Nesta época de férias, de viagens e lazer, quase que nem se pensa na realidade atual da sociedade, mas não podemos deixar de constatar e de refletir sobre o que nos rodeia.

Digamos que, nas sociedades democráticas, o homem pode ser considerado vítima de uma crise de valores, a qual poderá andar de "mãos dadas" com uma crise económica global. O nível de desemprego dos jovens, as crescentes diferenças sociais, as guerras, a fragilização da figura paterna e das figuras de autoridade, as alterações nas relações inter-pessoais e nas estruturas familiares, e a própria violência doméstica, confinam o individuo a uma vida cada vez mais egocentrista e individualista.

Vivemos ao "sabor do vento", porém desamparados por não se saber o que nos aguarda. Se olharmos para a nossa realidade, creio que certas regiões do nosso país estão "entregues a elas próprias", como se tem vindo a verificar nalgumas regiões como Trás-os-Montes, e Baixo-Alentejo, estando marcadas por “situações graves” de analfabetismo, desemprego e desertificação.

Verifica-se que o valor médio das pensões de velhice, invalidez e sobrevivência é considerado um dos mais baixos da União Europeia, e as taxas de desemprego no Alentejo ultrapassam os 20%, fazendo parte de um dos grupos mais desfavorecidos em matéria de pobreza e exclusão social.

Vivemos um estádio anterior ao de “morte social”, ostentando a maioria destas regiões características muito pobres, como o défice de infra-estruturas e o peso ainda relevante do trabalho agrícola, sendo marcadas por situações graves de baixas qualificações escolares (a taxa de analfabetismo em 68 concelhos é de 17,26% aproximadamente).

Os problemas atingem proporções preocupantes que afetam não só as gerações adultas mas também as próximas gerações, pelo abandono destas zonas, por parte dos mais jovens. Por isso, cumpre-nos estar atentos, porque este fenómeno pode não ser senão o estádio anterior ao da desertificação e “morte social” destes territórios”.

Esta situação é importante na medida em que nos faz pensar, refletir sobre questões fundamentais para a nossa prática, enquanto psicólogos, mas que se volatizam muitas vezes num discurso teórico dissociado da realidade.

Fala-se em crise - social, económica - sendo esta uma palavra que se impõe em todos os tempos e em todos os universos. Ninguém procurou estar mais próximo do homem que Freud (basta-nos a leitura do seu texto: “O mal-estar na civilização”, para percebermos a sua extrema acuidade e sensibilidade) Porém, a verdade é que seguimos pouco ou mal o mestre (Hobsbawm, 1995).

Segundo Eric Hobsbawm (1995), o século XX recebeu a avaliação do século, cujo número de homens mortos ou abandonados à morte por decisão humana foi um dos maiores de toda a história da humanidade. Foi o século mais assassino, o século das maiores fomes e catástrofes humanas. Referindo-se ao século XX, ele diz-nos que: “A destruição do passado, ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam a nossa experiência pessoal à das gerações passadas, foi um dos fenómenos mais característicos e lúgubres do século".

Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que viveram. Por isso, "os historiadores, cujo ofício é lembrar o que outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca no fim do segundo milénio”.

Diz-nos ainda Hobsbawn (1995) que a característica mais impressionante dos nossos dias é a tensão entre esse processo de globalização cada vez mais acelerado e a incapacidade conjunta das instituições e do comportamento coletivo dos seres humanos de se acomodarem a ele.

Todos estes acontecimentos fazem-se acompanhar de profundas alterações ao nível dos comportamentos sociais e individuais. Ao caminharmos para uma globalização seguimos uma trajectória cada vez mais dirigida ao individualismo.

De acordo com Rousseau, o homem que vive no inferno permanente de ter que prestar contas ao outro sabe que a busca de ser ele próprio ou de conhecer-se implica o reconhecimento do outro. Ainda que, no século XII, Angelus Silesius tenha afirmado ”Não sei o que sou, não sou o que sei”, Rousseau, vai definitivamente marcar essa multiplicidade na unidade de Eu, ser um em sendo vários, e tornar legitima uma multiplicidade dentro de uma unidade.

Para Rousseau, uma personagem infinitamente muito menos misericordiosa que Deus introduz-se no diálogo de cada um consigo próprio: o outro, “o outro esse olhar, esse discurso amargo que me dissocia da minha própria existência”. Rousseau inaugura a figura profundamente moderna do homem ridículo, de uma sentimentalidade fraca, feliz com qualquer coisa, à mercê das extravagâncias de seu humor (Rousseau citado por Bruckner, 1996).

Este autor apresenta-nos uma análise do homem contemporâneo, que podemos sintetizar da seguinte maneira: o homem moderno, que procura extrair de si mesmo as razões de ser e os seus valores, quanto mais livre se propõe ser, livrando-se da angústia, a invocar uma razão perversa que o mantém sob a sua autoridade. Uma obsessão por uma maquinação, uma desordem premeditada, um factum cruel. A vitória do indivíduo sobre a sociedade carrega o peso de uma exigência desmedida. As liberdades de pensamento, de escolha e opinião não se deixam acontecer sem um pesado tributo: cada qual passa a ser o responsável por si, assume a tarefa de construir-se e encontrar um sentido para a própria existência. As crenças, os preconceitos e os costumes que protegiam contra o azar e o imprevisto, a obediência às leis do grupo e da comunidade propiciavam a tranquilidade (Bruckner, 1996).

Não há como culpabilizar um fator externo. No momento em que o homem sente que a condução da sua vida depende dele próprio, surge então a consciência infeliz, do homem contemporâneo. O homem culpa-se a si próprio, e carrega dentro de si o sentimento da insuficiência. Impossibilitado, na maior parte das vezes, de atingir um ideal que construiu para si a partir de uma liberdade, o homem atual permanece muitas vezes mais prisioneiro das suas perdas do que dos seus ganhos. No passado, a melancolia era característica do homem excepcional, do génio; hoje a depressão é a maneira como se exprime a “democratização da excepção” (Ehrenberg, 1998).

Esse homem, preso às exigências de um ideal que o alimenta e, ao mesmo tempo, o destrói, vive o conflito entre o que efetivamente é capaz e o que verdadeiramente deseja. Sofre com as exigências de um ideal do EU e as possibilidades do seu EU fragilizado, que se presentifica na constituição e manifestação do seu narcisismo. É Freud que nos dá a conhecer a melancolia no campo das neuroses narcisistas. o Oomem atual é um candidato fácil às depressões ou neuroses do narcisismo (Ehrenberg, 1998).

Para concluir, o jovem de hoje, afastado das tradições, eliminando rituais, compelido para uma libertação da família, onde a figura paterna fragilizada contrapõe-se a uma mãe vacilante nas suas conquistas de autonomia, defronta-se com uma sociedade que não lhe abre espaço e não lhe oferece respostas às suas aspirações de realização e autonomia. Assim, o nosso jovem, defronta-se com o enigma do seu futuro, na medida em que, na sua grande maioria, não recebe pré-traçadas as linhas do seu destino.

 

Referências Bibliográficas

Bruckner, P. (1996). La tentatión de la inocencia. Tradução de Thomas Kauf. Editorial Anagrama, Barcelona.

Ehrenberg, A. (1998). La Fadigue d´être soi: Dépression et societé. Éditions Odile Jacob, Paris.

Hobsbawm, J. (1995). Era dos extremos: O breve século XX. Tradução de Marcos Santarrita, São Paulo.