibilidade básica entre uma vivência sexual satisfatória e a adesão às “regras e obrigações de um casamento” ou de um namoro tradicional é o de uma de suas clientes que diz estar vivenciando “uma transa afetiva e sexual bastante forte”, após ter optado por não ter “compromisso nenhum entre ela e seus parceiros, que são três alternadamente”, e que considera essa ausência de compromisso “justamente o que torna esses encontros tão interessantes” (LINS, 1997, p. 196).
Quanto aos homens, enfocados mais raramente, o temor de assumir algum tipo de obrigação em relação às suas parceiras sexuais é uma das razões alegadas para justificar a opção por garotas de programa, já que o pagamento em dinheiro os “livra de qualquer outra dívida” (LINS, 1997, p. 217). Dessa maneira, não é preciso fingir, como ocorre em encontros ocasionais, que vai haver um reencontro ou de esquivar, caso haja um telefonema com essa intenção. Esse tipo de atitude aparece claramente na fala de um advogado de 45 anos que confessa ter tomado “uma decisão radical, que considera a mais sensata da sua vida”, a de se relacionar apenas com garotas de programa, a fim de evitar o que vinha ocorrendo com suas parceiras eventuais que criavam, quase sempre, “uma expectativa de continuidade que o deixava constrangido” (LINS, 1997, p. 218). Além disso, em uma relação puramente mercantil, não é preciso se preocupar com o que a mulher deseja, nem procurar saber se foi possível agrada-la ou não5.
No que diz respeito àquelas pessoas que optam por manter uma ligação estável, Lins acata a opinião de que para tal relação ser prazerosa é preciso garantir a liberdade de cada um dos parceiros de levar uma vida própria, o que inclui a possibilidade de realizar os seus anseios sexuais com relação a outras pessoas: “a possessividade e o ciúme não entram nesse tipo de vínculo, já que os dois têm consciência de que o único motivo de a relação existir é o prazer de estar juntos” (LINS, 1997, p. 201).
Outro autor que analisa as conseqüências trazidas pela emancipação sexual feminina é Anthony Giddens. Sem se deixar levar pela ilusão de que essa emancipação constitui a solução perfeita para os inúmeros problemas sexuais induzidos pela ideologia patriarcal, como ocorre com Lins,6 e bem consciente das dificuldades de se construir uma vida erótico-afetiva fundamentada em outros termos que não os usualmente aceitos, tanto para os homens7, quanto para as mulheres,8 Giddens enfatiza dois aspectos básicos aí presentes. Um deles refere-se ao fato de as pessoas se utilizarem cada vez mais do termo relacionamento - e não namoro ou casamento - para designar o vínculo que as liga aos seus parceiros. Essa mudança, que é sem dúvida bem mais do que terminológica, denota as transformações inegáveis por que passa o casamento e uma série de outras situações nas quais as pessoas, associadas uma as outras por vínculos emocionais próximos e continuados, só mantêm seu relacionamento “enquanto ambas as partes considerarem que extraem dele satisfações suficientes, para cada uma individualmente” (GIDDENS, 1992, p. 69).
O outro aspecto diz respeito à espécie de amor em pauta. Confluente e não mais romântico, esse tipo de amor volta-se para a busca de um “relacionamento especial”, e não de uma “pessoa especial” (GIDDENS, 1992, p. 72). Nessa busca, o fator preponderante não é a consideração, o cuidado ou a deferência à pessoa amada, mas a preocupação com a relação, que, submetida a um processo constante de negociação e de construção, merece cuidados especiais.
Em um caso específico, o de uma jovem musicista, tal preocupação evidencia-se na alegação de que a decisão de apoiar o envolvimento de seu parceiro com uma outra mulher - enquanto ele fazia um curso fora da cidade em que residiam - foi tomada por ser de fundamental importância para a relação deles. Apesar de ter sentido medo de que ele pudesse vir a se apaixonar por essa pessoa, ela não viu outra saída, uma vez que não quiz se sentir responsável pelas frustrações que a renúncia a esse novo romance acarretariam (LINS, 1997, p. 171).
De qualquer forma, o fenômeno detectado por Lins e Giddens é o mesmo: o relacionamento erótico-afetivo só é mantido enquanto cada um dos parceiros obtém um certo grau de benefícios que justifique a sua continuidade. Entende-se, assim, o motivo de a exclusividade sexual se constituir em uma opção do casal que, dependendo do temperamento de cada um ou de fatores circunstanciais, pode exigi-la ou não.
Após ter utilizado as investigações realizadas por esses dois autores para trazer à tona as emoções, desejos e temores provenientes da crença de que a busca de uma vida sexual prazerosa, reivindicada como um direito inquestionável do indivíduo, é freqüentemente incompatível com a adesão a compromissos ou deveres predeterminados, procurarei pôr em evidência um fato, normalmente ignorado pelos que tratam dessa questão: o de que tal crença, apesar de ter se consolidado em contraposição direta às idéias tradicionalmente veiculadas pela moral cristã, que sempre considerou a sexualidade como um dever a ser cumprido com fins procriativos e não como algo a ser usufruido com prazer,9 situa-se no mesmo quadro de referência daquilo que renega: aquele no qual o prazer e o dever se opõem mutuamente.
Com efeito, desde seus primórdios até bem pouco tempo atrás, a posição da Igreja Católica com relação ao sexo sempre foi a de considerar a sexualidade “como uma espécie de mal necessário, lamentavelmente indispensável para a reprodução humana” (RICHARDS, 1993, p. 34), que só se justificava e se legitimava quando exercida dentro do matrimônio e comprometida com a procriação. Conforme assinala Louis Flandrin, ao traduzir o pensamento eclesiástico durante esse período:
“É necessário comer para viver, mas deve-se evitar se entregar aos prazeres da gula. Da mesma maneira, somos obrigados a nos unir a outro sexo para gerar filhos, mas não devemos nos prender aos prazeres sexuais. A sexualidade nos foi dada somente para nos reproduzirmos. Utilizá-la para outros fins, como por exemplo para o prazer, é malbaratá-la” (FLANDRIN, 1987, p.135).
A sexualidade matrimonial - imposta como um dever (debitum) cujo cumprimento, levando em conta os fins procriativos, cada um dos cônjuges tinha o direito de exigir do outro - era consentida, portando, com a ressalva de que deveria ser vivida com o objetivo de aplacar o desejo, e não de incendiá-lo:
“A principal razão do casamento era responder à concupiscência pela obrigação recíproca dos esposos, o debitum. É evidente que, dentro de uma tal perspectiva moral, o debitum deveria ser diferente dos jogos violentos da paixão, do erotismo. O caráter jurídico do termo traduz bem os limites do ato” (ARIÈS, 1987, p.157).10
Uma das primeiras manifestações dessa forma de julgar a sexualidade encontra-se em uma carta escrita por São Paulo aos coríntios:
“É bom não tocar em mulher. Todavia, para evitar a fornicação, tenha cada homem a sua mulher e cada mulher o seu marido. O marido cumpra o dever conjugal para com a esposa; e a mulher faça o mesmo com relação ao marido” (ICOR.7,1-3).11
Para alguns teólogos mais radicais, mesmo quando exercida no casamento e com fins procriativos, a sexualidade ainda não se processava sem pecado: “o acasalamento dos pais não ocorrendo sem desejo carnal (libido), a concepção dos filhos não se dá sem pecado” (LE GOFF, 1992, p.157).12 O estabelecimento de uma relação entre o pecado original e o ato sexual remonta a Clemente de Alexandria (cerca de 150-215). Foi Santo Agostinho, todavia, que ligou definitivamente o pecado original à sexualidade.
O casamento torna-se, assim, a maior vítima da nova ética sexual; “por mal menor que fosse, ele estava, apesar de tudo, sempre marcado pelo pecado, pela concupiscência, que acompanhava o ato sexual” (LE GOFF, 1992, p.156). No caso de os esposos fazerem amor apenas pelo prazer que o sexo proporcionava, o pecado era mortal. A sexualidade desmesurada entre os esposos era tida como profundamente perniciosa - não só para os casais que incorriam em pecado, mas também para seus filhos. Isso aparece claramente em um sermão do bispo Cesário de Arles pronunciado na primeira metade do século VI, no qual é feito um alerta aos cônjuges para que não se entregassem em demasia aos prazeres sexuais, uma vez que os esposos incontinentes (que não sabem conter sua sexualidade dentro dos cânones prescritos) terão como castigo filhos “leprosos ou epilépticos, ou talvez demoníacos” (LE GOFF, 1992, p. 159).
Foi a partir da virada do século XVI para o XVII que alguns teólogos, como Thomas Sanchez, eximem do pecado os esposos que se unem em busca do prazer, “com a condição é claro, que nada façam para impedir a procriação que permanece sendo a finalidade essencial do ato sexual” (FLANDRIN, 1987, p. 137). Mesmo, assim, como se pode ver através dos manuais dos confessores, a Igreja continuava a presidir a sexualidade conjugal em seus mínimos detalhes, ditando “regras sobre as posições do ato sexual” (ALMEIDA, 1992, p. 99) e punindo todas as outras variações. Apesar de essa atitude de vigilância sobre o casal ter persistido até recentemente, a publicação dos manuais foi decaindo pouco a pouco. Tomando como referência os manuais publicados em Portugal, pode-se constatar que houve cinqüenta e sete publicações, no século XVI, vinte, no século XVII, e quatro, no século XVIII. Posteriormente, devido às severas críticas da burguesia puritana ao caráter escandaloso dos manuais, que descreviam detalhadamente as mas diversas práticas sexuais tidas como pecaminosas e degeneradas, a Igreja “tentou apagar de seus anais as marcar da existência dessa copiosa literatura” (ALMEIDA, 1992, p. 59). Temia-se igualmente que as perguntas minuciosas sobre a vida sexual do penitente, feitas pelo confessor, pudessem induzir os ingênuos a praticar atos cuja existência, muitas vezes, desconheciam. Outro temor referia-se à possibilidade, que não podia ser ignorada, de que os confessores se excitassem ao fazer esse tipo de interrogatório.
No século XIX, quando a idéia do casamento por amor, já consolidada nos países anglo-saxões13, começa a se expandir para outras regiões,14 a busca do prazer sexual, desde que acobertada pelo relacionamento conjugal e metamorfoseada num encontro de almas, vai ganhando legitimidade entre a burguesia emergente. Charles Kingsley, um clérigo inglês célebre por suas idéias políticas e religiosas, já defendia, na Inglaterra de 1840, a idéia de que na vida conjugal “a união sexual é companheira da proximidade espiritual, o emblema do amor celestial” (GAY, 1990, p. 259). Nos Estados Unidos, o teólogo Alfred Roe, em suas cartas à esposa, de quem estava separado devido à guerra civil, legitimava suas reminiscências eróticas, com ressalvas que afirmavam “como é doce e precioso o amor conjugal verdadeiro e puro”15 (GAY, 1990, p. 117). Essas estratégias, que eram habilmente montadas para encobrir a união sexual e os desejos eróticos sob o manto protetor de sentimentos espirituais, puros e celestiais, a fim de abrir espaço a prazeres e desejos estritamente carnais, sem deixar de lado a aprovação social e divina, permaneciam acessíveis, todavia, apenas aos relacionamentos conjugais com intuitos, em princípio, procriativos.
Tendo contrastado a noção própria à modernidade, a de que o prazer sexual em sua espontaneidade plena manifesta-se sobretudo quando não está vinculado a deveres prévios, com a idéia defendida pela Igreja Católica, a de que o sexo só é legítimo quando exercido no cumprimento de um dever, e não como um mero prazer,16 a fim de pôr em evidência o fato de que ambas se situam dentro de um mesmo quadro de referência, aquele no qual o prazer e o dever se opõem mutuamente, acredito ter fornecido elementos suficientes para afirmar que o movimento de liberação sexual, que se postula como revolucionário por propor a busca do prazer independentemente de qualquer limitação decorrente de obrigações ocasionais ou moralmente impostas pela Igreja ou pela tradição, ainda se mantém presa a um modo de pensar comum àquilo que pretende superar, uma vez que se limitou a passar de um dever exercido preferencialmente sem prazer para um prazer que exclui deveres e compromissos recíprocos.
Para escapar dessas duas opções, aparentemente díspares, mas, na realidade, igualmente destinadas a oscilar em torno de uma mesma temática, parece-me necessário enfocar a sexualidade de uma forma radicalmente diversa da que nos foi inculcada por dois mil anos de cristandade, o que se torna bem mais viável quando se adota o ponto de vista antropológico que pressupõe sempre a abertura em direção a outros universos culturais totalmente diversos daquele em que vivemos.
Com esse intuito, tomarei como referência o modo pelo qual o pensamento hindu aborda a relação entre o prazer ou amor (kama)17 e o dever (dharma)18 que tem se mantido o mesmo desde a época em que o Kamasutra foi escrito, entre os séculos I e IV, até os dias atuais. Para uma melhor compreensão da forma como se dá essa relação, mencionarei uma consideração feita por um antropólogo indiano, Triloki Nath Madan, a respeito dessa questão, que resume muito bem a idéia central aí presente: a de que “o amor (kama) não se opõe ao dever (dharma), mas é absorvido nele” (MADAN, 1981, p. 141).19
Na totalidade hierárquica composta pelas três finalidades da vida do homem-no-mundo20 - o dharma (as obrigações morais e religiosas), o artha (a aquisição de bens e riquezas) e o kama (amor ou prazer) -, “o inferior (prazer) é ao mesmo tempo limitado e consagrado por sua associação aos objetivos superiores” (DUMONT, 1992, p. 118). É limitado, à medida que é preciso renunciar ao kama (prazer), quando a sua obtenção pressupõe o abandono do artha ou do dharma, que lhe são hierarquicamente superiores, e consagrado, por estar englobado sob o manto protetor mais amplo do próprio dharma.21 O fato de o kama ser hierarquicamente inferior ao dharma não implica, pois, como poder-se-ia talvez pensar, que ele seja menos desejável. Por ser um dos fins da existência humana, a busca do prazer é uma meta plenamente legítima e válida, desde que mantida na posição que lhe é adequada.
A restrição a que o kama deve se submeter não se liga, portanto, à estipulação de normas relativas à regulamentação das formas de se obter prazer – o kama de qualquer pessoa pode incluir “as mais desconcertantes fantasias e perversões” (MALAMOUD, 1982, p. 38) – mas, sim, a seu usufruto dentro dos limites impostos pelos outros fins da existência humana que lhe são superiores. Dessa maneira, as transgressões, quando ocorrem, provêm da resistência em renunciar a algo legítimo e desejável, em nome de um bem maior, e não da associação entre prazer e pecado, como acontece na cristandade.
Sendo assim, o que importa não é estabelecer regras que delimitem quais as técnicas erótico-amorosas permissíveis e quais as proibidas – objetivo minuciosamente perseguido pelos manuais dos confessores cristãos –, mas enfatizar a necessidade de serem tomadas as devidas precauções para que a dedicação aos prazeres sexuais, independentemente de quais forem, não seja de tal monta que implique a negligência do dharma.22
“De acordo com o pensamento hindu, a maior fonte de perplexidade é a preocupação egoísta com o próprio eu, com o preenchimento de seus próprios desejos – com kama (prazer) divorciado do dharma (conduta correta) – o que leva um ser humano a olhar os outros seres humanos em termos instrumentais e finalmente resulta em seu próprio colapso moral” (MADAN, 1988, p.154).
Tal atitude recriminatória quanto à possibilidade de se negligenciar o dharma, em nome do kama, tida como de grande relevância no contexto hindu, tem sido cada vez mais menosprezada pela ideologia reinante no mundo ocidental contemporâneo, que faz dos indivíduos, de seus amores, prazeres e realizações pessoais, o bem maior que tudo justifica.
Um outro fator que obstrui o usufruto do kama é a opção pessoal pela busca do crescimento espiritual como uma meta primordial da existência. Isso ocorre não porque o sexo seja pecaminoso e, como tal, incompatível com a elevação espiritual, mas pela emissão do sêmen ser considerada “como esmorecedora, um desperdício debilitante de vitalidade e de energia essenciais” (KAKAR, 1990, p. 119). Desse ponto de vista, a abstinência sexual (brahmacharya) é um fator relevante para a estimulação e o incremento da criatividade, da memória, do poder espiritual e da inspiração artística e científica. Inúmeros sábios indianos consagrados, a exemplo de Gandhi, freqüentemente optam pela adesão ao brahmacharya.23 Coerentemente com esse modo de pensar, os psicanalistas indianos enfatizam muito mais os benefícios da sublimação da sexualidade do que os perigos ou malefícios de sua repressão (KAKAR, 1990, p. 118).
Para melhor compreendermos a relação entre o dever (dharma) e o prazer (kama) no pensamento hindu, é preciso lembrar que o termo sânscrito kama, geralmente traduzido por amor, refere-se muito mais aos desejos e aos prazeres corporais das mais diferentes espécies do que aos sentimentos e às emoções espirituais.24
O aspecto sensual do kama, o fato de ele se expressar primordialmente através do corpo, de um corpo que “goza, ostenta o prazer de seus órgãos” (KRISTEVA, 1988, p. 82), contrasta fortemente com a “diabolização, na Idade Média, da carne e do corpo, entendidos como um lugar da devassidão, como um centro de produção do pecado” (LE GOFF, 1992, p. 153). A luxúria, termo que abarca todos os pecados ligados à carne, considerada pelos teólogos cristãos como um dos setes pecados capitais, era tida também como a fonte de todos os males. Tal idéia é endossada pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger, que, na busca das fontes da bruxaria, propõem-se “a examinar os desejos carnais do próprio corpo, de onde provém o mal desarrazoado da vida humana” (KRAMER & SPRENGER, 1991, p. 119).
Além de se recusar a opor o espiritual ao corporal,25 o pensamento hindu trata a sexualidade humana como algo que deve ser usufruído com arte e refinamento.26 Fazer sexo ou se alimentar levado apenas pelos impulsos naturais seria agir de modo equiparável ao dos animais.27 É por essa razão que “a ênfase no amor físico (corporal) é de fato a forma indiana de humanização da sexualidade” (BIARDEAU, 1989, p.52), e não de sua animalização. Dessa perspectiva, “o homem adquire mérito não pela negação da existência do corpo e de seus apetites, mas por refiná-los e trazê-los sob o controle de sua vontade” (MADAN, 1981, p.142).28 Refiná-los, a fim de não exercer a sexualidade sem a mediação da tradição brâmica que a humaniza,29 e controlá-los, quando for necessário submetê-los à obtenção de algo que lhes é superior hierarquicamente.
Nessas circunstâncias, não cabe a idéia habitual, entre nós, de que a sexualidade natural, verdadeira, livre e sadia é aquela que brota do íntimo do indivíduo de uma forma espontânea, independentemente dos fatores culturais, tidos como inevitavelmente opressivos.30 Tal idéia pressupõe o menosprezo ou, pelo menos, a ignorância de um fato fundamental: o de que a sexualidade humana é, antes de tudo, uma construção cultural. Nós humanos, desprovidos de instintos, dessa “memória imemorial, resposta eficaz, esplendor da espécie, indene à dúvida”, no dizer de Hélio Pellegrino, somos em nosso centro ontológico falta, fenda, ruptura com a ordem cósmica “desgarramento, derrelição e extravio”. Estamos predestinados, portanto, a viver segundo normas e padrões pré-estabelecidos, tanto quanto estamos condenados à liberdade, no dizer de Sartre.31 Daí, utilizando uma imagem metafórica, a sujeição de cada um de nós à língua (langue), que impõe limites, regras, prescrições e interdições à fala (parole), longe de ser um empecilho à liberdade e à espontaneidade criadora, torna mais livre, “mais elegante e dançarina a minha parole de sujeito livre” (PELLEGRINO, 1989, p.16-18).
Compreende-se, dessa maneira, a enorme importância outorgada pelos indianos ao Kamasutra, que tem por objetivo primordial o refinamento e a intensificação do prazer sexual,32 e a reverência por eles sentida em relação ao seu autor, Vatsyayana.33
Todos os conselhos oferecidos por Vatsyayana, a fim de refinar e intensificar o kama,34 são considerados como plenamente morais, uma vez que visam instruir homens e mulheres sobre os prazeres legítimos dos sentidos.35 Alguns referem-se à anatomia física dos parceiros, que, dependendo de suas conformações corporais, podem ser mais ou menos aptos a gratificarem-se mutuamente; outros, às possíveis formas de união sexual, meticulosamente enumeradas, assim como às várias práticas de sedução; os demais, ao desenvolvimento das habilidades artísticas ligadas ao canto, à dança, à música, à poesia, ao conhecimento da jardinagem e da etiqueta social e à prática dos esportes. Tudo isso porque é preciso ter o espírito e o corpo cultivados com interesses intelectuais e artísticos para se levar uma vida de prazeres, adequada e disciplinada. As músicas e as danças, juntamente com os ornamentos, as flores e os perfumes, são postos, assim, a serviço do amor. Há também considerações relativas à aquisição de uma esposa, ao modo de tratá-la a fim de conquistar-lhe a confiança e de torná-la apta a se iniciar nas sessenta e quatro artes do amor. Leva-se em conta, igualmente, a conduta adequada às mulheres casadas, no que se refere à administração da casa, ao cuidado com sua aparência e à maneira correta de se comportar perante o marido e seus parentes afins.
É devido à apreensão da sexualidade como um prazer a ser usufruído com arte e de uma forma quase que sacramental36 que o Kamasutra, que poderia ser considerado obsceno em outros contextos culturais37 por descrever minuciosamente as diferentes práticas sexuais e os meios a serem empregados para se obter o máximo de gozo possível, sempre foi respeitado e tido como um clássico da literatura hindu. É esse também o motivo de a afirmativa de Vatsyayana de que Kamasutra foi escrito “em benefício do mundo segundo os preceitos da Sagrada Escritura”, quando ele era estudante de religião e estava “inteiramente entregue à contemplação da Divindade” (VATSYAYANA, 1993, p.206), nunca ter sido contestada pelos indianos, que sempre citam seu autor com reverência, como o Grande Vidente (Vatsyayana Maharshi).
A sacralidade da sexualidade se revela também na utilização metafórica do ato sexual para simbolizar a união mística da alma com a divindade. É levando esse fato em consideração que se pode entender a razão por que os templos hindus têm esculpidas em suas paredes representações de práticas sexuais dos mais diversos tipos, assim como a transmissão, por meio dessas gravuras, da idéia de paz e de serenidade, e não de algo chocante e pornográfico, como se poderia pensar, a partir de uma visão de mundo própria à cristandade.
A indistinção entre a experiência religiosa e a erótico-amorosa revela-se na utilização de um único terno sânscrito, rasa, para expressar simultaneamente “gosto, gozo, em decorrência emoção prazerosa, estética, erótica ou mística, ou todas as três ao mesmo tempo” (BIARDEAU, 1989, p.185).
Por tudo isso, entende-se o porquê do amor de Krishna, em uma de suas encarnações como um jovem pastor tocador de flauta38, por Rãdha, narrado no Gita Govinda, ter uma conotação profundamente sensual e não exclusivamente espiritual, como freqüentemente se espera de narrativas de fundo religioso. A alegria inefável e o êxtase da união final entre a alma humana, simbolizada por Radha, e a alma universal, Krishna, são expressas em termos de um amor carnal, de um amor no qual as manifestações corporais do desejo são explicitamente descritas:
“Oh! faça ele ter prazer comigo, minha amiga, aquele altivo destruidor de Keshi, aquele Krishna tão inconstante,
Cujo ato de desejo fez os braceletes que ornavam meus pés
Tilintar, que dava seus beijos agarrando meus cabelos
E para quem em seu amor apaixonado minha cintura vibrava com eloqüente doçura.
Oh! faça ele ter prazer comigo, minha amiga, aquele altivo destruidor de Keshi, aquele Krishna tão inconstante,
Cujos olhos de lótus se fecharam um pouco, e que sonolento ficou,
Tendo experimentado no prazer do corpo comigo o estremecimento final,
Comigo, cujo corpo semelhante a uma parreira desmoronou, incapaz de suportar mais” (JAYADEVA, 1947, p.30).
A ênfase na expressão sexual da paixão amorosa não exclui os aspectos mais refinados do relacionamento amoroso. Em sua fruição nada é trivial, as mais efêmeras emoções, assim como gestos afetivos aparentemente irrelevantes, são tidos como componentes essenciais dessa paixão. Outro fator presente é a consideração dos “arredores - árvores, flores, pássaros - da hora, da estação adequada, dos ornamentos corporais e do uso de ungüentos e perfumes” (KEYT, 1947, p.9).
Como pura expressão de uma paixão amorosa na qual o corpo, a alma, os desejos físicos e as afinidades espirituais não se dissociam, em que os ciúmes, as separações e as desolações servem apenas à intensificação do prazer produzido pela união mais gloriosamente vivenciada, devido à ansiedade com que é desejada, o Gita Govinda produz no leitor um sentido de paz, e não de tormenta e angústia. Visando criar um estado de apaixonado deleite e encanto a fim de satisfazer vicariamente o anseio apaixonado da alma individual dos devotos que almejam se fundir com Krishna, ele não é trágico, mas terno e alegre.
Tendo posto em evidência duas formas radicalmente diversas de pensar a sexualidade, uma delas desenvolvida na Índia, onde o dever, em vez de se opor ao prazer, o engloba, e a outra, no Ocidente cristão, fazendo de cada um delas uma “espécie de espelho mágico para o outra” (KAKAR, 1990, p.8), espero ter conseguido relativizar as concepções sobre a sexualidade vigentes nos tempos atuais, que, havendo se constituído através da negação das repressões impostas pelo cristianismo, afirmam-se como inscritas na natureza humana e, como tais, universalmente aplicáveis.
Espero também ter conseguido deixar claro que as duas maneiras de se considerar a relação entre o prazer e o dever, elaboradas no mundo ocidental no decorrer dos dois últimos milênios – a que encara o sexo como um dever a ser cumprido sem prazer, que remonta ao início da cristandade, e a mais recente, que concebe o prazer como algo que se dá preferencialmente quando liberto de deveres preestabelecidos –, apesar de suas diferenças inegáveis, mantêm-se igualmente presas a um mesmo quadro de referência: o que situa o prazer e o dever em dois pólos opostos que ora pendem para um extremo, ora para o outro.
Através de tal apreensão das concepções sobre a sexualidade, atualmente em voga, realizada a partir do olhar do outro e, portanto, de forma bem diversa da usualmente aceita pelas pessoas que vivem sob sua influência, já que as situa no mesmo círculo vicioso daquilo que se pretende ultrapassar, acredito ter me mantido fiel ao espírito antropológico, enunciado na epígrafe deste trabalho, que visa expor as crenças e idéias, geralmente tidas como indubitáveis por aqueles que as vivem, aos que podem contradizê-las em seu mais alto grau.
Notas
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