“Nada vai permanecer/No estado em que está/Eu só penso em ver você/Eu só quero te encontrar/Geleiras vão derreter/Estrelas vão se apagar/E eu pensando em ter você/Pelo tempo que durar/Coisas vão se transformar/Para desaparecer/E eu pensando em ficar/A vida a te transcorrer/E eu pensando em passar/Pela vida com você” (Pelo tempo que durar. Marisa Monte)

 

A letra desta canção da cantora e compositora popular brasileira Marisa Monte é o tema de nossa análise de hoje. Por meio dela, somos levados logo de início a reconhecer nossa transitoriedade. O ciclo é igual para todos, alguns o interrompem antes de passarem por todas as fases, mas o modelo é o mesmo desde sempre: início, meio e fim. Nascimento, amadurecimento e falecimento. “Nada vai permanecer no estado em que está”, a profundidade destes versos é tão grandiosa que nos remete ao âmago do pensamento filosófico pré-socrático, quando Heráclito, ainda em 500 a.C. e, depois seus seguidores, já anunciava que tudo encontra-se em constante trânsito, isto é, transformação. A perenidade não é nada senão uma vontade humana de petrificar o tempo e de imortalizar o mortal. É fato que na ordem biológica, por simples dedução antitética, a vida enuncia morte, mostrando que tudo que respira, um dia deixará de fazê-lo.

Nada vai permanecer, pois os estados mudam, a vida e o ser que a ocupa também se modificam todos os dias. A água é um exemplo fulcral, vejamos: quando se exclama “geleiras vão derreter”, cai-se na própria lógica da biosfera em que a água passa de líquida à gasosa, de gasosa à sólida, de sólida à líquida num ciclo que se prolonga, isto é, o ciclo se repete, mas o sujeito que protagoniza-o nunca está no mesmo estado, assim também funciona conosco.

Nosso estado físico se altera com certa continuidade, mesmo que de um dia ou de uma semana a outra não percebamos grandes alterações, mas quando falamos em níveis cronológicos, em escala macro, nitidamente notamos mudanças. Se o físico que é a casca do ser, modifica-se com certa frequência, o que podemos imaginar do conteúdo interno, o eu mesmo? Nada permanecerá, nem eu, nem tu.

A cantora continua sua prodigiosa poesia cantada, aludindo ao cosmos, dizendo que até as estrelas, fora do ciclo-globo terrestre e de sua lógica orgânica, vão se apagar. Nem elas são eternas, caem, riscando o céu com sua rota cadente, com um brilho único reluzente, anunciando seu fim glorioso.

As “coisas vão se transformar, para desaparecer”, assim nós nos transformamos diariamente de sou para fui, e desaparecemos nesse ínterim entre presente e passado. Por que se transformar para desaparecer? A vida, vista assim de fora, não teria nenhum sentido racionalizável. Transforma-se algo para que fique, isto é, não desapareça. Mas observemos de novo a lição da natureza: uma ave para nascer, precisa se transformar, o ovo precisa ser quebrado. Para que a ave seja ave é preciso que o ovo desapareça e a deixe simplesmente ser. Assim também com as borboletas, numa metamorfose ainda maior. A larva desaparece, o casulo se destrói a fim de que a essência de borboleta se converta em borboleta mesma. Tudo que se transforma, portanto, pressupõe um desaparecer. Nós igualmente.

Para que eu tenha bisnetos é preciso, e quase certo, que eu desapareça logo e mesmo para que eu seja um novo homem (não um homem novo), é preciso desaparecer com o velho. O tempo é o grande responsável por esse truque sensacional que a mágica da vida nos impõe. Vamos tirando as roupagens e nos transformando cada vez mais no que realmente somos, até que chegada a hora final quando nos olharmos no espelho e encararmos nossa própria imagem, outrora, bela e jovial, agora desaparecida, poderemos dizer que nos reencontramos no fim da vida. O tempo nos faz despojar-nos de praticamente tudo, e a última coisa que achamos que seria eternamente detida e resistente é a vida, porém também ela não é páreo ao tempo. A perda da locomoção, da estética, da visão, da audição é apenas um anúncio. O senhor de todos e de tudo nos diz que o momento do despojamento final se aproxima e que para o mundo continuar se transformando é preciso desembarcar, desaparecer.

A última parte da música nos diz: “e eu pensando em ter você pelo tempo que durar/e eu pensando em passar pela vida com você”. O amor indubitavelmente é uma virtude, que até o Livro dos Tempos (Bíblia, para alguns) classifica como invencível, infindável e infinito. Diz um dos autores desse Livro que no fim, a fé e a esperança caducarão, mas o amor permanecerá. Nesse estágio provavelmente, o corpo e a vida já terão caducado há muito tempo, antes mesmo da desconhecida das gentes (morte) ter chegado à fé e à esperança.

Acabo por ser tendente a crer que o amor pode ser eternizável, não eterno propriamente. Outrossim, acredito que poetas compositores não estejam falando necessariamente deste sentimento, mas sim da vida biologicamente conhecida e naturalmente passageira. Assim, pelo tempo que durar o quê? A vida.

Agora, é possível existir amor sem vida, da mesma forma que vida sem amor? Se a vida não é eterna e se considerarmos que não exista amor sem vida, como poderemos dizer que o amor é eterno? É simples e complexo ao mesmo tempo. Simples, porque a vida eterna é o resultado de uma vida que eternize o amor, por isso que o amor não é eterno ativamente, senão é eternizável pela vida. E é complexo, porque quando a vida se vai, onde fica o amor, se de fato, é ele quem sobra? O amor tanto mais eterno se torna quanto mais terna a vida que o eterniza o for. Daí, quando alguém que nos ama muito se vai, vem logo de súbito a saudade, nada mais do que a primeira carta do amor. A saudade aparece quando a vida é despojada e o amor, eternizado.