Minha formação como psicoterapeuta tem seu fundamento primeiro na obra “Ser e Tempo” do filósofo alemão Martin Heidegger. Desde então – lá se vão muitos anos – leio outros textos seus, outros inspirados nele, comentários em revistas acadêmicas, literárias e outras.

Na minha viagem a Buenos Aires encontrei, num canto de prateleira de uma daquelas livrarias incríveis que só conheço por lá, um pequeno livro (55 páginas!) : a edição de um manuscrito que Heidegger escreveu durante sua primeira (e única?) viagem à Grécia. O título é “Estancias”* (acho que a melhor tradução do espanhol aqui é estadia, paragem) Acabo de lê-lo e me sinto envolvida pelo clima nostálgico (no bom sentido: o que traz um sentimento caloroso em relação a algo que já passou) do texto. Não só porque esta viagem de Heidegger aconteceu  em 1962, mas porque ele insere constantemente alguns belos versos de Hölderlin, cita várias estrofes nas quais ecoa a paixão do poeta pela Grécia dos deuses e da beleza :

 

Mas onde os tronos, os templos, e onde os vasos,

Onde, cheio de néctar, o canto para satisfação dos deuses?

Onde, onde esplandecem eles, os oráculos que vão longe?

Delfos dorme, e onde ressoa o grande destino?

(de Pão e vinho, 4ª estrofe, trad. livre)

 E ainda:

“ilhas queridas, olhos do mundo encantado”

(Lágrimas, 2ª estrofe)

 

O “livrito” é a narrativa de seu percurso por algumas ilhas gregas e uma pequena parada em Atenas. Descreve paisagens, a pobreza dos povoados, as ruínas de templos, a presença de turistas por todo lado fotografando, “despejando sua memória na imagem tecnicamente elaborada. Renunciam, sem se dar conta, à festa do pensar” (p. 53)

Heidegger percorre as ilhas gregas de barco, junto com outros viajantes alemães, sempre com a questão: o que é o mais próprio, mais verdadeiro, da existencia grega e de seu mundo? Só vai nos dar a resposta quando chega à ilha de Delos. A resposta é aletheia :“o aberto que se oferece a si mesmo, que alcança, delimita e tudo libera, que a todo o presente e ausente oferece chegada e momento, partida e falta” (p.36).

Claro que Heidegger não pode deixar de mencionar Heráclito, Parmênides, os gregos da Hélade que tanto o inspiraram ao longo de sua trajetória como o pensador mais denso e original do século XX.

Foi em Delos que a viagem à Grécia se converteu em “estancia”, diz ele. E, mais uma vez, se dá conta do quanto nos afastamos da paragem grega, distinta do mundo tecnológico que modernamente dominou a Europa. Escreve ele neste seu “diário de bordo”: “Nós, seres humanos de hoje, parecemos expulsos de tal morada (grega), perdidos nas cadeias da planificação calculadora” (p.44)

Para mim foi uma experiência de encantamento acompanhar sua viagem, suas reflexões muitas vezes melancólicas, seu amor pelas origens gregas do pensamento, sua paixão pela verdade como desvelamento e ocultação (aletheia). E ao mesmo tempo re-encontrar o envolvimento profundo com a poesia de Hölderlin e toda a melancolia que ele revela pela perda do sagrado, do mundo grego e seus deuses alegres, irônicos, plenos de sensualidade e sabedoria.

 

* Ed. Pré-Textos/Ensayo , 2008, Valencia.