Índice

Introdução

Conhecimento da realidade do abuso e agressão sexuais

Definições e concepções do abuso sexual

Factores associados à presença do abuso sexual
 

1ª Parte
   1. Variações das percepções de abuso sexual e consequente comportamento abusivo
        As diferenças nas percepções do abuso sexual
        A Teoria da Socialização do Papel Sexual
        A Hipótese da Atribuição Defensiva
        A "má comunicação" entre os sexos
        Outras variáveis que afectam as percepções de abuso sexual
 
2ª Parte
   2. Diferenças e semelhanças entre os sexos
        As diferenças de género na sexualidade: algumas teorias distintas
        Os papéis de género e as atitudes
        A Teoria do Estatuto Sexual e a “Cultura de Violação"
3ª Parte
        A “Token Resistance”
        Expressividade e Instrumentalidade
        Abuso psicológico e abuso físico
        As agressões directa e indirecta
 
 4ª Parte
   3. Estilos de vinculação e a agressão e abuso nas relações

   4. Poder, domínio e conflito nas relações
 

5ª Parte
Instrumentos utilizados na investigação neste domínio

Reflexões finais

Bibliografia

6ª Parte

 

INTRODUÇÃO

O “Abuso Sexual” é um conceito que, tanto empiricamente como ao nível da investigação, suscita muitos e diferentes interesses.

No domínio empírico, e em jeito de justificação da escolha deste tema, sempre me surgiram numerosas questões directa ou indirectamente associadas a este conceito. Com as grandes mudanças que se têm observado nos últimos anos ao nível dos papéis sociais e sexuais, quase sempre operadas ao abrigo do movimento feminista e da crescente visibilidade do intrusamento feminino em domínios sociais, relacionais e profissionais, espera-se que se também se tenham verificado mudanças no que diz respeito às relações heterossexuais nas diversas díades (diversas em função dos diferentes graus de investimento da parte dos seus elementos e da sua duração, nomeadamente relações de primeiro contacto, namoro, noivado e casamento).

Neste sentido, considero importante compreender o fenómeno do “abuso sexual” no seu sentido mais alargado, já que reconheço também a necessidade de se começar a levantar pistas visando a formulação de molduras espistemológicas, teóricas e metodológicas complementares (ou mesmo alternativas) às utilizadas na investigação, e as quais bebem, inevitavelmente, das mudanças supracitadas.

Além disso, a problemática do “abuso sexual” alargado é difícil de circunscrever, estudar e compreender, já que para ele concorrem múltiplos conceitos e múltiplas variáveis, cuja consideração na literatura e investigação sofre sérias oscilações. Desta forma compreende-se que este trabalho queira "construir" uma compreensão multifactorial do abuso sexual em díades heterossexuais.

Passo, então, a colocar algumas questões em jeito de provocação:

Ao reflectirmos sobre estas questões (e muitas outras que, concerteza, surgirão ao leitos após estes parágrafos) rapidamente constatamos a necessidade de se efectuar um trabalho como o presente, desenvolvido em jeito de “viveiro de ideias” sobre o abuso sexual e, espero, ponto de partida (ou de passagem) para investigadores.

 

CONHECIMENTO DA REALIDADE DO ABUSO E AGRESSÃO SEXUAIS

O conhecimento da realidade do abuso sexual é um processo complexo e algo tumultuoso mas digno de grande atenção e interesse. Em virtude, por um lado, da presença de múltiplas variáveis de cariz relacional, sócio-cultural e institucional e, por outro, das carências teóricas, multiplicidade conceptual e falhas metodológicas ao nível da investigação, este é um conhecimento que se faz a diferentes velocidades e por caminhos diversos.

Outro motivo bastante significativo para a discrepância entre incidência real e oficial dos valores de abuso sexual poderá ser o facto das pessoas terem diferentes concepções da agressão sexual (Hutchinson et al., 1994). Neste sentido, o comportamento sexualmente agressivo ou abusivo poderá ser subestimado porque, tanto os abusadores/agressores como os abusados/vítimas, poderão não considerar os comportamentos abusivos ou agressivos como tal. Ainda, comportamentos onde não existe penetração não são normalmente considerados como actos de agressão sexual (ibid.).

Outra factor levantado (e intimamente ligado ao anterior) é a questão do grau de divulgação das situações de abuso, agressão e violação sexuais na população em geral. De facto, DeSouza e Hutz (1996) levantaram esta possibilidade ao observarem níveis de relato bastante diferentes nos contextos universitários Brasileiros e Norte-Americanos.

Outro factor contribuinte para as dificuldades do conhecimento da realidade agressiva e do abuso sexual relaciona-se com variáveis conceptuais na investigação.

O estudo da agressão e abuso femininos como fenómenos em si só muito recentemente começou a receber a devida atenção. Buss (1961; cit. in Björkqvist, 1994) afirmou que as mulheres são tão raramente agressivas que a agressão feminina não vale a pena ser estudada. A agressão e o abuso eram, segundo a perspectiva da altura, fenómenos tipicamente masculinos. Ainda, Frodi, Macaulay e Thome (1977; ibid.) reviram 314 estudos acerca da agressão humana em díades e detectaram que 54% destes eram relativos aos homens e apenas 8% às mulheres.

Björkqvist e Niemelä (1992; ibid.) salientaram que a maior parte dos estudos acerca da agressão e abuso humanos foram conduzidos por homens; e mesmo quando as mulheres foram objecto de estudo a agressão foi operacionalizada de formas tipicamente masculinas, utilizando-se frequentemente os conceitos de agressão física e abuso físico.

Revisões mais recentes acerca das diferenças sexuais na agressão e abuso tais como as de Hyde (1984; ibid.), e Björkqvist e Niemelä (1992; ibid.), são mais cautelosas e mencionam as diferenças sexuais no que diz respeito à sua qualidade, em vez da sua quantidade.

Por último, mas não menos importantes, são de mencionar as “omissões” e “insuficiências” metodológicas presentes na investigação, as quais não parecem conseguir ultrapassar algumas das dificuldades associadas ao estudo do frágil conceito de “abuso sexual”, sendo, de resto, salientadas por alguns autores.

A utilização de vinhetas (Cartar et al., 1996), de descrições de casos hipotéticos, e o recurso ao auto-relato são fortes limitações da investigação observada. Isto porque os “cenários” tendem claramente a ser não equivalentes à vida real (ibidem), o que força a maioria dos sujeitos a lidar com situações como sendo puramente hipotéticas, perdendo-se, desta forma, a riqueza das experiências realmente vivenciadas pelos sujeitos, ou criando-se condições para se contemplarem falhas de categorização da informação pelos sujeitos na investigação.

 

DEFINIÇÕES E CONCEPÇÕES DO ABUSO SEXUAL

Quando se fala em "abuso sexual" a primeira ideia que nos vem à cabeça é, provavelmente, a de "violação" (Shotland e Goodstein, 1995). Isto acontecerá em virtude da gravidade deste acto, o qual implica dor física e psicológica, mas também devido às representações que temos do conceito de abuso sexual, principalmente devidas às mensagens fortes e sensacionalistas frequentemente transmitidas pelos mass media, e às influências sociais das quais somos vítimas nos nossos contextos de vida. Além disso, o abuso sexual (AS) é categorizado por quase todos nós segundo uma tríade de critérios: o consentimento (ausência de), a violência/agressão e o sexo. Compreende-se, então, a divulgação do conceito de violação, já que este é frequentemente usado para referir as situações de abuso sexual (relacionamento de cariz sexual não consentido) onde o homem concretiza a cópula e/ou sexo anal junto de uma vítima do sexo oposto ou do mesmo sexo.

Outro conceito associado, não só mas também, ao abuso sexual é o conceito de "agressão" (no presente caso "sexual"). Na representação que temos de "agressão" são privilegiadas as estratégias mais físicas de se agredir alguém. Contudo, essas estratégias são apenas parte das estratégias directas (Björkqvist et al., 1992; cit. in Björkqvist, 1994) de que dispomos, humanos, para agredir alguém. Quer-se com isto dizer que possuímos também estratégias verbais de agressão passíveis de agredir e causar tanto ou mais dano a outrém. Aliás, estes conceitos parecem constituir critérios de (alguma) diferenciação nos comportamentos agressivos femininos e masculinos. Estes "estilos agressivos" são também sujeitos de mudança desenvolvimental durante o percurso de vida.

Outra forma de agressão, esta mais sofisticada e complexa, e dependente do desenvolvimento de determinadas competências sociais, é a agressão indirecta (ibidem). Trata-se de uma estratégia que permite ao agressor causar dano a um indivíduo-alvo mesmo sem ser identificado.

Um outro termo que é discutido quando se fala de AS é o "assédio sexual" (Katz et al., 1996; Charney e Russel, 1994; cit. in Katz et al., 1996). Esta forma de assédio consiste na perseguição sexual ou abuso sexual repetitivos, não desejados, e inerentemente coercivos onde existe uma discrepância de poder entre a vítima e o abusador. Trata-se de um conceito normalmente aplicado a relações e situações de trabalho, onde se verificam mecanismos de poder não observáveis noutras situações. Segundo Fitzgerald (1990; cit. in Stockdale, 1993) existem 5 formas de “assédio sexual”: assédio de género, sedução sexual, suborno sexual, coerção sexual, e imposição sexual.

Como é óvio, muitas situações de abuso sexual não podem ser contempladas por este conceito, e muitos comportamentos caem numa “zona cinzenta”. Contudo, e tendo em conta a definição deste tipo de abuso, ele também pode ser utilizado noutras esferas que não a profissional (nomeadamente a esfera a que este trabalho se dedica).

O contributo de Fitzgerald para este trabalho relativo às "5 formas de assédio sexual" envia-nos para outro dos conceitos associados ao abuso sexual: a coerção sexual. Para Struckman-Johnson & Struckman-Johnson (1991; cit. in Cartar et al., 1996) a coerção é uma forma de pressão e, logo, abuso a qual se apresenta num continuum que vai desde a pressão verbal persistente, passando pela estimulação sexual, e até ao uso da força física. Para estes autores, homens e mulheres podem ser tanto perpetradores quanto alvos das estratégias de coerção nas relações, sejam estas casuais ou prolongadas.

Para terminar, e tendo por objectivo uma reflexão mais enriquecedora acerca do “abuso sexual” resta falar do conceito de abuso psicológico, tal como o abuso físico, como uma componente daquele conceito.

Para Hoffman (1984; ibid.) o abuso psicológico consiste no "comportamento suficientemente ameaçador para a mulher de forma que esta acredita que a sua capacidade para trabalhar, para interagir na família ou na sociedade, e para gozar de boa saúde física e mental foi e/ou poderá ser ameaçada” e “ser-se abusado psicologicamente significa que o namorado/marido usa repetidamente uma ou mais de várias tácticas verbais e/ou não verbais (ver anexo 3) tendo como resultado a mulher sentir-se frequentemente magoada, ou receosa, ou sentir-se mal acerca de si própria, após o uso destas tácticas”.

É nítido que falar-se de “abuso psicológico” é bastante diferente de falar-se de “abuso sexual”. Contudo, se observarmos algumas destas tácticas facilmente nos apercebemos que existe alguma intersecção entre os abusos psicológico e sexual. É o caso da comunicação verbal hostil, da reduzida expressão de ternura, do desrespeito e desconsideração pelos desejos ou sentimentos do outro, da negação das percepções do outro, ou do compromisso e investimento inconsistentes na relação, entre outros (Hoffman, 1984; ibid.). Para compreendermos melhor esta argumentação é dedicado um item ao abuso psicológico neste trabalho.