Resumo

O objetivo do presente estudo foi investigar a articulação entre Justiça e abrigo para o cadastramento de crianças maiores e adolescentes para adoção. Participaram do estudo profissionais de uma Vara da Infância e da Juventude e de um abrigo, além de duas crianças e três adolescentes institucionalizados que aguardavam colocação em família substituta. Os principais resultados evidenciaram: a situação de abandono das famílias de origem e profissionais que atuam na área; a fragmentação das ações e abandono da rede de atendimento; a presença do abandono na história pessoal das mães-sociais e o sofrimento psíquico no desempenho da função; e, finalmente, a reedição do abandono para crianças e adolescentes em virtude da alta rotatividade de cuidadoras. Assim, foi possível constatar a existência de um ciclo recursivo do abandono e a necessidade de se ultrapassar uma visão reducionista do fenômeno, compreendendo-o como complexo e multideterminado.

 

1 - Introdução

A realização do presente estudo partiu da concepção de que, do sistema gerado em torno da adoção de crianças maiores e adolescentes institucionalizados, participam pessoas e instituições sociais, dentre as quais optamos por enfocar a instituição Judiciária e o abrigo. Acreditamos que as dificuldades encontradas para a realização dessas adoções constituem um problema construído em relações comunicacionais de retroalimentação e circularidade, o qual envolve vários elementos que estão interligados e relacionam-se entre si. Partimos da hipótese inicial de que as dificuldades para a efetivação dessa modalidade de colocação familiar não estariam reduzidas apenas à ausência de candidatos para a realização das mesmas, mas também à qualidade da articulação entre Justiça e abrigos para identificação e cadastramento de crianças e adolescentes passíveis de adoção.

 

2 - Aspectos Históricos do Abandono, Institucionalização e Adoção

De acordo com Vargas (1998, p. 17), “falar de adoção requer antes que se fale de abandono”, pois como afirma Weber (1999, p. 15) “antes da história da adoção existe uma história do abandono”. Prática presente nas sociedades desde a Antiguidade, quando legitimada pelo poder paterno, a exposição fora fato recorrente entre gregos e romanos, resultando em um alto índice de mortalidade. Em um momento histórico em que não se considerava, ainda, a perspectiva da criança, os poucos expostos acolhidos em família substituta eram geralmente transformados em escravos, vendidos ou utilizados como objeto para a mendicância (Marcílio, 1998).

Foi na Idade Média, sob a influência da Igreja, que as crianças abandonadas começaram a ser assistidas em alguns hospitais da Europa. Nesse período, foi instalada na Itália, no século XIII, a primeira Roda dos Expostos, sistema que se difundiu amplamente a partir dos séculos XIV e XV e generalizou-se na Europa após o século XVII. A Roda correspondia a um sistema com dispositivo giratório de madeira, semelhante a um cilindro, o qual dispunha de uma janela que permitia que a criança fosse deixada na instituição, sem que o depositante fosse identificado (Marcílio, 1998; Motta, 2001; Venâncio, 1999). Em virtude das sanções da Santa Inquisição sobre o casamento, a preservação da honra tornou-se motivo freqüente para a exposição de crianças na Roda. Na Alta Idade Média, a condenação do aborto e do infanticídio contribuiu para o aumento e a justificativa do abandono, realizado, sobretudo, por mulheres ilustres (Marcílio, 1998).

Em relação ao Brasil, as origens da exposição remontam ainda ao período colonial. A exemplo da Europa, até meados do século XIX, o atendimento aos expostos esteve caracterizado por ações altamente assistencialistas. Na fase denominada “caritativa” (Marcílio, 1998, 134, itálico da autora), sob a influência dos ideais da Igreja, muitos expostos foram acolhidos como “filhos de criação” (136, itálicos da autora), sistema informal mantido ao longo de toda a história brasileira. Até o século XIX, o atendimento por meio do sistema de Roda foi praticamente a única medida formal tomada em favor dos expostos no país (Fonseca, 1995; Marcílio, 1998; Silva, 1997; Venâncio, 1999).

Ao longo do século XIX, entretanto, o desenvolvimento científico contribuiu para que a ideologia caritativa fosse gradativamente substituída pela preocupação com a ordem social, inaugurando-se, assim, a fase “filantrópica”, que perdurou até o século XX (Marcílio, 1998, 191, itálicos da autora). Nessa fase, o Estado passou a ter um papel mais ativo no atendimento a crianças e adolescentes desassistidos, o qual deveria, então, estar submetido às suas determinações e ser norteado pelas idéias científicas, com o objetivo último de proteger a sociedade da ameaça que representavam. Com relação à responsabilização pelo abandono, a família continuou sendo vista como a única responsável, a despeito da participação do Estado e da sociedade nesse processo (Couto & Melo, 1998; Marcílio, 1998; Rizzini, 1993; Sá Earp, 1998; Venâncio, 1999).

Com o intuito de educar adequadamente crianças e adolescentes provenientes de famílias tidas como despreparadas, incapazes ou inexistentes, foi instalado no país, em 1941, o SAM (Serviço de Assistência ao Menor), cuja falência foi decretada em 1964, na fase do Bem-Estar do Menor, quando se criou, então, um novo modelo de atendimento, a FUNABEM (Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor), que, entretanto, seguiu os mesmos caminhos repressores de seu antecessor (Couto & Melo, 1998; Marcílio, 1998; Sá Earp, 1998). Foi nessa fase — que o “Estado brasileiro se tornou o grande interventor e o principal responsável pela assistência e pela proteção à infância” (Marcílio, 1998, 225) e as crianças e adolescentes em situação de abandono se tornaram os “filhos do Governo” — que “se afirmou o princípio da destituição do pátrio poder” (Silva, 1997, 46-47).

Em 1979, foi finalmente promulgada a primeira legislação brasileira direcionada especificamente a crianças e adolescentes, o Código de Menores, que definiu o “menor em situação irregular” (Couto & Melo, 1998, 34). Apenas em 1990, porém, com a implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), passou a vigorar no país um novo paradigma político, ideológico e jurídico com relação à assistência à infância e à adolescência (Campos, 2001; Silva, 1997). Com a promulgação do ECA — que teve como base os princípios adotados pela Doutrina de Proteção Integral, defendida pela Organização das Nações Unidas, e pela Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959 — crianças e adolescentes passaram a ser concebidos como sujeitos em desenvolvimento, com direito à proteção integral (Campos, 2001; Vargas, 1998, 2000).

A partir de então, a colocação em abrigo e o encaminhamento para família substituta passaram a representar medidas protetivas, norteadas prioritariamente pelos interesses da criança e do adolescente, sendo a falta ou carência de recursos materiais motivo insuficiente para o abrigamento ou a perda do poder familiar (Chaves, 1997). Assim, como destaca Silva (1997, 47), foi com a promulgação da legislação atual que a assistência à criança e ao adolescente deixou de ser vista, no país, como uma questão de caridade, “higienização médica, assistencialismo” ou “segurança nacional”, para ser enfocada como uma “questão social”. Nessa fase, que o autor chama de “desinstitucionalização”, tem-se priorizado “a integração da criança dentro da família” e a “criação de ‘unidades de passagem’, quase residências familiares, sem as características de uma instituição total”.

Desse modo, tem se buscado promover a desativação dos grandes complexos de internação, adaptando as instituições ao modelo de casas-lares, reconhecido no país através da Lei n° 7.644, de 1987, da Constituição Federal, que dispõe sobre o funcionamento das casas ou vilas e regulamenta a profissão de mãe-social. Neste modelo, a partir da organização de um ambiente mais próximo ao da esfera familiar, tem se procurado oferecer um atendimento mais individualizado, preservando, assim, a identidade e a individualidade de crianças e adolescentes (Chaves, 1997; Ferreira & Carvalho, 2000; Silva, 1997; Weber, 1999).

Nesse sentido, acredita-se que as casas-lares apresentem maiores condições de atender às responsabilidades das instituições de abrigo dispostas no Art. 92 do Estatuto, dentre as quais destacamos: 1) o não desmembramento dos grupos de irmãos; 2) o atendimento personalizado e em pequenos grupos; 3) o desligamento gradativo; 4) e o intercâmbio com o ambiente social (Ferreira & Carvalho, s/d). Diante dos objetivos do presente trabalho, gostaríamos, ainda, de chamar a atenção para a responsabilidade do abrigo no sentido de trabalhar para a colocação em família substituta quando esgotados os recursos de manutenção na família de origem (ECA, Art. 92) e manter a autoridade judiciária informada sobre os casos em que o reatamento dos vínculos familiares é inviável ou impossível (ECA, Art. 94, inciso VI).

Procurando, assim, atender às necessidades biopsicossociais de crianças e adolescentes institucionalizados, a legislação vigente determina que, além de constituir moradia digna, o abrigo deve trabalhar para a garantia do direito à convivência familiar e comunitária (ECA, Art. 4°). Interagindo com a Justiça e demais elementos do sistema de garantia de direitos, o abrigo deve, portanto, assumir um papel ativo na colocação em família substituta. Weber e Kossobudzki (1996), todavia, em pesquisa realizada no Estado do Paraná, constataram que, em virtude da desarticulação e da falta de comunicação entre Justiça e abrigos, crianças e adolescentes podem permanecer anos institucionalizados sem definição quanto à situação jurídica, o que inviabiliza o encaminhamento para a adoção nos casos em que a medida seria necessária.

Embora Weber e Kossobudzki (1996) apresentem o problema, não discutem, no entanto, as complexas relações e interações que contribuem para a configuração do quadro observado. Nesse sentido, de que maneira a qualidade da integração entre abrigos e Justiça poderia estar relacionada às dificuldades encontradas para a colocação de crianças maiores e adolescentes em lares substitutos? Que elementos estariam imbricados nesse processo? De que forma o imaginário dos profissionais envolvidos, assim como das crianças e dos adolescentes, poderia trazer elementos importantes para a discussão de formas mais articuladas de atuação que possam priorizar o direito da criança e do adolescente e a diminuição da permanência no abrigo? Seria esta uma necessidade levantada pelos agentes participantes desse contexto?

Diante disso, este trabalho tem como objetivo estudar a participação do contexto institucional e das pessoas envolvidas no processo de cadastramento de crianças maiores e adolescentes institucionalizados para a adoção, investigando possíveis entraves, crenças e significados construídos que possam estar associados às dificuldades encontradas para a colocação em família substituta.

 

3 – Metodologia

Em consonância com os objetivos e as características do objeto de estudo da presente investigação, privilegiamos a metodologia qualitativa que, segundo Demo (2000), coloca em evidência a essência dos eventos. De acordo com este autor, sendo os fenômenos qualitativos marcados pela intensidade, a investigação qualitativa prioriza a análise vertical, estudando os fenômenos em profundidade. Desse modo, pode passar pelo que é mais recorrente, mas deve ultrapassar a linearidade dos dados e alcançar uma interpretação mais profunda e cautelosa do simbólico, incluindo até mesmo o silêncio e o não-dito. Neste processo, constituem peças chaves: a relação observador-sujeito, a subjetividade do observador, a teoria e o método, a linguagem e o discurso.

 

3.1 - Contexto

O estudo foi realizado em dois diferentes contextos, a saber: um Setor de Adoção de uma Vara da Infância e da Juventude de uma região metropolitana brasileira, cuja equipe técnica tem como objetivo assessorar o Juiz de Direito nos processos de adoção, através da realização do estudo psicossocial, conforme as disposições do ECA (Art. 50, 150 e 151). Atendendo as determinações do Estatuto, a equipe desenvolve, ainda, trabalhos de orientação, prevenção, encaminhamento e cadastramento de adotantes e adotandos; e uma Instituição Abrigo organizada em 10 casas-lares, modelo preconizado pelo ECA. Associada a uma entidade religiosa, é mantida por recursos provenientes da comunidade e convênios firmados com o governo estadual, sendo administrada por um presidente e um corpo de diretores que coordenam e/ou supervisionam as diversas atividades desenvolvidas para sua manutenção.

 

3.2 - Participantes

 

3.3 – Instrumentos

Foram utilizados dois instrumentos: a entrevista semi-estruturada e a técnica da colagem. De acordo com Minayo (1994, 108), o que torna a entrevista um instrumento privilegiado para a coleta de informações na pesquisa social é a possibilidade de acessar condições estruturantes da realidade, sistemas de valores, normas e símbolos por meio do discurso do sujeito. A entrevista semi-estruturada permite que o participante discorra sobre o tema proposto pelo pesquisador, sem “respostas ou condições pré-fixadas”. A colagem, por sua vez, constitui técnica projetiva realizada a partir de uma situação pouco estruturada que possibilita a atividade criadora. Para sua realização, o sujeito seleciona e interpreta o material segundo seu modo de pensar, sentir e agir, expressando, assim, conteúdos internos (Laplanche & Pontallis, 1998).

Como método de análise privilegiamos a Hermenêutica de Profundidade proposta por Thompson (2000), que considera o contexto sócio-histórico, no qual, por meio da linguagem, os indivíduos constroem significados acerca dos fenômenos sociais. Para a análise das colagens, utilizamos, ainda, as propostas de Loizos (2002) e Penn (2002) para a interpretação de imagens paradas como documentos de pesquisa.

 

4 – Resultados

Como foi demonstrado por Marcílio (1998), a história do abandono e da institucionalização está relacionada, dentre outros aspectos, às práticas sociais, às crenças e aos significados socialmente partilhados, ao contexto econômico e às práticas familiares vigentes em um determinado período histórico. No contexto estudado, a partir da análise do discurso dos profissionais do abrigo e da Justiça, foi possível observar que os indivíduos, ao buscarem relações de causalidade para a temática do abandono e da institucionalização, ora tendem à culpabilização de um ou outro segmento, ora realizam um esforço na tentativa de compreensão do todo e das limitações de cada segmento envolvido no processo. Além disso, constatamos, ainda, a complexidade da questão do abandono: por meio de movimentos recursivos um abandono dá origem há vários outros em uma sucessão de ações e eventos interligados, cujo início e fim são de difícil identificação.

 

4.1 - A Família de Origem

A partir da análise das narrativas, verificamos que o discurso dos participantes a respeito da família de origem de crianças e adolescentes institucionalizados é permeado por expressões que têm sido tradicionalmente utilizadas para descrever a “criança carente”. Desse modo, ao justificarem a institucionalização e o abandono, os sujeitos constroem a imagem de uma “família abandonada” que, de modo semelhante à criança e ao adolescente, vive um processo de abandono multifacetado, no qual observamos a exclusão social e o rompimento dos vínculos afetivos. Nesse sentido, relacionando a questão do abandono à estrutura e às relações sociais, os sujeitos associam, em muitos momentos, a situação de vida da criança e do adolescente abrigados à realidade da falta de opção das famílias pobres e, ainda, à repetição da situação de abandono afetivo vivido também pela família de origem. Em um movimento antagônico, entretanto, a despeito da participação do contexto social, econômico, político e jurídico, culpabilizam unicamente a família pelo processo de abandono e institucionalização.

 

4.2 - Da Exclusão Social à Inclusão Perversa no Judiciário

De acordo com Guirado (1986, 13), o abandono, freqüentemente associado à falta afetiva, constitui-se também como um fenômeno socialmente construído, um “produto do Sistema”. Nesse sentido, tanto os profissionais da Justiça quanto do abrigo, em um esforço constante de compreender o fenômeno do abandono e da institucionalização, associam os mesmos às condições espaço-temporais e históricas do contexto abordado (Thompson, 2000). Desse modo, retomam o crescimento urbano e o processo migratório que têm marcado a história da respectiva região que, caracterizada como pólo atrativo, recebe um contingente populacional proveniente, sobretudo, dos estados do Nordeste do país, atraídos pelo desejo de encontrar trabalho e melhores condições de vida (Burstyn & Araújo, 1997).

Na história de vida de Rafael, Fabrício e Leandro, notamos a presença da associação do abandono e da institucionalização com o processo migratório e a exclusão social de suas famílias de origem. Provenientes de outras regiões do país, suas histórias são marcadas pela pobreza material e pela ruptura dos vínculos afetivos. Nesse sentido, no contexto estudado, emerge da narrativa dos sujeitos a imagem de uma espécie de “guerra social” aliada ao abrigamento que, embora não se manifeste em combates explícitos, tem-se passado silenciosa e permanentemente em nosso país. Assim, ao invés de combates, os deslocamentos se dão em função da fome, da seca, da miséria e do desemprego. Paugam (1999), em estudo sobre populações socialmente excluídas, concluiu que mudanças geográficas tendem a ser mais freqüentes nos casos em que se observa afastamento ou perda de vínculos familiares.

Examinando o discurso de mães-sociais, juiz, técnicos da VIJ e equipe do abrigo, notamos que, ao interpretarem a realidade de vida das famílias de origem, os participantes recorrem à contextualização social das mesmas. Desse modo, como ressalta Santos (2002), constatamos que apresentam um saber específico, construído sobretudo a partir da própria prática, de que a família é um sistema aberto que mantém uma relação de interdependência com o contexto. Assim, ao enunciarem os motivos que levam ao abrigamento de crianças e adolescentes, os participantes utilizam determinadas expressões que vão construindo, em torno da família de origem, uma “imagem da falta”, denunciando o abandono social e político que as mesmas vivenciam: “A mãe não tem estrutura nenhuma (...) morava embaixo de uma árvore, né? Imagina a situação.” (Cristina).

Desse modo, a partir das narrativas dos participantes, notamos que as famílias de origem são “despojadas de direitos mínimos de vida digna, de cidadania” (Kowarick, 1975,1979, conforme citado por Véras 1999, 30), culminando, em última instância, na privação do direito ao exercício da paternidade e da maternidade (Fonseca, 1995). “A mãe fala ‘Ah, mas eu não queria entregar, mas eu não tenho a menor condição. Eu tô na rua, debaixo de uma lona, o meu companheiro me abandonou, minha família está lá no interior. Eu não tenho ninguém por mim. Eu tenho que entregar esta criança’.” (Luíza). Cabral (2002a; 2002b) e Guimarães e Saraiva (2002), em estudos realizados com crianças em situação de rua, constataram características semelhantes no que diz respeito à realidade vivida pelas famílias de origem.

De acordo com Mello (2002), o ciclo de vida das famílias pobres pode ser prejudicado pelo enfrentamento de condições economicamente desfavoráveis. Nesse processo, muitas vezes o sistema familiar não consegue suportar as tensões externas, havendo assim uma ruptura das relações afetivas e o afastamento dos vínculos sociais, como observado também em estudos realizados por Sarti (1996) e Paugam (1999). Notamos, portanto, que a situação apresentada extrapola os limites locais para relacionar-se com uma estrutura social mais ampla, denunciando uma realidade brasileira marcada pela desigualdade social, na qual os abrigos muitas vezes emergem como estratégia de sobrevivência às famílias economicamente desfavorecidas (Guirado, 1980, 1986). Tal processo, que transforma a instituição em um “mal necessário na vida deles” (Beloto), foi apontado, também por Venâncio (1999, p. 13), que afirma que “desde os séculos XVIII e XIX, a única forma de as famílias pobres conseguirem apoio público para a criação de seus filhos era abandonando-os”.

Bastos (2002), em levantamento realizado junto aos 21 abrigos existentes no Distrito Federal (DF/Brasil), constatou que a condição sócio-econômica constitui o principal motivo do abrigamento de crianças e adolescentes. Essa realidade foi também evidenciada no discurso dos participantes, como verificamos na fala do Juiz: “Nós trabalhamos com uma grande massa ainda de excluídos sociais”. Tal afirmação, assim como a descrição que realiza, ainda, a respeito das famílias de adolescentes em conflito com a lei, permite-nos identificar uma relação de complementariedade — mas não de causalidade — entre a exclusão social e a inserção no Judiciário. Assim, por meio de uma “inclusão perversa” (Sawaia, 1999a), o Judiciário passa a fazer parte dos campos de interação do sistema familiar. Melhor dizendo, a família e a Justiça passam a ser partes do mesmo sistema significante, ainda que a função da última não seja a de garantir à primeira seus direitos sociais.

As próprias narrativas dos participantes, assim, constroem ao redor do abrigo a imagem do “internato do pobre” (Fonseca, 1995, 101), no qual crianças e adolescentes podem ter garantidos seus direitos básicos previstos na legislação vigente: saúde, educação, habitação e alimentação. Nesse sentido, Sawaia (1999b, 108) afirma que há uma relação dialética entre exclusão e inclusão, as quais “formam um par indissociável, que se constitui na relação”. Finalmente, as afirmações de Sawaia (1999a, 7) permitem-nos refletir sobre a relação famílias excluídas/Justiça e, enfim, sobre a “complexidade e a contraditoriedade que constituem o processo de exclusão social, inclusive a sua transmutação em inclusão social”.

 

4.3 - O Sistema Familiar: Ausências, Rupturas e Abandonos

Ao analisarmos a estrutura do discurso de mães-sociais, equipe do abrigo e profissionais da Justiça em relação à família de origem de crianças e adolescentes institucionalizados, notamos a influência de certos ideais e valores culturais que têm moldado a visão social da família e, particularmente, o papel da mãe no sistema familiar. Observando a construção do discurso, verificamos uma maior referência à figura da mãe — aspecto evidenciado também em estudos realizados por Guirado (1986, 1990) — predominantemente evocada nos relatos referentes a situações reais vividas no cotidiano. “Eu tenho uma mãe ex-presidiária, falando nisso, citando um dos casos” (Ana). No que diz respeito ao discurso das crianças, constatamos também uma maior referência à mãe. Em uma das colagens realizadas, por exemplo, cuja temática versava sobre a família de origem, a figura da mãe junto aos filhos foi apontada pelos participantes em seis fotos enquanto a presença do pai foi observada em apenas duas delas. “Minha informação é que minha mãe morreu.” (Fabrício). “Agora a minha mãe não tá mais aqui e eu tô sentindo muito a falta dela...” (Miriam).

Quanto à figura paterna, ainda constatamos que, nas narrativas da equipe técnica do abrigo e dos profissionais da Justiça (técnicos e Juiz), geralmente a menção à mesma está associada, na verdade, à enunciação de sua ausência evidenciada nas expressões utilizadas quando se fala do pai: “pai desconhecido”, “pai falecido”, “cada filho de um pai” e “o pai está preso”. Desse modo, verificamos a existência de mais uma falta vivida por essas mães e esses filhos abrigados: a falta do pai/companheiro, característica evidenciada também em outros estudos realizados com crianças e adolescentes em situação de risco psicossocial (Cabral 2002a; 2002b; Guimarães & Saraiva, 2002; Marques, 2000, Sudbrack, 1992). A “ausência” do pai, embora seja uma característica recorrente no discurso dos participantes, em poucos momentos é problematizada como elemento relacionado ao processo de institucionalização e abandono, o que sugere, portanto, uma espécie de “naturalização da falta do pai”.

Acreditamos que tal aspecto pode ser indicativo de algumas situações comumente mencionadas pela literatura, como: a composição predominante, nas camadas de baixa renda, de famílias monoparentais, chefiadas pela mulher (Sarti, 1996); a influência do “mito do amor materno”, historicamente construído; e, finalmente, o papel socialmente atribuído à mãe (Badinter, 1985). Sarti (1996, 45), ao realizar exame da literatura sobre famílias pobres, menciona a relação observada entre a pobreza material, a possibilidade de ocorrência de rupturas durante o ciclo de desenvolvimento familiar e a chefia feminina. Nesse sentido, a autora afirma que a família pobre encontra-se em situação de vulnerabilidade em relação a rupturas conjugais, diante das dificuldades encontradas pelo homem para desempenhar o papel do “pai-provedor”.

Além da falta do pai, o discurso da equipe do abrigo e dos técnicos da Justiça denuncia, ainda, a falta de redes sociais de apoio que possam ser acessadas para impedir ou reverter a situação de institucionalização. “Também não tem rede social que apóie esta pessoa.” (Luíza). Nas narrativas dos profissionais, observarmos também o caráter transgeracional do abandono e da institucionalização. “Crianças [institucionalizadas] que a gente atendeu há anos atrás hoje são mães de crianças que estão em instituição.” (Luíza). “Ela [mãe] foi uma pessoa que não foi integrada na família. (...) É muito semelhante ao processo que a criança está vivendo hoje (...) ela está (...) repetindo (...) alguns fatores como rejeição, abandono, negligência.” (Cristina).

Desse modo, notamos que os participantes atribuem também ao modelo familiar as dificuldades encontradas pela mãe no desempenho da maternidade. Assim, Cristina afirma que “esta infra-estrutura advém também de um contexto em que família foi inserida”, destacando, portanto, a participação de aspectos psicológicos na composição da “infra-estrutura” para exercer o papel de mãe. A tendência à repetição do conflito pôde ser observada, ainda, nas referências da equipe do abrigo à “mãe parideira” e na imagem que trouxeram da “família de escadinha”, cujos filhos vão dando entrada na instituição em ordem decrescente: dos maiores aos menores. Tais imagens remetem-nos a um ciclo repetitivo de abandonos transmitidos de geração a geração na família (Boszomernyi-Nagy & Sparki, 2001).

Motta (2001) tem enfatizado sobremaneira a necessidade de um trabalho para a elaboração do luto por parte das mães que entregam o filho em adoção, evitando-se, assim, a repetição do ciclo gravidez-abandono como tentativa frustrada de reparação. Do mesmo modo, acreditamos na importância de uma intervenção preventiva junto às famílias de crianças e adolescentes abrigados, a fim de impedir a instalação ou a perpetuação de ciclos repetitivos de institucionalização/abandono.

Além dos aspectos anteriormente mencionados, os participantes associam a institucionalização e o abandono, ainda, à “desestruturação familiar”. Nesse sentido, apontam fatores como alcoolismo, uso ou tráfico de drogas por parte dos pais, prostituição, inclusão no sistema prisional, abuso, negligência, maus-tratos e, finalmente, conflitos familiares. “Filhos que não são os bem-aceitos na família, são filhos que saíram de casa precocemente, que não têm uma relação e que vão abandonando os filhos.” (Luíza). Quando se referem particularmente às situações de violência física, envolvimento com álcool e drogas (dependência ou tráfico), os participantes geralmente classificam estas situações como impeditivos do acesso da família ao filho.

Constatamos que, quando tratam da “desestruturação familiar”, os participantes, sobretudo as mães-sociais, realizam um movimento de deslocamento da compreensão para a responsabilização e, em última instância, para a culpabilização da família de origem e principalmente da mãe. Nesse movimento, constroem um verdadeiro “quadro da incompetência” e da “imoralidade” dessas famílias, caracterizadas como preguiçosas, atrasadas, acomodadas e desinteressadas. “Não querem nem saber [dos filhos]” (Leonora). “O problema dela [mãe] não é financeiro não. É moral.” (Leonora). “Porque tem muita mãe que se acomoda (...). O menino está lá e ela está saracutiando, saracutiando.” (Leonora). As mães-sociais chegam a colocar a família no lugar daqueles que podem, inclusive, “estragar” a criança ou o adolescente educado pelo abrigo, pensamento que remonta, ainda, ao final da primeira metade do século XX (Couto & Melo, 1998; Fonseca, 1995; Rizzini, 1993).

De acordo com Jodelet (1999, 56), essa tendência à culpabilização com foco no indivíduo serve, ainda, a fins bastante individuais e que “pode ser difícil adotar uma posição contrária por temor de nos encontrarmos em uma situação incômoda”. Nesse sentido, tais referências evidenciam tanto as relações de poder presentes no tecido social quanto a relação de interdependência entre os vários elementos constitutivos deste sistema.

 

4.4 - Estado, Instituições e Sociedade: o Abandono da Rede de Atendimento aos Direitos da Criança e do Adolescente

A partir da análise das narrativas dos profissionais, pudemos observar que a questão do abandono permeia também as interações entre os elementos constitutivos do sistema de atendimento aos direitos da criança e do adolescente. Assim, as relações interpessoais, interprofissionais e, até mesmo, interinstitucionais são descritas como desagregadas e fragmentadas. Com as constantes referências à falta de apoio e infra-estrutura, os profissionais vão tecendo a imagem de uma “rede desestruturada” e “abandonada”, quadro que Martins (2001, 11) descreve como o “abandono do abandono” e que atinge desde o nível institucional até o pessoal.

No que diz respeito particularmente ao papel do Estado, são constantes as referências dos profissionais à insuficiência das políticas públicas de atendimento à família, à criança e ao adolescente, situação que limita as possibilidades de atuação junto à garantia do direito à convivência familiar. “Olha, o que eu vejo muito claramente é uma falta de política voltada pra a criança e o adolescente. Porque o Estatuto até fala que é uma obrigação do Estado, né? Garantir esta política.” (Luíza). Segundo Costa (2000, 21), a desmobilização política, que tem delegado a família “a um plano secundário na evolução das lutas sociais”, encontra suas raízes na própria evolução histórica do país. Nesse sentido, Becker (2000, 63) acrescenta que, em nosso contexto, não existem apenas crianças e adolescentes abandonados, mas famílias e populações “abandonadas pelas políticas públicas”.

Analisando o discurso dos profissionais da VIJ e do abrigo, notamos a referência à “falta de subsídios” para investimento em medidas alternativas à institucionalização ou, ainda, para transformação da realidade das famílias atendidas: “A gente tem que investir dinheiro, aí cadê o dinheiro?” (Beloto). Dessa maneira, a questão da “falta” observada nas narrativas a respeito da família é constatada também nas condições de trabalho da Justiça e abrigo. A despeito da agilidade necessária, os profissionais deparam-se com a lentidão provocada pelo excesso de trabalho, acúmulo de funções, falta de apoio da rede de atendimento e, até mesmo falta, de técnicos especializados no âmbito dos abrigos. Assim, a atuação possível é descrita como “um pingo d’água no oceano”: “Nós só temos uma assistente social (...) um dia da semana (...) pra visitar uma família ou duas (...) é um pingo d’água, né?” (Beloto).

Desse modo, as construções narrativas vão tecendo uma imagem da falta e do abandono na própria estrutura de funcionamento das instituições abordadas. Tal aspecto remete-nos, como coloca Bleger (1991, 68), à tendência das organizações de “manter a mesma estrutura do problema que ela tenta enfrentar e pelo qual foi criada”. Ao argumentarem e justificarem este estado de coisas, observamos que os profissionais tendem a culpabilizar o Estado pela situação de abandono político e financeiro no âmbito da Justiça e do abrigo. Ao longo das narrativas, constatamos que os participantes constroem um verdadeiro ciclo de culpabilizações, sendo qualquer um dos segmentos envolvidos passível de ocupar o lugar do responsável pelos obstáculos encontrados no desenvolvimento das ações. Nesse sentido, segundo Kaës (1991), dá-se continuidade aos ataques gerados no sistema institucional pela angústia do caos, da traição e, finalmente, do fracasso perante a tarefa inicial da instituição.

O movimento mais freqüentemente observado, nesse sentido, é o de acusação mútua entre abrigo e Justiça. Na verdade, observamos que, na tentativa de nomear um culpado pela privação do direito à convivência familiar, os participantes vão construindo uma teia de co-responsáveis, apresentando o quadro de uma situação multideterminada. Nesta rede, os participantes incluem, ainda, a participação da sociedade e a falta de implicação desta com a questão do abandono e da institucionalização de crianças e adolescentes. “Na verdade há um comodismo muito grande da sociedade, né? Ninguém quer ter trabalho. Quer ficar em casa, ir pra piscina, né?” (Beloto).

Além dos aspectos mencionados, foi possível constatar o desconhecimento dos segmentos envolvidos tanto no que diz respeito às suas atribuições, competências e possibilidades, quanto à função e ao papel dos outros componentes da rede. Desse modo, emerge do discurso dos participantes uma notável falta de comunicação e integração entre os elementos constitutivos do sistema de atendimento, culminando com a desarticulação das ações, a fragmentação do conhecimento e a tendência ao isolamento. Como declara Fátima, é “cada um na sua”. Notamos, assim, que o trabalho desenvolvido junto à colocação familiar tem sido realizado de forma compartimentada, sem a integração entre as partes e a visualização do todo, situação que gera uma seqüência de abandonos recursivos e recorrentes.

Situação semelhante foi constatada também em outros estudos realizados no campo da Justiça (Amorim, 2002; Santos, 2002; Vargas, 2000). Nesse sentido, Amorim (2002) e Vargas (2000) ressaltam que, diante das fragmentações observadas no âmbito do Judiciário, os profissionais tendem a trabalhar de forma isolada. Amorim destaca, inclusive, que a atuação profissional nessa área tem se caracterizado como multi, mas não inter ou transdisciplinar. Santos (2002), por sua vez, discute as dificuldades de acesso à complexidade dos fenômenos nesse contexto em função da dispersão e fragmentação das ações e do pouco intercâmbio e articulação entre os órgãos representativos da Justiça na comunidade.

É importante mencionar, entretanto, que, ao longo das narrativas, as equipes do abrigo e Justiça foram capazes de avançar da culpabilização para o reconhecimento de sua participação como co-responsáveis na produção do processo observado. Nesse sentido relataram, inclusive, a tentativa de construção de uma nova alternativa de trabalho, mais integradora. “Se a gente tivesse uma política mais voltada para o social e se (...) a gente trabalhasse de forma mais articulada” (Luíza). Em tal movimento observamos, como apontam Rossetti-Ferreira, Amorim e Silva (2000), que a rede de significações dos participantes está sendo continuamente transformada pelo próprio fazer da pesquisa e, ainda, como destaca Thompson (2000, 360), que o campo pré-interpretado “pode, ele mesmo, ser transformado no processo mesmo de apropriação”.

Finalmente, o sentimento de abandono e desamparo emerge também do discurso dos profissionais quando aludem a sua subjetividade e à relação com o objeto de trabalho. Assim, freqüentemente mencionam a falta de apoio e a sensação de isolamento e de impotência para a efetivação das ações. Diante da situação caótica vivida no dia-a-dia, manifestam o sofrimento psíquico que lhes suscita, inclusive, a inércia manifestada por expressões como “desânimo”, “tristeza” e “falta de esperança”, ou ainda, pelas colocações de Ana: “Que saída nós vamos ter? Eu não vi ainda, nenhuma saída”. Assim, observamos o efeito da ressonância, expresso no sentimento de abandono que acomete a todos os envolvidos nesse sistema, inclusive a própria pesquisadora, dada a escassez de estudos sobre o tema (Elkaim, 1998). Desse modo, cada componente torna-se porta-voz de um ciclo recursivo que confere ao todo uma finalidade comum — “o combate ao abandono” — e uma identidade grupal: de “abandonados” (Kaës, 1991).

O sofrimento psíquico intenso e o desamparo foram particularmente observados nas narrativas das mães sociais, nas quais a questão do abandono pôde ser observada de várias formas: na vivência do mesmo em suas próprias histórias de vida, na “falta de apoio” que sentem para o desenvolvimento de suas ações e, ainda, na ausência de um papel profissional definido, diante da qual recorrem ao modelo conhecido — o de mãe — para o desempenho da função. Em virtude das intensas angústias vividas no trabalho, deixar o abrigo passa a ser uma mensagem constantemente veiculada no universo simbólico da instituição, simbolizada como o “purgatório”: “Todo mundo paga os seus pecados. Entra e sai, entra e sai...” (Leonora). Assim, em uma situação inversa à ideal, o abrigo passa a ser o lugar transitório para os profissionais e não para a criança e o adolescente, expostos continuamente a situações de perdas, separações e descontinuidade dos vínculos afetivos. “Isso aí eu declaro pra qualquer pessoa, eu não vou ficar aqui pra sempre.” (Helena).

Dessa forma, notamos que, de modo recursivo, um abandono desencadeia vários outros, numa sucessão de eventos e ações interligados, que se influenciam e se constroem mutuamente. Assim, como afirma Kaës (1991, 34), cada um, a sua maneira, contribui para a “conservação e reciprocidade dos quadros”.

 

5 – Considerações Finais

Gostaríamos de ressaltar, para concluir, as três principais conseqüências do processo de fragmentação e abandono da rede de atendimento, identificadas a partir da investigação: a) a ausência de alternativas à institucionalização: “A família se desorganizou e elas se viram em situação de completo abandono, né? (...) Quer dizer, a sociedade, o governo, a Vara da Infância encaminha, né? Não tem outra saída, elas têm que viver em instituição.” (Beloto); b) as dificuldades para trabalhar com a reintegração familiar: “A gente tem muito pouco apoio na rede social, a gente que trabalha na Justiça, pra estar encaixando e melhorando a situação de vida das pessoas pra ter os filhos de volta.” (Luíza); c) e, finalmente, as dificuldades para trabalhar com a colocação de crianças maiores e adolescentes em lares substitutos: “Já teve o abandono dos pais e está tendo o abandono do Estado.” (Luíza).

O efeito mais grave do quadro observado é a continuidade do “abrigo depósito” — a exemplo da Roda dos Expostos — no qual crianças tornam-se adolescentes abandonados pela família, pelo Estado e pela sociedade. Em última instância, sofrendo as tensões do ciclo de abandono vivido nos diferentes níveis do sistema de atendimento, estão, portanto, a criança e o adolescente que, diariamente, enfrentam a ruptura dos laços afetivos construídos na instituição e a ação do tempo, que diminui substancialmente as possibilidades de retorno à família de origem ou encaminhamento para um lar substituto. Dessa maneira, como explica Enriquez (1991, 77), o modelo real pode diferir substancialmente “do arcabouço estrutural criado para lhes dar vida”, ou seja, “Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta” (Art. 19) (ECA) e, ainda, “o abrigo é medida provisória e excepcional” (Art. 101, § único).

A principal contribuição da investigação se refere à necessidade de ultrapassarmos a visão reducionista do abandono — como relacionado apenas à díade família/criança ou adolescente — para se atingir uma visão mais complexa e contextualizada do fenômeno. Desse modo, o mesmo não deve ser visto apenas sob a ótica das relações familiares, mas compreendido como um processo co-construído, do qual participam também o contexto social, institucional, jurídico, econômico, político e cultural brasileiro. É notável a situação de vulnerabilidade das famílias e de crianças e adolescentes abrigados quando a rede de atendimento não consegue responder à demanda que deu origem à intervenção da Justiça.

A ausência de uma política de atendimento profícua, de órgãos e profissionais qualificados que possam atender às prerrogativas do ECA dificulta, assim, a realização de um trabalho eficaz, seja de reintegração familiar ou de encaminhamento para lar substituto. Tais aspectos contribuem substancialmente para que se instale um processo gradativo de um abandono co-construído, que priva crianças e adolescentes institucionalizados do direito à convivência familiar. Desse modo, o próprio modelo de tratamento do abandono em nossa realidade acaba contribuindo para a instalação de um ciclo recursivo do abandono que re-vitimiza crianças e adolescentes, transformando-os nos “Filhos do Abrigo”, como outrora definiu Beloto.

 

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