Partiu o homem que tinha seis dedos numa das mãos. Há quem diga que a morte é coisa para os fracos, que os génios nunca morrem, apenas desaparecem, que se incorporam numa outra dimensão cósmica. Foi certamente o que aconteceu ao homem dos seis dedos.

Deambulava há muito tempo pelas ruas da Maia, procurando consolo e amparo nos cafés e nos lares que frequentava amiúde. Pedia, mesmo falando pouco, sobretudo, carinho, amor e atenção. Raramente era escutado. Era sempre e eternamente o “bêbado da Maia”, o incompreendido, a presença constante e estranha ao mesmo tempo. Quando o FC Maia Lidador jogava em casa, lá estava o homem dos seis dedos a assistir à segunda parte, condição para se furtar ao pagamento do bilhete do jogo. Gostava de futebol. Nunca o disse, falava pouco. O ir aos jogos era mais um pretexto que encontrava para estar com gente, para ver pessoas unidas em torno de alguma coisa, deixando-lhe a esperança, quase sempre vã e inconsequente, de que pudesse, também ele, fazer parte dessa comunhão domingueira em torno do futebol cá da terra se o deixassem. Tenho a certeza, a minha que é que para aqui importa, de que era isso que lhe habitava o coração.

O homem dos seis dedos podia ter sido muita coisa na vida mas para mim foi sempre padeiro. A sua limitação física, traduzida no facto de ter seis dedos numa das mãos – o sexto vinha de um dos polegares – tornava este homem único no que fazia. Corria um boato, não sei se verdade se mito, de que alguns pães que fazia tinham a marca de seis dedos na carcaça, espécie de assinatura do homem perante a sua obra de arte. Porque todas as imperfeições contêm, em si mesmo, marcas de génio em potência. Acontece que só poucos é que conseguem vislumbrar nas suas limitações a possibilidade plena da arte. Este homem, simples e humilde, padeiro de profissão, que deambulava pelas ruas da Maia pedindo carinho e atenção, descobriu a sua - era ali entre os fornos, as massas, a farinha e as batas brancas que ele transformava aquilo que o inferiorizava em obras de criação pura e divina. Só por isto, por esta arte, este homem não morreu, jamais morreria.

Depois veio o álcool para fazer companhia à solidão. Eram várias as vezes que o homem dos seis dedos aparecia no chão das ruas, inconsciente. Nessas alturas chamávamos ajuda médica. Só admitia tal ajuda pois o seu estado de inconsciência levava a que não percebesse o que lhe estava a acontecer. Sempre que se encontrava sóbrio, coisa rara nos últimos tempos, e lhe acenávamos com a palavra “médico” ou “psicólogo” para endireitar a vida, lá vinha a sua ira toda ao de cima:

- “Não quero, foda-se!!” – respondia prontamente.

E que ninguém lhe voltasse a falar nisso novamente, assunto encerrado. Acho que o homem dos seis dedos encontrava ali no álcool a companhia e o aconchego interior que o Mundo, com a sua insuportável aspereza, não lhe proporcionava. E, por muito que isso custasse a entender, tirar-lhe o vinho, que o matava aos poucos, era como fuzila-lo no imediato. O homem dos seis dedos não queria morrer, queria apenas e só ir morrendo.

Não foi, por isso, estranho para mim quando soube da sua morte. Apareceu morto. Nada mais será relevante além disso. Apareceu morto. A sua morte traduz aquilo que foi durante a vida: alguém que viveu sempre paredes-meias com a solidão e com a incompreensão dos demais. Acabou-se o homem dos seis dedos. Apareceu morto. Acabou o seu deambular pelas ruas quando estava embriagado. Apareceu morto. Acabaram-se as suas visitas ao estádio de futebol para ver o Maia jogar. Apareceu morto. Acabou-se tudo. Ah, e acabaram-se também os pães com a marca dos seis dedos na carcaça: qualquer semelhança com isso é pura coincidência. Apareceu morto, isso basta. O Padre Américo dizia num dos seus brilhantes textos, carregados de reflexões humanísticas e fraternas, que mesmo pobre um homem não deixa de ser homem. E este, sozinho, alcoólico, abandonado e triste, verdadeiro Caravaggio das padarias nacionais e internacionais, Miguel Ângelo de seis dedos numa das mãos, esse, meus caros, era um dos grandes. Até sempre companheiro.