“Um encontro de dois: olhos nos olhos, face a face.

E quando estiveres perto, arrancar-te-ei os olhos e colocá-los-ei

no lugar dos meus;

E arrancarei meus olhos para colocá-los no lugar dos teus;

Então ver-te-ei com os teus olhos e tu

Ver-me-ás com os meus”

 

Moreno

 

Quem quer que tenha o mínimo de brio, assume a responsabilidade de interrogar-se e responder: quem sou eu? Sabemos o nome, a idade, o que fazemos na vida, o que gostamos…mas não sabemos quem somos! No momento final, cada acto, cada fôlego da nossa vida, torna-se extremamente claro. Só a morte nos obriga a irmos realmente ao fim de nós mesmos… virar-lhe as costas é simples, assegura-nos, talvez, uma ilusão agradável!? Mas é um insulto à vida…porque só nesse momento compreendemos com alguma clareza quem fomos, e com sorte, encontramos um sentido…houvesse ainda tempo para perguntar: quem era ele e quem era ela? E qual era o sentido?

A partir do momento da nossa concepção até à morte, o nosso percurso de vida desenrola-se no seu modo único.

Nas antigas mitologias germânicas, eram as Mumurantes (deusas do destino), que viviam ao pé da árvore do mundo, que teciam o fio do destino de todos os seres. Os seus nomes: Urôr (a que se tornou), Verdandi (a que está a tornar-se) e Skuld (a que se tornará), estavam relacionadas com o passado, o presente e o futuro. O destino significava que o percurso de vida tinha que ser entendido, aceite e vivido em grande parte como predestinado (Wehowsky, 2005).

Desta forma, a morte está escrita no nosso destino, e não há nenhum poder humano que a impeça.

A maioria de nós nasceu e vai morrer num hospital, quão frágeis somos! Porém, nascer alvitra alegria, mas da morte não se fala. Nascemos com medo das alturas, dos movimentos súbitos, dos sons altos, os restantes, tal como o medo da morte, são adquiridos. A visão sombria e terrífica da morte tem vindo a ser apreendida culturalmente. Foi no final do século XVII que irrompeu uma grande intolerância face a familiaridade entre mortos e vivos, o que não se passava anteriormente. Durante a Idade Média, todos reconheciam a sua mortalidade e ninguém morria sem saber que ia morrer. A pessoa preparava-se e aguardava a morte serenamente na cama ou no chão (no caso de um cavaleiro ferido), mas não sozinha, como hoje em dia (Oliveira, 2008).

O sistema moderno de saúde luta agressivamente contra a doença e a morte. Prolongamos a vida (ou a morte) a todo o custo. Tornamo-nos, claramente, numa sociedade que nega a morte.

Porém, a morte não foi conquistada e todos nós vamos morrer. A maioria de nós morrerá com uma doença crónica com fase terminal curta, com deterioração progressiva, com crises periódicas e com uma dependência média de quatro anos.

Como vemos, a morte saiu do domicílio e foi para o hospital, embora potencialmente poderíamos ser cuidados em casa. Mas, com esta cultura de negação da morte, com a ilusão do controlo sobre a doença e com os novos sistemas familiares…morremos sozinhos, com um número de cama num hospital… e esta solidão, já não é a mesma da Idade Média, em que solidão significava sentir-se estar completo e, em termos religiosos, solitude traduzia a experiência de ser uno com Deus.

 

Todavia, um cemitério, um quarto de hospital, podem transformar-se em locais inesperadamente interessantes quando se vêem com os olhos de ver e aprender. Porque é que a doença, o doente, metem medo às pessoas? Porque o associam à morte, e esta é no mínimo incómoda, uma chatice!? (Oliveira, 2008).

A morte faz parte da vida, tal como o nascer, a infância, a juventude ou a velhice. No contacto diário com a morte, conhecemo-nos melhor como seres humanos, percebemos que cada momento insignificante tem a sua razão de ser, se o soubermos ler. Contudo, o difícil é aprender a ler, porque todo o resto está escrito…

Cada ser humano tem a sua história única, irrepetível, grandiosa ou modesta, longa como a dos velhos sábios ou curta, ilusória e traída. Quando a morte nos toca, devíamos procurar perceber se mais uma vez, aprendemos alguma coisa sobre a natureza humana (Serrão, 2003).

Nos corredores do hospital há relógios. Um deles marca 13 horas… mas não! Já passou bastante dessa hora. Aquele relógio continua agradavelmente parado. Os seres andam de um lado para o outro, alguns parecem ansiosos, assustados, outros só andam depressa, como se tivessem um relógio louco dentro deles. Outros, andam calmamente, como que num outro universo onde o tempo não faz sentido, onde não há pressa de chegar…parecem esperar que algo ou alguém lhes devolva a luz ao olhar. Outros ainda, estão parados, frágeis, enrugados…resignados ao expirar do tempo, prestes a ser ceifados pelo frio eterno. Mas, não há horror na morte, o corpo só já é um instrumento inútil… são vidas humanas em mãos humanas…Era um momento de solidão geral.

 

O mundo não nos ensina a morrer. A vida não nos ensina a viver. Alguns pensam que o importante é “fazer” e “ter”, mas mais cedo ou mais tarde, todos acabamos por perceber que não basta para conferir um sentido à nossa existência. É assim, que se reconhece da boca de um doente terminal a mágoa de terem passado ao lado do essencial. Começa então a angústia, cheia de brumas vazias ou cheia de marés de memórias.

O que fazemos da vida? Procuramo-nos, fugimos de nós, queremos saber quem somos…não temos tempo, a vida passa tão depressa…e por fim chega a morte. Na sua presença tomamos consciência de que a vida poderia ter sido diferente…mas é tarde…como pode alguém preparar a sua morte, num mundo que a denega? Sim, porque enquanto há vida, há ilusão… (Leloup e Hennezel, 2001).

O tempo de morrer possui um valor…a morte obriga-nos a encontrar um sentido. E ai, é bom que a vida tenha sido uma construção, e não apenas tempo que nos perde.

Trabalhar com doentes terminais obriga-nos a aproximarmo-nos do Outro com mais respeito, o respeito por ele estar mesmo para além daquilo que vemos. Não é a morte que mete medo, ela só requer bom comportamento, mas, para tal, temos de aprender a conviver, respeitar e tolerar o nosso íntimo…aprendemos a estar em silêncio connosco, nesse lugar profundo onde podemos deixar passar os medos, as emoções, a dor das coisas sonhadas e não vividas, as horas que não tivemos para conversar com um amigo, para ler um livro, para ir nadar, para entender a relação das coisas… às vezes, não pergunto o porquê do vazio, porque muitas vezes, ainda estão longe de o saber…basta perguntar: o que fez da sua vida?

Já muitos perceberam que não deram à vida a atenção que ela merece. Tal como descreve Mann (1980), no seu livro A Montanha Mágica, a expectativa da morte amadurece e leva-nos a travar contacto com o mais profundo da fragilidade humana. Também, Tolstoi (2004), descreve Ivan Ilitch, que via que ia morrer e estava desesperado. No fundo da sua alma, estava bem certo que ia morrer mas não só era incapaz de se afazer a essa ideia, não a compreendia sequer. Chorava pela situação desesperada, pela sua horrível solidão, pela crueldade dos homens, pela crueldade de Deus, que o tinha abandonado: “A vida fugia-me…e pronto! Tudo está acabado. Agora morre! É impossível que a vida seja tão estúpida, tão má. E ela é realmente má e estúpida, porque será preciso morrer e morrer sofrendo? Há qualquer coisa que não está certa. Talvez, eu não tenha vivido como devia?”

 

Para os profissionais de saúde, chega-se a uma altura em que se começa a conviver com a morte como se fosse uma amizade antiga, intima. Mas, ainda assim, cada morte tem um cheiro próprio, uma proximidade distante, uma submissão muda que grita, suspensa até que o coração cesse.

Alguns de nós estão mais em contacto com o seu interior do que outros, e isso dá-lhes um entendimento fatal de que estamos cada dia a viver e a morrer simultaneamente. Quando tal sucede, um milhão de pensamentos correm-nos pela cabeça, entre os quais: quanto tempo me resta? O que faço e o que fiz da minha vida? O mundo não devia parar para eu pensar nisso? E se hoje fosse o nosso último dia na Terra?... Mas, o mundo não pára, nem repara em nada! Continuamos apenas nos entretantos…

 

Segundo, Morrie (cit in Albom, 2006), quando se está a morrer, despes toda a tralha e concentras-te no essencial. Vemos tudo de maneira diferente, ao aprendermos a morrer, aprendemos a viver. Mas, como aprender a morrer, se nem viver sabemos? Se passamos a vida a correr, se passamos a vida a pensar no próximo carro, na próxima casa, nas próximas modas, no próximo emprego, no próximo jogo, no próximo “fazer muita coisa” sem sentido…depois, descobre-se que essas coisas são vazias, mas continuamos a correr. E uma vez começado a correr, é difícil abrandarmo-nos a nós próprios. Por isso, perdoa-te a ti mesmo antes de morreres. E se possível, toca nos corações de toda a gente que contigo se cruzou enquanto aqui estiveste.

 Sabemos que nada é perfeito, aliás, a perfeição cria um vazio… mas, só no silêncio a verdade de cada um vinga… Por vezes, parece que temos mesmo de “morrer”, para podermos renascer emocionalmente…para com outros olhos ver o mundo. Às vezes, é quando nos “perdemos” que descobrimos as coisas mais interessantes...

Contudo, é essencial que nessas pequenas mortes, não nos deixemos cair num vazio ainda maior de sentimentos, tal como relatado por Camus (2006), que parece ter mergulhado num mar vazio, onde a essência da vida tornou-se apenas: (sobre) viver. Sugere-nos a visão de que somos nada mais que animais irracionais na nossa singela existência, em que a morte é apenas uma consequência natural da vida.

A vida é uma viagem e o sentido da vida é sermos nos próprios e termos paz com isso. Assim, cada verdade se fará lentamente…

Tudo dá para alguma coisa mais vasta do que a gente. “Quem demonstra reconhecimento à pedra por ter servido de fundamento ao templo?” (Saint-Exupéry, 2008). E quem demonstra reconhecimento à morte por despertar a metamorfose de nos descobriremos cada vez mais? Será que num mundo ideal, algum de nós desejaria nunca morrer, viver para sempre?

“Mestre, que dor tão grave experimentam que tão alto faz que se lamentem? (…) Dir-to-ei rapidamente: estes não têm esperança de morrer e a sua vida cega é tão ignóbil que invejam qualquer outra sorte que seja” (Dante, 2007, pp.18)

Nunca morrer é muito mais assustador… Todavia, também há, quem tenha medo de viver, medo de escalar a montanha onde descobrimos a nossa verdade, mas é de lá que vemos a vida e a sua magia, o Outro e o Outro em nós. O entendimento do porquê de estarmos aqui.

Assim, será possível a curiosidade de saber o que vem a seguir à morte? Sem sentir a angústia da perda de mais uns minutos que se foram para sempre?

  

“É bom dar quando alguém pede, mas é melhor

ainda poder entregar tudo a quem não pediu nada”

 

Khalil Gibran

 

Aos meus doentes, a todos os Maneis e Marias que tanto me ensinaram e me ajudaram a crescer pessoal e profissionalmente. Tudo o que lhes dei foi devolvido por eles e suas famílias a dobrar: o carinho, a amizade, a serenidade, a sabedoria... Ofereceram-me uma riqueza inigualável ao ensinarem-me o verdadeiro sentido de duas palavras muito importantes: a Dignidade e a Coragem, perante a morte que sabiam certa.

 

Referências Bibliográficas

Albom, M. (2006). As Terças com Morrie. Lisboa: Sinais de Fogo

Camus, A. (2006). O Estrangeiro. Lisboa: Livros do Brasil

Dante (2007). Inferno. Lisboa: Europa - América

Leloup, J. e Hennezel, M. (2001). A Arte de Morrer. Lisboa: Casa das Letras

Mann, T. (1980). A Montanha Mágica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira

Moreno, J. L. (1997) Psicodrama. São Paulo: Culturix

Oliveira, A. (2008). O Desafio da Morte. Lisboa: Âncora Editora

Saint-Exupéry, A. (2008). Cidadela. Lisboa: Editorial Presença

Serrão, D. (2003). Dar Sentido à Vida. XVI Jornadas Médicas – medicina e Limites da Vida. Lisboa: Hospital de S. José

Tostoi, L. (2004). A Morte de Ivan Ilitch. Lisboa: Europa - América

Wehowsky, A. (2005). Bússola de Competênias de Auto-Navegação. Porto: FPCE - UP