Quantos clássicos podem dizer que tiveram na sua genealogia um dos elementos mais importante da Psicanálise? Certamente poucos ou nenhum. Nascido de um pesadelo, a obra-mestra de Robert Louis Stevenson “O Estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde” é até os dias atuais um clássico da literatura Psicológica, pois aborda com grande maestria e forte clima de suspense os conflitos da dicotomia psicológica do ser humano.

Os clássicos não necessariamente nos ensinam algo que não sabíamos, às vezes descobrimos neles algo que sempre soubéramos ou que sempre esteve em evidência durante toda nossa vida, mas não o percebemos. Assim foi com O Alienista do autor Machado de Assis e também com o romance O Estranho caso de Dr. Jekyll & Mr. Hyde.

Ao ler essa obra-prima da Literatura mundial, facilmente nos reconhecemos nos personagens, ora na figura do simpático e amável Dr. Jekyll, ora no temido e perigoso Mr. Hyde. A identificação produzida pela as alegorias que fascinaram leitores ao redor do mundo simbolizam os conflitos internos existentes em cada um de nós, entre o bem e o mal e entre a realização dos desejos e os valores morais.

Porém, esse Magnum Opus só deixaria de ser apenas mais um best-seller da Literatura para se torna um símbolo da inteligência linguística e uma das principais obras que antecederam os conhecimentos psicológicos, quando Freud publica suas teorias sobre a topografia do aparelho psíquico humano que asseguram um “tom” de veracidade a obra.

No presente estudo, estará sendo analisada a problemática proposta pelo livro “O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde” da dicotomia da personalidade humana e suas implicações sob a panorâmica da Psicanálise.

Mr. Hyde: a imagem do “Isso” (id)

“O homem será um dia caracterizado pela sua constituição multiforme, incongruente, com suas facetas independentes umas das outras” Dr. Jekyll p.72

Curiosamente o mesmo ramo da ciência se faz protagonista das descobertas e inovações sobre personalidade humana, ora na Literatura ficcional, ora na realidade do mundo científico o papel da medicina foi revolucionário para seu tempo. Tanto Jekyll quanto Freud foram incrivelmente ousados em conceber ideias tão inovadoras para uma época marcada por um profundo e enraizado discurso fisicalista, na qual não cabiam explicações sobre a funcionalidade da mente humana.

Compartilhando não apenas a mesma atividade profissional, mas também interesse em comum pelo funcionamento da mente humana, cada um a sua maneira tenta desvendar os segredos da mente. Dr. Jekyll cria um composto químico para eliminar as facetas do mal que existem dentro de cada um de nós, enquanto Dr. Freud elabora uma complexa teoria sobre o funcionamento do aparelho psíquico humano.

Na metáfora da vida a fantasia e a realidade não apenas se complementam, se fundem, misturam-se, tornam-se capazes de dar vida as mais célebres ideias. Com a magia da metáfora Robert Louis Stevenson dá vida a um personagem que anteciparia de forma majestosa e celebre uma das teorias mais importantes da personalidade humana que iria não apenas mudar o mundo, mas também seria responsável por mudanças ocorridas no ego coletivo do ser humano.

Edward Hyde surge não apenas como um personagem alegórico, ele personifica de fato o que Freud viria a chamar algumas décadas mais adiante de “Isso” (id). Regido pelo princípio do prazer, o id é a constituição da versão pecaminosa e amoral do ser humano, revela uma porção do ser humano totalmente aversivo aos nossos padrões morais e éticos, — em suma um ser primitivo sem freios — e assim como Hyde, está totalmente oculto e inconsciente á nossa percepção.

Nas palavras do próprio Henry Jekyll, Hyde seria: “Este ser que eu extraíra da minha própria alma e atirara sozinho no caminho do pecado, era por natureza, maligno e infame; todas as suas ações e pensamentos o denunciavam: sorvendo a orgia com avidez bestial, insensível como uma criatura de pedra”

Ao que muitos pensam, viver sob a ignorância de uma personalidade tão maléfica quanto o id pode ser muito prejudicial. Freud afirmava que não é a razão, a consciência, que controla a vida humana, mas nosso inconsciente, e afirmava ainda que o único meio que possuímos para dominar nossos instintos é a inteligência, caso contrário, viveríamos sob os fortes impulsos de nosso Hyde particular.

Dr. Jekyll na civilização

Não nos sentimos nada á vontade em nossa civilização atual

(Freud- O mal-estar na Civilização p. 36 [276])

O “casamento” entre o clássico “O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde” e a Psicanálise não se constitui apenas em uma visão fascinante do comportamento humano, mas conduz o leitor também á uma reavaliação da nossa vivência na civilização. Um matrimonio perfeito entre a relação homem-sociedade.

Se a civilização é assim ameaçada pela agressividade e pelos comportamentos destrutivos e monstruosos de nosso Hyde particular, quais são os meios de que dispõe a civilização para inibi-lo? Trata-se de uma formação psíquica que Freud denominou de “supereu” — Representado na obra por Dr. Jekyll — construída a partir das internalizações de padrões de moralidade e ética adquiridos pela adesão da civilização em nossas vidas.

Para Freud o id direciona o indivíduo na busca de pensamentos e comportamentos prazerosos, porém encontra o seu maior e mais poderoso empecilho na civilização. Segundo ele, a civilização exige o sacrifício e a renúncia aos impulsos pulsionais. A partir dessa “renuncia cultural” se evidencia o que Freud chama de “mal-estar na civilização”.

Em 1651, em seu livro “O Leviatã”, Thomas Hobbes descreve a natureza humana assim: “Ao homem é impossível viver quando seus desejos chegam ao fim, tal como quando seus sentidos e imaginação ficam paralisados”. Para a Psicanálise a felicidade é um contínuo progresso das satisfações e realizações dos desejos, porém a civilização está alicerçada na renuncia dos impulsos, tornado os indivíduos da sociedade infelizes e propensos ao mal-estar.

Portanto a impossibilidade da civilização tornar o homem feliz está ligada á natureza humana, e para explicar isso Freud recorre á sua segunda teoria das pulsões que estabelece a existência de um conflito fundamental entre pulsão de vida (representada por Dr. Jekyll) e pulsão de morte (representada por Hyde).

Na obra presenciamos como a civilização fracassa em proporcionar a felicidade que se espera dela no momento em que Dr. Jekyll diz: “Sim, preferi ser o médico, embora mais velho, embora desgostoso, mas rodeados de amigos e acalentado honestas esperanças; disse adeus á liberdade, á relativa mocidade, aos pés ágeis, coração leve e prazeres clandestinos que gozara sob o disfarce de Hyde”

Em “O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde”, Robert Louis Stevenson não apenas coloca a problemática do mal-estar na civilização, mas também a dificuldade de se tornar feliz habitando em uma civilização em que a renuncia dos impulsos e desejos é exigência da aceitação e da ordem social. Além disso, reexamina considerações a respeito do sentimento de culpa, sua relação com o supereu, as relações de ambos com a cultura e com a renúncia progressiva dos instintos que é um dos fundamentos do desenvolvimento da civilização humana.

 

Referências:

QUINODOZ, Jean-Michel. Ler Freud: Guia de leitura da obra de S. Freud. Porto Alegre: Artmed, 2007

TALLAFERRO, Alberto. Curso básico de Psicanálise. 3 ed. São Paulo: Martins fontes, 2004