Sempre andaram por aí, estes “problemas espirituais”. Não, não me refiro ao problema filosófico da existência de Deus ou à dúvida dolorosa do crente que encontra contradições na sua fé. Refiro-me aos “Problemas espirituais” que videntes, pessoas que falam com Jesus, bruxos, magos africanos e afins propagandeiam por aí.

Tem ou teve alguma vez algum destes sintomas? – Ansiedade, ataques de pânico;cansaço, falta de energia; crises não diagnosticadas; Depressões; doenças físicas, psíquicas ou psicossomáticas; dores generalizadas; dores nas costas; falta de sono; fobias; hipoactividade; mal estar generalizado; medos; mudanças constantes de humor; ouvir vozes; pressão no peito; problemas recorrentes (quando as mesmas coisas estão sempre a acontecer); quando há uma hipersensibilidade a um ou mais assuntos; quando há uma perda; stress; tristeza. Se sim, segundo Alexandra Solnado (1), pode padecer de “problemas espirituais” e estes são alguns dos seus sinais. Paralelamente, a mesma autora refere cancro; epilepsia; hiperactividade e ideias de suicídio como “patologias kármicas”.

Pelo que se vê, poucas serão as pessoas que nunca tiveram problemas espirituais. Aliás, neste momento, talvez tenha um, já que estou com uma dorzita nas costas e fiquei um bocadito mal-humorado quando li a lista de sintomas, quando ainda nem há 10 minutos estive a rir com uma anedota que alguém me enviou por e-mail…Quanto às patologias karmicas, atribuir a uma vida passada o cancro no pulmão que tenho hipótese de ter se não deixar de fumar, parece-me um pouco exagerado…talvez seja melhor deixar de fumar.

Na Psiquiatria e na Psicologia, utiliza-se o DSM-IV, que é um manual de diagnostico de perturbações psicológicas/psiquiátricas. Para cada perturbação existe uma lista de sintomas e é preciso ter x sintomas para se ter um diagnostico. Nos “problemas espirituais” parece que não é necessário este tipo de crivo, nem a investigação aturada, nem as reformulações regulares de acordo com a evolução do conhecimento que temos sobre estes problemas. Não. Nos “problemas espirituais”  a falta de energia pode ser um sintoma de qualquer coisa transcendente.

Esquecendo os sintomas da Alexandra Solnado que são muito vagos (dores nas costas, crises não diagnosticas, medos, etc) que toda a gente já teve pelo menos uma vez por alguma razão, reparo que alguns dos outros poderão referir-se a problemas psicológicos, alguns muito comuns (como a ansiedade) outros nem por isso (do ponto de vista da prevalência na população) como o ouvir vozes. Outros ainda, devem-se e são facilmente explicáveis por situações da vida: perda, tristeza, cansaço, por exemplo e não são necessariamente patológicas... é que a perda, a tristeza fazem parte da nossa vida, tudo depende como lidamos com elas. Quanto ao cansaço…enfim, nem é preciso dizer nada, pelo menos se quem me lê trabalha.

Preocupa-me esta narrativa de atribuir tudo e mais alguma coisa a “problemas espirituais”. Alguns destes sintomas (ouvir vozes; ataques de pânico) são indicadores de perturbações mais ou menos graves e para as quais há tratamento com resultados aceitáveis, medicação específica, técnicos treinados para ajudar as pessoas que deles padecem.

Custa-me imaginar uma pessoa que tem ansiedade e ataques de pânico considerar que tem problemas espirituais e fazer os tratamentos indicados (já lá vamos), no lugar de procurar um médico que o medique e um psicólogo que o ajude a lidar e a extinguir os ataques de pânico. Existem protocolos de tratamento cognitivo-comportamental, validados e com excelentes resultados para estes problemas. Existe medicação para estas situações. Se houver algum estudo, um que seja, que verifique os resultados das terapias espirituais, alguém que me envie por e-mail. Testemunhos pessoais não valem. Tem de ser um estudo ao mesmo nível dos cognitivistas.

No mesmo sitio de Internet, propõem-se os tratamentos para resolver os “problemas espirituais”(2) : Terapia da Liberdade ou Terapia Espiritual Integrada; Limpeza Espiritual de Sobreposição de Encarnações; Limpeza Espiritual para Crianças Índigo (3); Terapia de Regressão a Vidas Passadas; Contacto com o Eu Superior; Consulta de Astrologia Karmica; Consulta de Incorporação. Pela lista de tratamentos, parece que também nos “problemas espirituais” não há um paradigma consolidado, tal o seu número e, mais que isso, não se sabe qual a terapia indicada para determinado problema. Pelo menos no site não vi nenhuma referência a indicações “terapeuticas”.

A Terapia da Liberdade é explicada da seguinte forma: “Quando encarnamos, o nosso ser uno que habita lá em cima divide-se em dois. A alma, a nossa parte divina, o nosso “Eu superior” fica lá em cima. O espírito, o nosso “Eu inferior” entra dentro no nosso corpo cá em baixo. É uma separação dolorosa. A missão do ser humano na terra é precisamente religar, o objectivo é unir o Eu Superior e o Eu inferior. Tornarmo-nos novamente unos. A Terapia da Liberdade promove esse reencontro. É uma viagem ao céu em que o Eu Superior funciona como um terapeuta pois detém todo o conhecimento das nossas muitas vidas (passadas e futuras). É esse ser quem irá dirigir a terapia. Ele é que sabe onde se aloja a raiz de cada problema. É ele o responsável por guiar a consciência até ao inicio dos nós kármicos, bem como à essência de cada um. Ali, a chave original do problema é desactivada, limpa, não tem retorno, o nó é ultrapassado(…)”. Como é que se faz isto? “analisando de que forma as situações foram acontecendo na sua vida; determinando as energias que trouxe como herança quando nasceu; intuindo a sua missão nessa jornada; compreendendo a sua infância e eventuais traumas; pondo consciência na sua qualidade energética e sabendo de que forma atraiu todas as pessoas que estão na sua vida; encontrando um sentido para as perdas tanto a nível material como de saúde”.

Ora bem…ao que parece esta terapia é baseada numa análise da história de vida, trabalho dos traumas infantis e numa “energia” que trazemos da outra vida. Qual energia, bem, isso já seria outro artigo…

Os dois primeiros pontos são coisas que um psicólogo (sério) tipicamente faz, em algumas perturbações. Afinal, é preciso conhecer e analisar a forma como a pessoa se foi estruturando ao longo da vida, que relações de vinculação influenciam o comportamento actual, que situações traumáticas podem estar envolvidas, para ajudar a pessoa a lidar melhor com elas ou alterar o comportamento e pensamento. Energias, pelo menos no meu gabinete, só entram as que a física já descreveu, nomeadamente a eléctrica que me permite fazer consultas de noite e ver o cliente. Contudo, há uma grande, grande questão: analisar uma história de vida não é coisa que se faça de ânimo leve e muito menos explorar situações traumáticas. Uma situação de abuso na infância tem de ser abordada com muito cuidado e sabendo como o fazer, pois pode despoletar crises psicológicas graves, despersonalização, piorar o estado da pessoa. Em alguns casos, nem está indicada, dado o potencial de desestruturação. Há que saber lidar com situações de dissociação no gabinete, que podem acontecer quando o tema é demasiado doloroso para a pessoa. Há que prepará-la para o embate. Desconfio que se aprendam estas coisas nos cursos da Alexandra…Ou talvez, uma dissociação seja entendida no paradigama “karmico” como um regresso a uma vida passada. Vamos lá a ver se a pessoa não fica na vida passada…

Isto tudo para dizer que isto de andar a fazer “terapia” tem muito que se lhe diga. São anos de estudo e prática. De supervisão. Preocupa-me que se fale com Jesus e se desate a abordar traumas infantis de outras pessoas. O potencial de criação de falsas memórias é enorme, para mais com “terapeutas” sem conhecimento dos mecanismos psicológicos do ser humano. Isto para não falar noutro tipo de perturbações, como o histrionismo ou mesmo esquizofrenia paranoide, em que estas coisas podem reforçar a perturbação, impedindo a pessoa de levar uma vida mais viável.

Para quando uma ASAE destas terapias…E, já agora, para os psicólogos também. É que também há muita “inverdade” a ser feita por colegas psicólogos…

www.victor-silva.blogspot.com

 

(1) www.alexandrasolnado.com/terapias/EJCQVF_Sintomas.html

(2) www.alexandrasolnado.com/EJCQVF_as_terapias.html

(3) A propósito das “Crianças Índigo” uma análise céptica do “fenómeno”: http://victor-silva.blogspot.com/2008/03/crianas-ndigo.html