"Vossos filhos não são vossos filhos,
são os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma.
Vêm através de vós, mas não de vós.
E embora vivam convosco, não vos pertencem.
Podeis outorgar-lhes vosso amor,
mas não vossos pensamentos.
Porque eles têm seus próprios pensamentos.
Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas;
Pois suas almas moram na mansão do amanhã,
que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho.
Podeis esforçar-vos por ser como eles,
mas não podem fazê-los como vós,
Porque a vida não anda para trás
e não se demora com os dias passados.
Vós sois os arcos dos quais vossos filhos
são arremessados como flechas vivas.
O Arqueiro mira o alvo na senda do infinito
e vos estica com toda a sua força
para que suas flechas se projectem rápido e para longe.
Que vosso encurvamento na mão do Arqueiro seja vossa alegria;
Pois assim como Ele ama a flecha que voa,
ama também o arco que permanece estável."

(Gibran Kahlil Gibran - O Profeta) 

  

Gostaria de reflectir convosco sobre relações pais-filhos, sobre o que falamos quando falamos de vinculação, o que queremos dizer com "amar" um filho... E este poema fez-me todo o sentido, pois vem dizer-nos que um filho não é nossa propriedade, que não nos pertence, apenas lhes pode pertencer o nosso amor incondicional. Um filho não nasce, não vem de dentro de nós para salvar, nem para preencher os vazios construídos no seio de tantas famílias, nem vem colmatar a ausência de afecto que se sentiu de pais/ cuidadores que não souberam nem cuidar nem proteger... Um filho é uma dádiva da vida, uma missão, uma responsabilidade, alguém (independente de nós) para amar, para cuidar, para proteger, para ajudar a crescer com o coração ancorado na mais alta estrela e com os pés bem firmes no chão...seguros e audazes, amados, ousados... Tudo isto fruto do amor... Fruto do que cada um é capaz de dar, de arrancar de si mesmo e dar sem condições, sem esperar que aquele ser que deposita toda a sua confiança e Esperança em nós, possa retribuir, pagar, compensar o que damos... 

Os pais são como os arcos (base segura) que lançam a flecha para o infinito, isto é, a família, os pais são as raízes que permitem a uma criança ser segura, confiante, ter auto-estima, saber que vá para onde for terá sempre um abrigo onde regressar,   que terão sempre alguém  forte, indestrutível nos seus imaginários, os seus heróis sem capa, mas com imenso amor  (o seu super poder) e que por isso salvam a sério! O infinito será sempre todas as potencialidades daquela criança, todos os sonhos, todas as suas competências, toda a capacidade de ir mais além...

 Toda esta reflexão parte do que tenho assistido nestes últimos anos e de algumas experiências recentes com mães e (pais) que não amam, mas possuem... que pensam em si mesmos e os filhos são os seus objectos de pertença, que "servem" para consolar, para preencher vazios e carências afectivas que tem um carácter transgeracional, gerando padrões sucessivos de negligência e mau trato... 

Porque fazer de um filho um prolongamento de nós mesmos é mau trato...Um filho é um ser independente, mas ainda assim dependente do nosso amor, da nossa capacidade de dar... "TER" um filho a pensar e si mesmo  não é amor, é uma forma de posse... Não ter disponibilidade para amar e ainda assim querer colocar, por orgulho, um filho numa no man´s land, onde  há frieza e onde a criança não tem estabilidade, onde não consegue ler os sinais na mãe que lhe permitem descodificar o mundo, as suas virtudes e os seus perigos é mau trato... 

Colocar a criança on ice, à espera de que um dia se consiga resolver as mágoas e angustias que alguém que  devia ter cuidado e amado implantou no coração de algumas crianças que se tornaram adultos á força, ou forçosamente cresceram para sobreviver, é negligenciar...

Posto isto, temos de olhar para a vinculação, como factor imperativo que contribui para o desenvolvimento saudável da criança e do adulto. A relação privilegiada, entre mães e filhos e entre pais e filhos, entre Progenitores (vistos como aqueles que protegem), é a condição sine qua non para o bem-estar, para estar seguros, enraizados mas, tal como a árvore que tem raízes seguras, poder crescer de forma imponente e audaciosa para o céu dos nossos sonhos... 

Na vinculação, o outro é visto como uma base segura, a partir da qual o indivíduo pode explorar o mundo e experimentar outras relações, assim há que quebrar padrões de vinculação inseguros, ambivalentes... Há que intervir com as famílias para quebrar ciclos de "amor - posse". Neste "amor-posse", cria-se um mundo onde as crianças se "reclamam", onde são "precisas" para nos sentirmos bem, onde não as queremos mas não as"damos" porque são do nosso sangue, são "minhas"... Há que intervir para garantir às crianças que são amadas e sobretudo respeitadas! Sim, porque as crianças, sentem, pensam, sofrem... Captam os sinais que são ditos em silêncio e percebem, muito antes e para além das palavras, o que é o amor...

Tenho o privilégio de ter conhecido crianças que me falaram tantas vezes com um simples (complexo) olhar... Crianças que sabem distinguir o amor do falso amor...Umas que sabem que estão sozinhas e que esperam que alguém as "salve" dessa solidão, outras que estão magoadas e que pedem colo e nos tocam tão desesperadamente, como se o calor do nosso corpo pudesse consolar um pouco da sua tristeza, outras que nos olham e sorriem com o olhar,   porque têm confiança em nós, confiam acima de tudo que  teremos um gesto espontâneo para lutar com toda a força para que elas tenham um colo seguro; Outras que chamam mãe ou pai, aleatoriamente, a todos, para que haja apenas um que responda  convictamente com a voz do coração "estou aqui"; Outras que acreditam, apesar de todas as provas de "não amor", que o seu amor pode mudar tudo... 

Em suma, tenho conhecido muitas crianças e muitas mães...

E só espero que nós técnicos, tenhamos sensibilidade e discernimento para distinguir o AMOR, do amor posse, do "Não amor" e que não compactuemos com maus tratos e negligências não dizíveis, não visíveis mas que deixam marcas para a vida e que muitas vezes impedem estas crianças de serem adultos capazes de amar e ser amados.....