Mais conhecida e identificada pelos seus sintomas, depressão, como tal, é um distúrbio, um estado psicológico de adinamia, desânimo, sensação de cansaço, quadro clínico que pode incluir também ansiedade, em maior ou menor grau; prostração ou abatimento intelectual, moral, físico; letargia, estresse, estricção, perturbação da homeóstase, falta de forças ou debilidade geral; melancolia. O designativo melancolia vem do grego mélanos (preto) e kóllos (bílis). Bílis, um líquido esverdeado, amargo e viscoso, segregado pelo fígado e que, por meio de canais próprios, é levado ao duodeno, influindo, de modo especial, no processo da digestão. Por isso, figuradamente, por extensão e analogia, bílis significa mau humor, irascibilidade, hipocondria. Se o fígado não está funcionando bem, a bílis fica preta e pode afetar o comportamento humano, caracterizando quiçá uma pessoa de maus bofes. E aí, com o perdão da expressão politicamente incorreta, a coisa pode ficar preta.

O terreno da depressão psicológica, ainda que possa parecer o contrário, é universo fértil da lógica. Aliás, a lógica menos lógica é a do equilibrado, porque flexível. Inflexível é a lógica do terrorista e do fanático; do subversivo e do alienado, porque escalar, menos inflexível na prática. Ou melhor, e mais precisamente: fundamental é o ponto de partida, o princípio gerador das ações ou inações e o entusiasmo com que daí se parte. A lógica conta a partir daí. Nesse sentido se pode falar, inclusive, em lógica das paixões. O incitamento à inveja (“argumentum ad invidiam”) tem proporcionado o urdimento de tramas tanto na literatura como na vida real. E um dos alimentos da paixão pode ser a depressão.

Depressão psicológica, também por analogia, lembra abaixamento de nível causado por pressão ou peso. Todo viver, aliás, tem seu peso, que pode provocar verdadeiras crateras, erosões laminares, em sulcos ou voçorocas abissais. E abismo atrai abismo: “Abyssus abyssum invocat”. Um abismo chama outro abismo, constata o Salmista (Sl. 41, 8; 42, 7) / (quando) ao fragor de tuas cascatas / tuas ondas e tuas vagas rolaram sobre mim. Uma desgraça nunca vem sozinha, seja pela lei de Murphy seja porque, para baixo, até o diabo empurra. Por isso entrar na fossa, ficar na fossa significa estado de angústia, depressão profunda e funda, cair no buraco.

Depressão é o oposto da sublimação, que consiste num processo inconsciente para desviar a energia da libido, caracterizada por paixões e pulsões, energia, elã vital e criador, para novos objetos, de caráter útil, agradável. Sublimação opõe-se a letargia, a imobilidade por largo tempo, freqüentemente homem e mulher, uma pessoa em frente à outra, como dois contendores se estudando em silêncio e medindo forças ou, na linguagem certeira de Euclides da Cunha (Os Sertões, p. 584), parecendo refletir a adinamia do mesmo esgotamento, espiando-se e se expiando, solertes, traiçoeiros, tocaiando-se.

O estado de depressão é mais lógico que o de sublimação, como a vingança é mais lógica que o perdão. Porque dinâmico, o estado de sublimação é absorvente e construtivo; rígida como a lógica, a depressão é árida, neutra, em si, de um desejo estático de vingança que não se realiza ou se realiza brutalmente. Uma vez deprimidos, queremos a razão ou explicação de tudo, num processo de regressão. O regressivo, com efeito, está sempre recapitulando, sempre voltando, sempre puxando o fio solto para desembaraçar o novelo mas sem nunca cortar o nó górdio, antes deleitando-se na tentativa de desembaraçá-lo, sempre querendo descobrir a origem, passando tudo a limpo, em firulas, indo de causa em causa e examinando até atrás das causas, ele próprio às vezes uma causa perdida. Vai, de maneira inversa, do “ciao” de despedida ao “oi” inicial, escarafunchando meandros e protestos do coração de frente para trás no misterioso e labiríntico baú da memória, até a primeira lembrança, até o quadro em branco, até uma espécie de “tabula rasa in qua nil erat scriptum”. O deprimido costuma ser um especialista em “curriculum vitae”. Se perdemos alguém num acidente, deprimidos, queremos saber por quê. Logo agora? Tanta gente ruim pra morrer... Por que logo comigo? Por que sou tão marcado pela vida? Por que comigo nada dá certo? Por que os sonhos dos outros se realizam e os meus, não? Por que me casei com tal pessoa? Por que tive filhos? Por que todo mundo passa em concurso e eu não? Por que todo mundo (todo mundo?) ganha dinheiro e eu não? Por que quem parte e reparte sempre fica com a melhor parte e eu parto e reparto e fico sempre com a pior parte? Por que outros têm espaço na mídia e eu não?

E como não encontramos boas razões para tantas elucubrações de caráter personalíssimo, a lógica nos deixa e nos mantém, por mais ou menos tempo, num patamar inferior da existência, no nosso submundo intelectual pretensamente superior. E como nenhum componente do nosso ser é uma ilha no organismo, logo sobrevêm as conseqüências de tônus psicossomático, contrações musculares, por exemplo, tremuras, quando não sérias patologias orgânicas.

A depressão, portanto, e por sua vez, é irmã gêmea da frustração. No estado de frustração, pela ausência de um objeto ou por um obstáculo externo ou interno, a pessoa se priva da satisfação dum desejo ou duma necessidade. Deprimido, e não encontrando respostas lógicas para os problemas, inclusive anteriormente superados e agora redivivos, ou não conseguindo transpor os umbrais da sublimação, simplesmente me frustro. Observe-se, na verdade, que um dos mecanismos psicológicos mais usados pelo frustrado é justamente o da racionalização, em busca, justamente ou pelo menos, de pseudo-razões. Cabe lembrar também que a sublimação exagerada, fruto mais de simpatia (nem sempre mútua) que de empatia, pode também gerar frustrações. Pessoas que se doam em excesso, exagerando na dosagem, no fundo, e instintivamente, gostariam que tais esforços fossem reconhecidos, e nem sempre o são. Pelo contrário. De dez leprosos curados por Jesus, apenas um voltou para agradecer. Aí a frustração vem a galope e a pessoa favorecedora (o caso de Jesus é hors-concours) faz questão de esquecer as pessoas favorecidas, considerando-as, mortas ou vivas ainda, praticamente falecidas.

Psicologicamente, racionalização é a tentativa de justificar o interesse conflitante de forma aparentemente racional (desculpa para tudo), por um mecanismo de acomodação ou adaptação da mente. Um torcedor militante e fanático costuma camuflar as derrotas de seu time favorito usando desculpas manjadas, esfarrapadas: – Adversário desleal! Bandeirinha safado!... E esculhamba o juiz: Um filho da p.! Juiz ladrão! Arbitragem ruim derrubou o time. Locutores de futebol, no Brasil, driblam o erro de seu jogador preferido, que chutou uma bola para fora, narrando disfarçadamente: “O campo estreitou” ou “O campo acabou de repente”. Jurados das escolas de samba, no Rio de Janeiro, para os perdedores, são sempre tendenciosos.

De acordo com a fábula de Fedro A raposa e as uvas, uma raposa faminta se frustra por não alcançar as uvas em alta parreira, desculpando-se logo com a alegação de que as uvas, inatingíveis para ela, estariam verdes, portanto azedas. Um aluno saiu-se mal na prova de Lógica Jurídica. Embora sem poder negar os erros efetivamente cometidos, a exemplo da raposa preferiu iludir-se na autodefensiva: – O professor é de amargar: não explica nada direito, não sabe ensinar nem avaliar. Ainda bem que passa rápido...

Tais justificativas não são objetivas e verdadeiras razões de fato, mas “boas razões”, falácias lógicas travestidas de realidade, para livrar o interessado de tensões conflitivas, no momento, quando o ideal seria aproveitar o tempo (“Carpe diem!”, de Horácio). Costuma-se, inclusive, dizer “tudo bem” para qualquer situação: – Acabo de ser assaltado, mas tudo bem... tal a necessidade de encontrar “boas razões”, nem que sejam de acomodação. “Dar razões para o que se faz ou se deixa de fazer é o que há de mais fácil, quando percebemos que as não temos suficientes tratamos de inventá-las...” (José Saramago, Todos os nomes, São Paulo: Companhia das Letras, p. 190).

Masoquisticamente, com as mesmas funções de reação das “uvas verdes”, existe o fenômeno do “limão doce”: a pessoa atirada a uma situação intolerável, racionaliza dizendo que até valeu a pena, porque valeu a experiência. O interior sádico do deprimido também assim se revela, batendo em si e apanhando de si mesmo.

Em suma, todo ser humano é um paradoxo ambulante, lidando sempre com um lado positivo e um lado negativo, um lado bom e um lado mau, adotando verdades e mitos, crenças autênticas e superstições grosseiras, ora parecendo que a verdade está de um lado, ora do outro. Pedra preciosa nem sempre lapidada, trigo em meio ao joio, ou mesmo santo de pau oco, de fundo falso, de inconsciente traiçoeiro e de inconsciente coletivo, cultural. Ah, se me fosse dado aconselhar e, se não, di-lo-ia para mim mesmo: tolerância! tolerância! tolerância! Na prática, sei como é difícil. Mas somente admitindo modos de pensar, de agir e de sentir diferentes dos meus ou de grupos determinados, políticos ou religiosos, sentir-me-ei imbuído de outras lógicas, da depressão ao Olimpo, da letargia à sublimação, do ateísmo à fé, do empirismo ao idealismo, do desânimo à disposição de viver... minha vida, como eu sou, com meus familiares e colegas de trabalho, em suma com minhas limitações, no espaço e no tempo. Plagiando Ortega y Gasset, eu e minhas circunstâncias...