O artigo que se segue foi publicado num jornal que falava desta linha, que gostaria de debater alguns pontos:

 

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“Há muito a ser feito para mostrar às pessoas o valor que a vida tem”

Uma Voz de Apoio

São voluntários de uma linha telefónica de apoio emocional, A Voz DE APOIO. Tendo o telefone como meio, o seu trabalho, dizem, funciona como um penso rápido.

Estancam depressões, solidões, desesperos. Ou pelo menos assim tentam. “Há muito a ser feito para mostrar às pessoas o valor que a vida tem”, garante Ezequiel, nome fictício que deixa anónimo o “anjo”.

Vitória, outro nome fictício. Outra voluntária. Algumas vezes deixou-se vencer pela tristeza de alguém que lhe telefonara. Não durante o atendimento. Nesses momentos há que manter a serenidade. “Temos de estar concentrados no que a pessoa nos diz.” Mas no regresso a casa, depois de ter terminado mais um turno. “Já me aconteceu ficar lavada em lágrimas”, confessa quem também é de carne e osso.

Faz parte da condição de ser voluntário nesta área a estabilidade emocional. “Se não nos sentimos bem connosco não podemos estar a ouvir os problemas dos outros”, conclui Vitória. Por isso, há alturas, dizem, em que é preciso fazer um exame de consciência e avaliar se “realmente” vale a pena continuar.

Num desses balanços, Ezequiel decidiu deixar de fazer atendimento. Acabou por ser apenas uma interrupção. Aconteceu após se ter deparado com uma tentativa de suicídio em curso durante uma chamada. “A pessoa não queria falar de suicídio, apenas despedir-se da vida…”, recorda. “Quando o apelante diz claramente que se o voluntário tentar explorar outras opções ele desliga, nada mais se pode fazer a não ser companhia nos últimos momentos”. E esperar que não o sejam.

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Estigmas

Não é novidade que os anti-depressivos são os medicamentos mais vendidos em Portugal e os principais beneficiários da comparticipação estadual.

Este cenário, criticam as vozes que dão apoio, poderia ter já levado o Estado à criação de medidas mais eficazes no que toca à depressão, como doença, e à prevenção do suicídio. Até porque, confirmam os voluntários da Voz de Apoio, os dados conhecidos sobre taxas de suicídio podem esconder um número maior de casos. Ezequiel lembra o “estigma” que ainda existe sobre o suicídio: “foi encoberto durante muito tempo pela Igreja e as seguradoras ainda não pagam indemnizações”.

 

Dar outra perspectiva 

A abordagem telefónica não passa pelo aconselhamento. Pretende-se proporcionar a quem liga um momento de reflexão. Paulo acredita que “toda a gente já passou pela sensação de ter resolvido um problema apenas por ter conversado sobre ele com um amigo e o ter estruturado.” E é precisamente essa a função da Voz de Apoio: escutar.

Eu diria, mais do que escutar, trabalhar com o apelante essa informação que ouvimos, pensarmos juntos, apontar a dois.

“Não podemos dar sugestões ou induzir o apelante a fazer alguma coisa”, explica Vitória que reconhece ainda assim que quem liga procura soluções. Algo que a Voz de Apoio não dá.

 

O que se pode esperar então de quem atende?

Vitória responde: “Às vezes só repetimos aquilo que as pessoas dizem, dizendo-o de outra maneira”. Ou seja, “se a pessoa diz que partiu uma perna, nós podemos lembrar-lhe que não partiu as duas”. Esta forma de “abordar a vida”, dizem-nos, treina-se através da formação que é dada ao voluntário antes de iniciar o atendimento. A capacidade de escutar é também algo que se adquire: “Treinamos o ouvir e deixar as pessoas falar e visualizar o problema”, conclui Vitória.

Dou aqui especial atenção à importância da formação em todas as fazes da vida profissional. A importância que os encontros Clínicos têm é inquestionável. Também é por isso que uma vez por mês reunimos para psicoterapia de grupo para ajudar a nossa estabilidade emocional.

 

Telefones SOS: amigoterapia ou psicoterapia?

 

I O Encontro. A abordagem utilizada nesta linhas privilegia os fundamentos das relações de ajuda de H. Porter (1950) e de C. Rogers (1951, 1961), a compreensão empática, a aceitação incondicional do outro, a não directividade. Transmitindo, de forma autêntica, preocupação, interesse, tolerância e respeito pela pessoa e pelo seu sofrimento. Esta escuta empática permite criar proximidade. Daniel Sampaio afirma que “a tarefa essencial junto de uma pessoa em risco de suicídio consiste em criar proximidade”. Pretende-se também, que a pessoa se centre menos nos factos e mais nos sentimentos e emoções, procurando o escutante ajudá-la a reconhecê-los e a ser capaz de os verbalizar, conduzindo, se possível, á sua clarificação. O voluntário sabe, que partilhar emoções e mágoas, sem receios de críticas ou juízos morais, ajuda a atenuá-las e que falar ajuda a encontrar formas de lidar com os problemas. “O que se pretende nesse momento singular do contacto apelante / escutante, é criar um canal de comunicação entre dois seres humanos: “estou aqui amigo” (Carlos Saraiva).

Mas como o fazer e até onde pode ir a intervenção nestas linhas telefónicas? Amigoterapia ou psicoterapia?

Telefonar contém o significado de comunicar, de um comportamento de procura de ajuda, o sinal de desespero, perturbação emocional que retrata sentimentos complexos como rejeição, solidão, medo, culpa, vergonha. No caso particular da ideação suicida, telefonar significa ambivalência, o balancear entre as razões para viver e as razões para morrer. Todo o escutante de um Telefone S.O.S. sabe que isso representa um crédito de esperança. E se o apelante conseguir descrever o seu sofrimento mais a possível ideação suicida se aproxima da moldura de um problema de vida, ou seja, mais susceptível a uma abordagem racional. Todavia, algumas etapas são aconselháveis, as duas primeiras primordialmente de amigoterapia e as restantes de aproximação à psicoterapia:

 

II.1 Empatia - acolher serenamente, de voz calma e afável, respeitando silêncios, choros ou sufocos, sem quaisquer críticas ou juízos de valor, numa postura tranquila, como a oferta de uma tela em branco onde o pintor pudesse livremente dar azo ao que lhe vai na alma. Sem certos ou errados, sem perfeitos ou imperfeitos. O primeiro minuto é essencial para se ganhar ou se perder a possibilidade de ajuda ao apelante. Uma grande contenção é imprescindível, até por que o protagonista é o apelante, não o escutante. E saber ouvir, o primeiro passo para o acolhimento, é uma arte e uma sabedoria. O objectivo é ver com os olhos do outro, sentir com o coração do outro, num compartilhar solidário. É essencial que esse fluxo de afecto se comece a instalar lentamente. Se necessário para facilitar a comunicação, o escutante pode mesmo dizer o seu nome sem exigir em troca a identificação do apelante. Frequentemente são usados nomes fictícios de parte a parte.

 

II. 2. Verbalização - deixar falar livremente o apelante, mesmo se a forma ou o conteúdo do pensamento parecem desconexos ou confusos. É compreensível que a intensidade das reacções emocionais não permita clarificar o pensamento segundo um fio condutor lógico e racional. Nesta etapa só são desejáveis da parte do escutante palavras ou frases curtas de encorajamento ao prosseguir da narração do sofrimento do escutante. Instalado um clima de confiança, o apelante já não só aborda o conflito que no imediato o atormenta como vai passo a passo saltando de episódio em episódio da sua vida. Agora mais liberto, menos angustiado, encontrou alguém que o ouve e o aceita tal como é. Alguém que não o julga, não o condena. E isso pacifica o apelante, ao ponto de muitas vezes ser o bastante para uma reconciliação com a vida, pelo menos momentaneamente. Neste encontro sublime de duas pessoas, quando surge o evoluir da verbalização do sentir para o exercício do pensar tal significa que o apelante procura um entendimento para um problema do seu dia-a-dia. Ou seja, a leitura do desespero, por exemplo a ideação suicida, passa a estar para além do patamar biológico. Afinal, existe um comportamento, um problema que envolve humanos. É precisamente esta maturação psicológica que pode fornecer ao escutante outras ferramentas de operacionalidade para lá da sábia passividade inicial. Ele pode introduzir com subtileza algumas questões, quase sempre na interrogativa, a partir das matérias e das informações trazidas pelo apelante.

 

II.3 Intervenção. Resolução de problemas - viver sem problemas é uma falácia porque tal situação não existe. Esta mensagem deve ser transmitida no sentido de que o importante é a procura de soluções ou cenários alternativos. O facto do apelante conseguir contar um problema pessoal não só lhe permite esbater o sofrimento mas também inspira o escutante a propor outros ângulos de visão. Um dos aspectos interessantes do diálogo escutante-apelante é o recurso a provérbios populares de entendimento comum. Não sendo de autoria nem do escutante nem do apelante provêm de sabedorias antigas que passam de pais para filhos. É esta particularidade que lhe atribui o sinal de sagrado inquestionável, vinda de um pai eterno, e a poderosa função de uma utilidade reflexiva aplicável ao quotidiano. “Não há rosas sem espinhos” é um bom exemplo de um ditado popular que contraria a ilusão de que é possível viver sem problemas. Afinal, junto à beleza das pétalas coloridas irrompem os picos ameaçadores.

 

- Modificação de pensamentos e atitudes radicais - levar a compreender que entre situações extremadas, de tudo ou nada, de preto ou branco, podem existir outras intermédias. Por isso, a preferência pelo uso da linguagem no condicional, menos absoluta, facilita o compromisso. A crispação dói bem mais que a negociação. É favorecendo a visão de equilíbrios que o escutante combate o pensamento dicotómico frequente em muitos dos apelantes. E novamente os provérbios: “No meio está a virtude”; “Nem oito nem oitenta”; “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”.

- O pensamento reorientado para o futuro – é sempre uma possibilidade da parte do escutante estimular o apelante a imaginar aquilo que pode acontecer depois de determinado comportamento ou atitude, designadamente quando existem vinculações interpessoais. Trata-se de um exercício intelectual, cognitivo, similar de um psicodrama espacial vivenciado pelo apelante. Assim, pode ser mais perceptível o conhecimento das reacções de terceiros; é o caso específico do apelante que ameaça suicidar-se. Donde, em condições normais, consegue estabelecer um cenário consequente à sua morte hipotética, esperando-se alguma ressonância afectiva que devolva o senso crítico para aquele comportamento suicidário imaginado.

- Flexibilizar a rigidez - o orgulho excessivo não permite grande margem para a tolerância. Se for possível que o apelante se ponha no lugar do outro, pela chamada troca de papéis, é de esperar uma qualquer interpretação alternativa. Uma das artes de comunicação relacionadas com o incremento da flexibilização é levar o obstinado a incutir a dúvida e o hesitante a incutir a certeza. Por outro lado, se o apelante perceber que hostilidade gera hostilidade é admissível um espaço para a mudança.

- Lutar contra a desesperança - sentimento de um pessimismo prolongado, a falta de esperança deve ser reduzida à dimensão de um momento. Na verdade, depois da noite escura, quantas vezes tida como tenebrosa, vem o dia luminoso “depois da tempestade vem a bonança”. Se o apelante tiver oportunidade de recordar episódios do seu passado, seguramente que reencontrará momentos felizes. Talvez tenha sido capaz de terminar qualquer curso, ser pai, ter feito uma viagem de sonho. Assim perceberá que na vida também há momentos para tudo. Que não deve confundir a árvore com a floresta. “ “A esperança é a última coisa a morrer”, “não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe” diz a sabedoria popular.

 

II. 4. Acompanhamento - no caso específico do apelante com ideação suicida consistente e não ideação de morte passiva, para além da intervenção propriamente dita, compete ao escutante tentar vincular o apelante para um novo contacto no dia seguinte. Um compromisso entre dois seres humanos. A partir de agora o apelante não está mais só. Assim se diminui o risco suicida e se esbate a intensidade da crise emocional. E como de costume, ao fim de algum tempo e umas noites de sono alcançará um novo alento.

 

IV. Em Conclusão - Os Telefones S.O.S. surgiram há cerca de 50 anos com o objectivo primordial de prevenir o suicídio. Os estudos sobre a eficácia destes centros de atendimento na redução das taxas de suicídio têm se revelado controversos e contraditórios. Se esse objectivo não é atingível, o amparo em crises de solidão e desespero parece indiscutível e meritório e através desta acção reduzir a probabilidade de um acto suicida não letal. Todavia, a proliferação de linhas S.O.S. em Portugal pode traduzir, numa leitura mais sociológica, falências de diversos sistemas de suporte tradicionais na comunidade, desde a família à religião. A individualização excessiva proporcionada no século XX e a inerente cultura de um narcisismo afastam as pessoas de uma dinâmica de grupo. O recurso aos Telefones S.O.S. é uma das raras possibilidades de acolhimento imediato para um determinado tipo de pessoas inquietas sem confidentes próximos ou que pretendem manter o anonimato. A postura clássica de orientação não-directiva rogeriana mantém-se como a mais indicada dentro das técnicas de entrevista dos Telefones S.O.S., pelo menos a nível dos Centros filiados nos Samaritanos. Por outro lado as atitudes comunicacionais de Porter permitem compreender as subtilezas da comunicação e os diversos patamares de interpretação. Todavia, neste tipo de linhas, como vimos algumas das propostas das terapias cognitivas parecem vigorar, mesmo para a ideação suicida.

 

Uma perspectiva Sócio Histórica

Quando entrei para a linha, já tinha um modelo definido, que regia a minha forma de actuar em contexto clínico. Não estaria disponível para uma mudança. Ao que me deparo com uma actuação semelhante à exercida no modelo Sócio Histórico.

 

Recordo os princípios do Modelo Relacional-Histórico:

• O princípio da origem social/relacional do homem (descrita por Vigotsky em 1929, enfatizando a importância das relações sociais.

• Princípio da localização sistémica e dinâmica, difundido por A. R. Luria em 1930 e 1934 e,

• O Processo de actividade, elaborado por Leontiev.

Esses são os alicerces que norteiam a formação clínica. Segundo essa fundamentação, o modelo clínico Relacional Dialógico (a construção do eu-outro e realidade), baseado nos trabalhos de Maria Rita Mendes Leal, disponibiliza instrumentos para entender o desenvolvimento psíquico e emocional dos indivíduos, do nascimento até a “adultez” psicológica, bem como desenvolver um pensamento crítico a respeito da visão naturalista e estruturalista do psiquismo humano, visão esta, enraizada pela Linha.

Na Chamada telefónica tenta-se sempre realizar um processo de construção de sentido e transformação. O indivíduo em contacto com o outro (escutante) é capaz de construir sentido e re-significar o seu modo de pensar, sentir, agir e estar no mundo.

O Telefone é como um mediador da relação, embora seja o escutante que faça a mediação entre eu-outro-realidade com a utilização das técnicas psicológicas, no intercâmbio do diálogo recíproco e alternante. (AGORA TU - AGORA EU). O escutante tem que ser capaz de “se emprestar na relação” EU–OUTRO (psicólogo/cliente), conforme descreve M. R. M. L. para propiciar o desenvolvimento psíquico e emocional do apelante.

Neste processo, só há a utilização da linguagem Verbal. Na abordagem sócio-histórica, a linguagem é o elemento mais importante na sistematização da percepção; porque as palavras são elas próprias, um produto do desenvolvimento sócio-histórico, elas tornam-se instrumentos para a formação de abstracções e generalizações e permitem a transição de reflexos sensoriais imediatos (não mediados) para o pensamento mediado. Assim, estas categorias surgem através da reorganização da actividade cognitiva que acontece sob o impacto de um novo factor: o factor social / relacional.

Na teoria sócio-histórica de Vygotsky, a ideia de que o significado de uma palavra é um processo evolutivo – que a palavra significa diferentes coisas em diferentes idades (estádios), reflectindo o fenómeno de diferentes formas – é suportada na suposição de que os processos psicológicos que controlam o uso das palavras são eles próprios sujeitos à mudança.

Lúria refere (1976) que nós podemos realmente acreditar que a autoconsciência é um produto do desenvolvimento sócio-histórico. Primeiro o comportamento é um reflexo da realidade externa natural e social; mais tarde, através da influência mediadora da linguagem, podemos encontrar a autoconsciência nas suas formas complexas. Desta forma, temos que olhar para a autoconsciência como um produto da consciência do mundo externo, do Eu e dos Outros.

Como escreveu Vygotsky (1934), “a consciência não surge como um passo superior e necessário no desenvolvimento de conceitos dentro da consciência, ela surge sim a partir do exterior”. (Vygotsky 1934, p. 282). E é este o papel que o psicoterapeuta desempenha, como Outro – exterior – na psicoterapia. O social se constrói nos humanos através dos sistemas interiorizados transpostos das relações sociais para a personalidade.

A escolha do assunto é apresentada ao escutante pelo apelante, na sua actividade principal. O apelante fala de um assunto sobre o qual está a tentar criar um sentido. Isto ajuda o escutante/psicoterapeuta a identificar zonas de próximo desenvolvimento e encontrar um caminho para trabalhar com o seu apelante.

Tal como no desenvolvimento, os conceitos espontâneos necessitam de um sistema que lhes permita tornarem-se conscientes e se transformarem em conceitos científicos (ou artificiais), o trabalho psicoterapêutico permite criar esse sistema. E este sistema é o que é novo neste processo de construção da mente. Como sabem, o significado de uma palavra é uma generalização que separa o significado da palavra em si. O mesmo acontece com o sentido. E o sentido com muito maior independência da palavra, como apresentado por Vygotsky e Mikhail Bakhtin. O significado, enquanto forma dinâmica, é o instrumento para o trabalho do psicoterapeuta. A linguagem não é um produto acabado do pensamento. Quando é transformado em linguagem, o pensamento é reestruturado e altera-se. É isto que valida a psicoterapia.

Como escreveu Lúria (1981), “uma palavra pode ser utilizada para se referir a objectos e para identificar propriedades, acções e relações. As palavras organizam as coisas em sistemas. Ou seja, as palavras codificam a nossa experiência”. (Lúria 1981, apud Robbins, 2003, p.126).

Claro que nós temos diferentes tipos de trabalho com diferentes grupos de pacientes. Até porque a nossa linha é para quem precisa, e temos apelantes de todo o continente, e ilhas, também já temos algumas chamadas das comunidades Portuguesas no estrangeiro, por exemplo Estados Unidos da América. Até porque diferentes grupos têm diferentes usos da palavra, do significado e do sentido e, diferentes histórias, que produzem diferentes culturas. Nós podemos reconhecer um enorme trabalho, a utilização de signos na psicose, particularmente signos das próprias emoções: de construção de significados na psicopatia, particularmente sobre os outros, e de sentidos na neurose, particularmente sobre eventos da própria vida, mas a atitude é semelhante em ambos os grupos.

 Para a compreensão do processo psicoterapêutico, é muito útil a distinção entre monólogo e diálogo, ou seja, no monólogo, a proximidade com o discurso interno permite um discurso predicativo com uma forte diferença entre a representação absoluta na linguagem interna e a representação parcial na linguagem falada. O diálogo com o escutante requer uma representação absoluta na linguagem falada, que promove os conceitos na consciência, o processo de re-significação e a criação de sentido. Como escreveu Vygotsky (1934), “da linguagem interna para a linguagem externa ocorre uma transformação dinâmica complexa – uma transformação de uma linguagem predicativa e idiomática para uma linguagem sintaticamente decomposta, compreensível para todos” (p. 474). É isto que ocorre na psicoterapia, e o que é suposto e proposto que seja produzido na Chamada Telefónica.

Com este trabalho, o escutante sócio-histórico aguarda por uma mudança na atitude do seu apelante para consigo próprio e para com o mundo que o rodeia, no pressuposto de B. V. Zeigarkik (1976) de que um método que metaboliza a actividade cognitiva produz uma actualização dos componentes pessoais (motivações e atitudes) (p. 32). As atitudes da pessoa estão em relação com sua estrutura de personalidade, as suas necessidades e as suas particularidades emocionais e a sua vontade / volição.

 

Estruturas de Personalidade

As diferentes estruturas de personalidade (psicopatologias) são vistas pelo psicoterapeuta como diferentes idades psicológicas. Como G. V. Burmenskaia (1997) escreveu, citado por Robbins (2003): “Vygotsky definiu idade psicológica como ‘cada tipo de estruturas de personalidade e actividade com mudanças psíquicas e sociais que inicialmente surgiram num dado estádio de idade psicológica e que determinam a consciência da criança, as suas atitudes perante o meio exterior, a sua vida interior e exterior, e todo o conteúdo do seu desenvolvimento num dado período” (Burmenskaia, 1997, apud Robbins, 2003, p. 38).

Assim, o setting psicoterapêutico pode ser visto como “um local mágico onde as mentes se encontram, onde as coisas não são os mesmos para todos os que as vêem, onde os significados são fluidos, e onde a construção de um indivíduo pode preencher a de outro. Imaginem, duas pessoas cujas actividades são mutuamente contingentes, seguindo ritmos, rotinas e iniciativas relativamente simples...”. (Newman, Griffin e Cole, 1989, apud Robbins, 2003, p 234).

Para poder fazer o seu trabalho, o psicoterapeuta dispõe de algumas técnicas. Os propósitos de melhorar o aspecto relacional (social) e promover a actividade verbal do paciente sobre o “objekt” (ou instrumento) que aqui significa coisas, pessoas e eventos, eventos da vida do paciente e, baseia-se na função de mediação que os caracteriza. Então, eles podem, numa perspectiva psicológica, ser incluído na mesma categoria.

No Modelo Dialógico agrupamos estas técnicas em dois grupos. Um grupo de “Técnicas Gerais”, que estabelecem uma certa atitude relacional (social) entre o psicoterapeuta e o paciente, e devem estar presentes em todos os momentos da psicoterapia; e “Técnicas Específicas”, que são seleccionadas pelo psicoterapeuta de acordo com o que está a acontecer em cada momento (aqui e agora) da psicoterapia.

As Técnicas Gerais são: Intercurso Mutuamente Contingente, um padrão de interação social, como estudado por Rita Leal (1975); Compreensão Empática, que assumindo a “eigenwelt” do paciente reconhece a subjectividade e Pôr Verbo. São técnicas muito faladas na Linha de apoio, “o calçar os sapatos do outro sem tirar as nossas meias”, compreender o mundo do outro, como nas reuniões da Linha de Apoio se fala “temos que dar colinho aos nossos apelantes”.

As Técnicas Específicas são: Repetição, com a intenção de produzir uma maior verbalização da parte do paciente, Marcação, com o objectivo de “apoiar” o diálogo, mas sem o interromper; Focagem, para aumentar a ansiedade, promovendo maior actividade; Generalização, para reduzir a ansiedade; Eco Emocional, ou seja, dar nome às emoções do paciente; e Re-expressão, ou seja, descrever eventos de uma forma racional e objectiva. Estas técnicas são usadas com algum cuidado, analisando primeiro o tipo de apelante que temos, o risco que ele corre, o estado emocional em que se encontra entre outras condicionantes. A Focagem é só utilizada em casos muito específicos, temos que estar muito seguros que o nosso apelante não corre risco de suicídio.

Gostaria de concluir com pensamentos de Maria Rita Mendes Leal e palavras de Vygotsky em sua honra à criança bem como ao adulto, enfatizando que o problema é integrar a experiência emocional de perdas primários e ganhos directamente na linguagem falada e, “A consciência é reflectida na palavra tal como o sol se reflecte numa gota de água. A palavra está para a consciência assim como o pequeno mundo está para o grande mundo, como a célula viva está para o organismo, como o átomo está para o cosmos. A palavra é o pequeno mundo da consciência. A palavra consciente é o microcosmos da consciência “humana”. (Vygotsky 1934, p. 486).

 

Quem são os nossos apelantes?

Foi feita uma análise estatística referente às chamadas do ano de 2006.

Assim passo a analisar o tipo de chamadas, a duração dos apelos, quanto ao dia da semana, género, estado civil, idade, cidade onde moram/ligam, as temáticas tratadas, o tipo de risco e os factores que estão na eminência desse risco.

—    Voz de Apoio Boa Noite...

—    Quem fala?

—    È a Matilde...

—    Olá Matilde fala o Abel

—    Então Abel o que o preocupa?

—    Nada

—    Porque ligou?

—    Para falar um pouco...

—    OK Abel, estou aqui para o ouvir, temos 20 minutos para conversar e compartilhar o que o preocupa.

 

Podemos organizar o apelante no tempo, com um timing estipulado, o apelante fica mais “limitado” e fala das coisas mais importantes.

 A mulher procura relacionar-se mais com o outro, e quando se sente sozinha ou quer ajuda, procura um profissional da Saúde. Outra vertente da nossa linha, e que para algumas pessoas é vantajoso, é a possibilidade de falar com alguém, mantendo-se no anonimato, só sabemos o sexo do apelante, tudo o resto pode ser manipulado.

Aproveito para sublinhar aqui a importância que o princípio da origem social/relacional do homem tem. Descrita por Vigotsky em 1929, enfatizando a importância das relações sociais para o desenvolvimento do psiquismo humano, ou seja, o desenvolvimento das funções nervosas superiores como a linguagem, pensamento, planejamento só se desenvolve caso o humano esteja em relação com outros humanos. Cabe ressaltar que entendemos o social não somente como o facto do indivíduo estar em grupo, viver em sociedade ou pertencer a uma cultura (societal), mas sim estar em intercâmbio relacional (eu-outro-realidade)). Que é o principal problema destes apelantes e de todos os pacientes que encontramos na pratica da consulta clínica.

 

Uma questão de dependência? 

O nosso trabalho não é decidir pelas pessoas mas fazer com que ele as tomem consciência da sua própria vida para poder fazer as suas decisões sem qualquer tipo de pressão. Grande parte dos nossos apelantes têm dificuldade em posicionar-se no futuro e equacionar-se uma vida diferente, caso mudassem agora alguma coisa.

 

A Dinâmica de um apelo

Na consulta clínica, aquando da entrevista dinâmica ou associativa trata-se de um encontro entre duas pessoas até aí desconhecidas (MRML, 1999), na chamada, o apelante que liga pela primeira vez, passa a ser conhecido pelo seu historial, embora continue no anonimato, o mesmo não acontece com o técnico, pois por vezes o apelante não pergunta quem está do outro lado da linha, o poder “descarregar” é mais importante.

A “Situação Padrão” de que Donald Winicott (1941) fala também se concretiza neste tipo de atendimento, a comunicação toma configurações bem características, dificuldades de pessoa para pessoa, embora com algumas diferenças, pois no serviço telefónico não temos acesso a uma serie de informação, importante para caldear dados, como a forma de se vestir, a postura, o olhar, entre outros comportamentos não verbais.

Todos os profissionais se aperceberão de que devem contar com a ansiedade que a situação de primeira chamada, à partida, provoca nas pessoas que vêm ao seu encontro. Observando o modo o apelante se consegue desenvencilhar na circunstância, tem-se acesso aos seus modos habituais de defesa face ao sofrimento psicológico que deu origem à chamada. (MRML, 1999).

Lembro-me, ainda em estágio, quando um técnico atende a chamada, um apelante liga pela primeira vez.:

—    Voz de apoio, Boa Noite...

—    Boa Noite, eu não sei se deveria ligar, talvez o esteja a incomodar, mas como ouvi na rádio, o vosso número e estou a sofrer muito. Esta linha é para quem? Se calhar não é para mim... (disse a apelante num discurso rápido e a medo).

—    Esta linha é para quem precisa.

—    Então é para mim, estou a precisar.

A apelante ficou muito mais à vontade de falar, de se expressar e a conversa fluiu espontaneamente. Na circunstância, o Cliente precisa confiar no seu interlocutor para se entregar à situação em que se encontra e exprimir a sua queixa ( MRML, 1999).

Maria Rita Mendes Leal afirma “Concebe-se uma primeira parcela do encontro, que pode4rá estender-se por até 10 ou 20 minutos. Neste troço, há o convite (silencioso ou expresso) para o cliente dar o “mote", ou seja para tomar a dianteira. O tema ou contexto que ele coloca constitui a espinha dorsal da entrevista que assim se desencadeia.