«Com os treinos e os estudos, quando dei por ela estava só, não tinha amigos.»

Ex. Nadador olímpico Português

Esta frase fez-me pensar.

Se pensarmos nas características próprias da natação: realiza-se, pelo menos num largo período do ano, em recintos fechados, com a cabeça dentro da água, sem comunicação entre os parceiros, sem sons humanos, com rotinas ferozes, a andar de um lado para o outro da piscina, sem alteração da paisagem e ainda, com elevados níveis de sofrimento e cansaço, poderemos perguntar que consequências daí poderão vir em termos de desenvolvimento da personalidade?

Por outras palavras, que "tipo de gente" aguenta isto, ou melhor, que estrutura de personalidade se integra e aceita esta enorme tarefa?

«Na presença de outro ser da sua espécie, o humano não pode senão comunicar» gregori Bateson, in (Leal, 1993)

De facto, tendo em conta o ritmo de "trabalho" dos nadadores, – e só vou referir os de alta competição, embora acredite que na natação actual desde muito cedo se "trabalhe" bastante – com treinos bi-diários, aulas, estudar, pergunto-me e pergunto-vos o que resta? As hipóteses de comunicar não serão reduzidas ou mesmo nulas? E que consequências, a não comunicação pode ter?

Permitam-me continuar neste raciocínio. A natação como desporto individual fomenta, naturalmente, a competição individual. Essa competição tem início desde logo, no interior da própria "equipa", com rivalidades que se vão desenvolvendo entre cada um dos nadadores dos mesmos estilos (técnicas) e/ou idades. Depois, com os nadadores de outros clubes. E isto desde muito cedo. A natação é um dos desportos em que se começa mais cedo, e em que há campeões e recordistas Olímpicos ou Mundiais, com idades muito baixas.

Tendo em conta estes elementos, não posso deixar de pensar no "tipo" de personalidade (estrutura) que estará mais adequada a este tipo de exigência e o "preço" que terá, eventualmente, de pagar por toda esta dedicação.

Assim, poderá ser alguém profundamente disciplinado, metido dentro de si próprio, com dificuldades de estabelecer relações duráveis e diversificadas, não porque não queira, mas porque não é capaz.

Ou tem uma relação extremamente fusional com o segundo cuidador.

Com tendência para desenvolver "fantasias" internas.

Mas também, pode ser alguém com um narcisismo muito elevado, por ter necessidades de vitórias e de reconhecimento público. Arrelacional – as suas relações são meramente instrumentais e duram enquanto lhe interessar – manipulador e com os "nervos à flor da pele". A sua responsabilidade e capacidade não está em questão, a haver erros ou falhas, nunca são suas, mas sim dos outros.

A sua capacidade de trabalho e de esforço tem muito a ver com um preenchimento de um vazio interior.

Isto também é válido para o perfil anterior embora naquele caso menos acentuado.

Mas é só negativa a minha leitura? Claro que não!

Se estes problemas poderão ser reais, e com consequências no seu comportamento futuro, também é verdade que se desenvolve uma enorme capacidade de sacrifício, capacidade de resistência à frustração, sabendo adiar a gratificação pelo seu trabalho, o que implica uma grande disciplina, predisposição para o trabalho e para a luta do quotidiano.

Não será por acaso o sucesso escolar e profissional de uma boa parte dos nadadores nomeadamente dos nadadores de alta competição.

Mas a questão subsiste: «Com os treinos e com os estudos, quando dei por ela estava só...»

A verdade é que cada vez mais as sociedades vão avançando para uma individualização quase "cega" que contraria a própria natureza humana, que necessita da relação, desde a mais tenra idade, para ter uma boa construção mental adaptativa pois: «A realidade humana assenta na comunicação como formato primário de todos os relacionamentos » (Leal, 1993).

Mas, se assim é, e eu acredito que sim. Na natação, como já referimos, a comunicação encontra-se afectada desde logo, pela própria natureza da modalidade em si. Daí os possíveis "disfuncionamentos" emocionais de que o nadador pode vir a sofrer, enquanto desportista, nadador e cidadão que terá, quase inevitavelmente, consequências nos seus relacionamentos futuros (e presentes) tanto em relação aos OUTROS como em relação a si mesmo. Pois, «...debaixo de muitas outras aparências, o que impede os humanos de descobrirem novas soluções para superarem dificuldades de adaptação e de desenvolvimento é a deficiente estruturação da comunicação emocional de ressonâncias mútuas.» (Leal, Rosa. 1997). Desta forma, não admira que muitos nadadores e ex. nadadores se sintam sós e com dificuldade em estabelecer relações duráveis que sejam mutuamente prazerosas.

Em jeito de conclusão

Temos assim, que tendo em conta as características próprias de uma modalidade como a natação, poderemos estar a desenvolver humanos que, antes, durante e depois, da sua prática desportiva poderão ter, ou vir a ter, problemas emocionais que terão muito a ver com as suas dificuldades de relação dialógica e que, no limite, os impede de serem felizes.

Esta relação dialógica tem a ver com o dar e receber, de um ir e de um devir comunicativo, contingente, e, por isso, prazeroso. Desta forma, estruturando uma construção mental saudável dos significados EU/OUTRO.

Assim, se não está em causa a riqueza educativa da natação, nem o facto de que para mim a competição é inerente à condição humana. Não sei, no entanto, se esta inerência será à condição humana ou se a sociedade transformou a competição numa necessidade...

Teremos de pensar em estruturas de competição desportiva (clubes, associações, federações e outros) organizadas de forma a favorecer o espírito de equipa e a relação dialógica entre todos os nadadores.

Sem estes factores, poderemos estar a esquecer as necessidades dos humanos, em prol, exclusivamente, dos resultados desportivos.

Naturalmente que não se pretende neste artigo abordar todas as questões importantíssimas da relação. E assim, fica por abordar a relação do indivíduo nadador e os seus cuidadores.

Mas também, entre estes e os seus pares. E é claro que será neste núcleo relacional nadador/cuidador que tudo, ou quase, se define e logo a partir dos primeiros momentos de vida. Mas, o facto é que para ter sucesso desportivo na natação, não "serve" qualquer estrutura de personalidade, o que significa que esta estará mais ou menos definida aquando a entrada na natação, e, sobretudo, aquando da opção pela competição.

Não será por acaso que jovens de elevado potencial abandonam cedo a natação de competição…

Mas não teremos a obrigação de fazer "evoluir" essa estrutura?

É que é importante que não nos esqueçamos que «O ser humano por ser dotado de "função simbólica" interioriza o código da sua relação com o outro. Cotejando Fraicoise Dolyo (1981): ele ama-se a si mesmo tal como é amado pelo outro e rejeita-se pela mesma medida.» Leal, M.R.M., personalidade integrada e Escola de todos, Lisboa. (sublinhado nosso).

E o que se passará com atletas das competições individuais e colectivas altamente profissionalizadas?

Nota final muito importante: A natação é, na minha opinião, a modalidade desportiva mais saudável e completa, tanto a nível físico como psicológico. Mas este artigo trata da natação de alta competição (rendimento) e da necessidade de reflectir sobre todas as varáveis envolvidas no desporto de alto rendimento e a vertente psicológica é uma delas.

BIBLIOGRAFIA

Leal, Maria Rita Mendes, 1993, Grupanálise, um percurso 1963 - 1993, Fim de Século, Lisboa.

Leal, M.R.M., Rosa, Maria Brito G., 1997, O processo de hominização, Bios transforma-se em Psiche, Associação de Pedagogia Infantil, Lisboa.

Leal, M. R. M. (?) Personalidade integrada e Escola de todos, sem informação.