Resumo

Neste trabalho conceptualiza-se a intervenção psicológica no processo de luto. Procura-se relacionar as características de cada fase desenvolvimental do ciclo vital com as dificuldades subjacentes ao processo de luto e reflecte-se sobre as dinâmicas psicológicas associadas à perda e a morte. Procura-se compreender as contingências psicológicas de diferentes abordagens ao processo de luto e sobre a influência de alguns aspectos culturais na elaboração psíquica da perda.

 

No âmbito da psicologia, devemos colocar a abordagem à morte na morte representável, ou seja no processo de luto e na elaboração psíquica/emocional perda. O terreno da irrepresentabilidade da morte tem servido de pasto para filosofias esotéricas e religiões, tem alimentado oportunistas morais e económicos (vide mediuns, videntes e companhia ilimitada) com ligações directas para o além que (impunemente!) perpetuam o sofrimento e atrofiam o desenvolvimento emocional. Esse, naturalmente, não é o terreno da psicologia. Na abordagem à pessoa em luto devem ser respeitadas e conceptualizadas crenças e contextos culturais numa determinada estrutura de personalidade, no entanto não é objectivo da psicologia criar ateus ou católicos, e muitos menos devem as pessoas servir de telas fantasmáticas para projecções do próprio psicólogo, assunto maior, que a ética psicológica desvaloriza no seu discurso, e nós psicólogos silenciamos, numa cumplicidade comprometida.

No seu trabalho com pessoas em processo de luto (por isso em luta pelo sentido da vida) o Psicólogo deve ser um observador atento e interveniente no processo de integração da perda na estrutura de personalidade que é objecto do seu estudo, tendo por preocupação única a saúde mental da pessoa que se lhe apresenta com um pedido de ajuda..

É no entanto certo que há vida que há depois da morte, tem a ver com o que fica de nós nos outros, o que fica de nós na Humanidade, a nossa obra, o nosso projecto de vida e acima de tudo as nossas relações emocionais, perduramos nos outros, porque existimos por dentro dos outros. A morte é o contrário da vida? Quem morre continua a viver por dentro dos sobreviventes.

Quando confrontados com a perda daqueles que mais amamos, a vida pode deixar de fazer sentido. Podemos sentirmo-nos perdidos. Emocionalmente, nada em nós será mais profundo e doloroso do que o sentimento de perda irremediável. Pensamos que nada nem ninguém pode preencher o sentimento de vazio que os que partem deixam em nós. Pensamos que nada nem ninguém acalmará a angústia e as feridas interiores. É importante perceber a dimensão emocional da perda, pois há lágrimas que tem de ser choradas e há gritos que tem de ser gritados. A nossa condição humana pede-o, a saúde mental exige-o. Quem desconhece o amargo da tristeza não se delicia com o doce da alegria.

Uns partem suavemente num sabor agridoce, outros deixam-nos chagas por dentro, no coração. A isto não é alheia a teia relacional que connosco construíram. Repito: existimos por dentro dos outros e só por isso, quando a morte chega para os que mais amamos, a ausência física impõe um processo de desvinculação, achámos por bem chamar-lhe processo de luto, e verificámos que se divide em três fases: torpor/negação, desorganização e organização emocional, é a resposta psíquica à agressividade do meio.

É de importância maior saber que é da condição humana reagir à morte com a força do instinto de vida, Eros prevalece sobre Tanatos. Quando tal não se verifica, aparecem os lutos prolongados e complicados com sentimentos depressivos para além da razoável, pode-se então pensar que o luto nada mais fez do que pôr a nu a fragilidade estrutural preexistente. Furacão ou sismo emocional demasiado severo para a arquitectura do edificio psíquico. Impõe-se o espaço terapêutico como refundador da estrutura mental que vinga na vida, e se disponibiliza para a viver, como aliás é de seu direito.

Excluem-se da prioridade de intervenção psicoterapêutica sintomas reactivos, verbalizados pela voz ou pelo corpo, que pela sua própria definição tendem a extinguir-se quando deixarem de ser necessários à organização psíquica.

Pelo mesmo motivo se exclui a medicação para aliviar (calar) o sofrimento, o luto é um processo que implica expressão da dor, retardá-lo não ajuda em nada, pelo contrário pode comprometer. Já ambientes permissivos à expressão emocional são facilitadores e por isso transformadores da dor em expressão, fica-se mais próximo da vida.  

Na infância o mais aceitável é a partida de avós ou familiares próximos. Nestas alturas temos uma tendência quase inata para proteger as crianças romanceando a morte ou omitindo a verdade. Ainda que as crianças só compreendam o sentido irreversível da morte a partir dos seis anos, é importante deixar claro que a pessoa não volta e que não partiu por sua vontade. A criança intui o sofrimento dos outros e pior que a dor associada á verdade é a criação do tabu. O que a criança infere é que este é um sofrimento tão grande que os adultos acham que ela não aguenta, desvaloriza-se a capacidade emocional da criança, desvalorizando-se a própria criança afastada e impedida de estar próxima emocionalmente dos seus, cria-se uma barreira invisível que pode condicionar o espectro relacional futuro. Muitas vezes a criança entende que a pessoa partiu porque quis, contribuem para isso explicações como: foi fazer uma viagem, está num sítio muito melhor ou então essa espécie de silêncio ensurdecedor onde a voz se cala e os olhos gritam. Pelo seu egocêntrismo, está fácil de ver que a criança se pode colocar numa posição de abandono e culpabilidade, o que não é, de todo, conveniente em fases tão precoces de estruturação da personalidade. Acho que não se deve, pela ausência de verdade, pela mentira ou pelo silêncio deixar a criança entregue apenas á sua imaginação. É necessário enquadrar a fantasia da criança numa base realística, assim sim para sua protecção. “Proteger” a criança pela negação da dor, pode ser muito conveniente para familiares mais angustiados, mas desvaloriza a criança e cria o tabu da morte associada a um sofrimento incompreensível e inadmissível à consciência. As crianças não precisam de ser “infantilizadas” precisam de sinceridade e disponibilidade afectiva para chorar ou para construir a mais fantástica das histórias que permita elaborar de forma construtiva a angústia e a ansiedade.

A adolescência caracteriza-se pela afirmação da identidade. É necessário uma separação emocional das figuras parentais, o que acarreta alguma (saudável) agressividade inconsciente dirigida para tais figuras ou deslocada para figuras de autoridade, pior é quando, não encontrando alvo, a mesma agressividade se dirige para dentro (acting in) e corrói o frágil Self adolescente dando continuidade a uma tonalidade depressiva mais ou menos consciente. Não sendo o alvo da deslocação agressiva socialmente aprazivel (que permita elaboração da agressividade) aprofunda-se a culpabilidade e retrai-se o self no seu desejo de implementação no meio extra-familiar. Não sendo socialmente aceitável, chamamos-lhe acting out,  esse heroísmo anti-social que esconde o desejo de aceitação e projecta a culpa massivamente. Isto porque há sentimentos (sofrimentos) demasiado grandes para Homens ainda tão pequenos.

A idealização dos mortos (depois de morrer todos são perfeitos) associada as características desenvolvimentais da adolescência pode desvirtuar o processo de autonomização e agudizar (pela culpabilidade) sentimentos “persecutórios”. Quando na descoberta do mundo se aventuramos por caminhos menos esperados (fora dessa espécie de praga que é a normalidade) a típica ideia de que o morto está lá em cima a olhar por nós, pode ser uma fonte de segurança e protecção contra os maus olhados da vida, mas também se pode tornar numa espécie de Big Brother esse sim da vida real, em que se rege a própria vida em nome do mui perfeito, omnipotente e omnipresente morto. Assassina-se o gesto espontâneo e criativo. Hipoteca-se o sonho, morre-se para a Vida, em nome do morto. Humanizar a morte é também retirar os mortos do pedestral em que uns se colocaram em vida, e outros os colocámos nós depois da sua morte. É necessário que a morte não lhes retire a condição de humanos com qualidades e defeitos. Neste tipo de lutos é necessário estar atento a deslocações da agressividade e ao agir da tristeza e dos sentimentos de culpa. È preciso dar tempo ás pessoas para integrar a perda e respeitar os seus silêncios e revoltas. Tentando não criar mais culpabilidade pela agressividade agida ou verbalizada e remetendo para a irremediável tristeza subjacente ao gesto que a revolta (voz da indignação) grita.

O que se pode dizer a uma criança ou adolescente que perdeu o pai ou a mãe para aliviar o seu sofrimento? O que se pode dizer a um pai ou a uma mãe que perde um filho? Provavelmente nada... a profundidade da questão não é da mesma ordem de grandeza das palavras, é da dimensão o indizível. Por isso talvez só se possa ajudar com uma presença serena, disponível e sincera na afectividade. Talvez um silêncio sentido que respeite a dor alheia. Talvez um espaço de aceitação emocional incondicional (e a raiva e o ódio também são sentimentos) que dinamize a vida psíquica, para a pessoa não se feche (num silêncio igual ao dos cemitérios) e encontre mecanismos psicológicos capazes de transformar a angústia da perda em actividades satisfatórias de Vida.   

A morte, o fim de si próprio, está sempre presente nos adultos de forma consciente ou inconsciente. Tenho como certo que o melhor que os pais podem dar aos filhos é tão simples (e complexo) como isto: ensiná-los a viver sem eles. Não considero então as personalidades construídas em relações de grande dependência emocional como as mais prevenidas para enfrentar processos de luto. Ansiedade de separação, angústia de perda e castração podem-se traduzir num medo de morte e no medo da morte, do próprio e das bengalas que injustamente ocupam o espaço mental onde deveria estar a valorização narcísica. O Ser Per Si do Humano valorizado nas suas diferenças e singularidades permite-lhe renascer das cinzas emocionais que a dor deixa e fazer dessas cinzas fertilizante para a vida. O coxo da bengala mental caí se lha tiram. Se não gostado e protegido o suficiente na primeira infância, se não autonomizado numa separação que valoriza e respeita o Self emergente, se não aceite e valorizado na identidade de género, então a casa não tem  pilares mestres suficentemente fortes, e com fachadas mais ou menos enfeitadas, vai-se abaixo na primeira rabanada de vento. O luto é um tufão emocional, daí a importância da prevenção e da atenção que os processos de luto requerem, a adversidade do meio pode pôr a nu equilibrios precários e fragilidades emocionais encobertas por mecanismos pouco adaptativos.       

Olhemos agora para o conceito de morte na nossa sociedade. Uma das coisas que mais se ouve nos funerais é este já lá está e Deus leva os que mais gosta. Aliás, todo o conceito dos nosso funerais mais típicos é baseado numa ideia de passagem para outro lado. Será que não temos coragem de fazer uma despedida e ficamo-nos pelo até já? Que consequências têm estes aspectos no processo de luto? Bom, em mentes mais acicatadas os rituais fúnebres podem provocar no mínimo alguma ambiguidade e confusão: devo eu dizer adeus para sempre? Como pode Deus levar o meu filho? Ouvimos também dizer que é preciso seguir em frente. Julgo que a maioria das vezes que demostramos esta falta de afecto dizemos duas coisas: desculpa lá mas eu não tenho tempo para ouvir as tuas lágrimas e por favor não acordes em mim um sofrimento do tamanho do teu. O que pode levar as pessoas em luto a perguntar-se se tem o direito de estar tristes, se uma tristeza do tamanho do mundo pode ser normal. É necessário que alguém lhes diga que seguir em frente pode ser correr para lado nenhum.

Até porque negar o sofrimento é sofrer duas vezes, esquecer e seguir em frente nunca foi um acto de coragem, não é mais do que a frouxa arma dos que não têm a valentia de chorar a aceitação da verdade e a ruína da idealidade. Vive-se à superfície, nas ondas, nas marés de um sofrimento interior inaceitável. Perde-se o controlo, o rumo, o sentido da vida. Sofre-se duas vezes: por uma ferida interior dispersa (“Sofro sem saber porquê...”) e por uma vida futura amputada da vertente emocional, logo sem sentido.

Mas que não se confundam mecanismos psicológicos adaptativos e funcionais nascidos do desejo e da necessidade de vida com negação do sofrimento, sob pena de ficarmos prisioneiros de uma tristeza esclarecida, que não deixa de ser tristeza.   

Imagino eu, que o confronto com a morte próxima ou eminente obriga a uma espécie de  processo de luto de si próprio. Aparte as crenças pessoais, a verdade é que se parte deste mundo e se deixam as pessoas que se amam. Muitas vezes este luto é associado a processos degenerativos e outras questões se levantam. Outras vezes técnicos de saúde mais preocupados com a omnipotência pessoal ou utilizando como defesa emocional  a amputação afectiva impedem que a pessoa se despeça de si própria, da vida e dos que mais ama. Morre-se sozinho no meio de alta tecnologia, tal e qual como se cresce sozinho no meio de um qualquer plano tecnológico onde os recreios sejam orgulhosamente trocados pelo aprofundamento da esquizóide linguagem XPTO. 

Não é justo que a ciência médica, na ânsia de “matar a morte”, se esqueça do Homem. Parece-me de imprescindível humanidade respeitar a pessoa num momento tão importante da sua vida. Até porque, como tão bem se sabe, a morte faz parte da vida. Será o passo final de uma dança emocional que começou muito antes de nascermos, e como em todas as danças os últimos passos querem-se sentidos...e nunca sozinhos.

Considero que entender o luto do outro é encontrar em nós os caminhos (antes trilhados) das experiências emocionais de perda e angústia, se calhar por isso dizemos tanta vez: esquece e segue em frente. Essa não é a atitude profissional correcta, é a negação da ciência humana, é alimentar a defesa psicopatológica que gera sofrimento, é colocar o técnico ao serviço da doença.

Como disse antes estar de luto é, antes de qualquer acção comportamental, um processo interior que não se condiciona com exteriores engalanados e muito ocupados, do tipo “para inglês ver”. Mais: andar vestido de negro é o aspecto exterior. Dizer que não se está a sofrer é uma verbalização. Até chorar é apenas o corpo a falar. Sejamos claros: O luto é uma experiência emocional profunda, subjectiva e individual. Como tudo o que é do psíquico e íntimo/afectivo humano, é pouco dado a catalogações objectivas, observações directas, Escalas de Likert e técnicas mais ou menos racionalizantes.

Considera-se então o luto um processo dinâmico de integração emocional do sofrimento irremediavelmente subjacente á perda. O seu grau de intensidade vai depender de vários factores e condições: do tipo de vinculação com o falecido ás circunstâncias e aos significados da morte, passando, naturalmente, pelas características de personalidade do sobrevivente. O facto de não existirem clones emocionais confere a cada Ser Humano a possibilidade de percorrer “mares nunca antes navegados” no sentido da vida e a cada profissional a oportunidade de crescimento pessoal na tentativa de realização profissional. Assim haja a criativa disponibilidade emocional que advém do conhecimento pessoal por oposição a objectividade enganadora do receituário (que acredita que uma dor adormecida é uma dor inexistente) e à negação pelo “espiritual” (que estagna e entorpece o processo de luto).

Está então delineado um caminho de descoberta no apoio à pessoa em processo de luto. Desta forma dão-se passos a caminho da tão necessária humanização da morte e ao encontro com vida real que fica depois da morte. Não esquecendo nunca que humanizar a morte é (re)encontrar um sentido para a vida.

Será que a seguir ao tabu da sexualidade virá o tempo da dismistificação da morte? Talvez a nossa sociedade tenha vivido até agora na fase de choque e negação da morte (o tal além perfeito, curiosamente sem desejo...talvez por isso também sem culpa...logo perfeito). Talvez hoje se viva a fase da desorganização (apesar dos novos profetas de bata branca que anunciam a vida eterna em directo no telejornal). E talvez um dia aceitemos a nossa condição de Humanos simplesmente finitos em vida mas infinitos de vida nos outros Homens como nós, esses sim, à nossa imagem (e altura).