Resumo

Em consequência da incerteza e da imprevisibilidade que actualmente rodeia o mercado de trabalho, em que a relação entre formação, profissão e emprego é cada vez mais precária e incerta, os indivíduos vêm-se confrontados, ao longo da sua vida activa, com problemas complexos relacionados com o ingresso e permanência no mercado de trabalho. Face a este aumento da incerteza em torno dos itinerários profissionais, a orientação escolar e profissional deve ser encarada como apoio sistemático à construção de projectos de vida, de modo a que seja dada a todos, jovens e adultos, a oportunidade de em qualquer altura da suas trajectórias, educativa ou profissional, explorarem e (re)direccionarem a sua relação de investimento com o mundo. Nesta perspectiva, transição para a vida activa já não deve ser encarada como um acontecimento ocasional, que se esgota num acto único de escolha, mas sim como um processo que se desenrola ao longo do ciclo de vida do indivíduo.

 

Introdução

O ingresso na vida activa é um caminho,

 seguramente longo, muitas vezes escarpado

e com curvas cegas, mas, sendo caminho,

 faz-se caminhando.

 

Em consequência da incerteza que actualmente rodeia o mercado de trabalho, os indivíduos vêm-se confrontados, ao longo da sua vida activa, com problemas complexos relacionados com o ingresso e permanência no mercado de trabalho. Considerando que a relação sujeito-trabalho ocupa um lugar muito central no projecto de vida que cada um constrói, a orientação escolar e profissional deve ser encarada como apoio sistemático à construção de projectos de vida, de modo a que seja dada a todos, jovens e adultos, a oportunidade de em qualquer altura da suas trajectórias, educativa ou profissional, explorarem e (re)direccionarem a sua relação com o mundo. Nesta perspectiva, transição para a vida activa já não deve ser encarada como um acontecimento ocasional, que se esgota num acto único de escolha, mas sim como um processo que se desenrola ao longo do ciclo de vida do indivíduo, o que implica considerar os projectos de vida como estando permanentemente em construção.

Por questões de método e de clareza, a abordagem do tema articular-se-à em torno de duas partes: na primeira, de enquadramento, será apresentada, uma nova concepção de intervenção em orientação escolar e profissional, conhecida como modelo de “exploração reconstrutiva do investimento vocacional”; na segunda, perspectivando a intervenção em orientação como apoio à gestão de carreira, serão apresentados os objectivos desenvolvimentais e as estratégias de exploração reconstrutiva em intervenções de desenvolvimento vocacional.

 

1. Exploração reconstrutiva do investimento vocacional

Face ao aumento da incerteza em torno dos itinerários profissionais a que hoje se assiste, a orientação profissional já não pode ser encarada como uma intervenção destinada a apoiar adolescentes e jovens na construção e implementação de projectos pessoais e profissionais lineares, articulando, sequencialmente, formação escolar, qualificação profissional, profissão e emprego (Coimbra, 1997/ 1998). Esta lógica, decorrente dos modelos clássicos do desenvolvimento vocacional, pressupondo a estabilidade dos atributos individuais e das características das formações e das profissões (Imaginário, 1997/1998), apresenta-se hoje como uma concepção muito discutível do processo de desenvolvimento vocacional, muito particularmente durante o período de vida adulta. Segundo esta perspectiva, o problema da escolha vocacional dos jovens era reduzido a uma questão de (falta de) conhecimento na sua acepção mais racionalista – a intervenção, assente em estratégias de tipo instrutivo, era concebida como um mero processo de exploração de si próprio e da rede de oportunidades disponíveis com vista a uma tomada de decisão racional sobre o caminho a seguir.

Este tipo de intervenções, assente predominantemente na transmissão de informação relativa a formações e profissões, não se tem revelado eficaz na promoção de comportamentos de exploração vocacional. Para além disso, diversos estudos têm questionado o papel da informação na orientação profissional. Bodden e James (1976), citados por Campos (1992), num dos primeiros estudos sobre esta questão verificaram que o fornecimento de informação, comparada com a sua ausência, diminuía a diferenciação vocacional e os autores advertiam mesmo que os Conselheiros de Orientação Profissional deveriam ter presente que os indivíduos “podem distorcer a informação nova de modo a que esta se adeque às visões preconcebidas do mundo do trabalho”, pelo que não deviam assumir com facilidade que “fornecer informação é uma ajuda útil para uma boa decisão vocacional”. Os referidos autores verificaram inclusivamente que, contrariamente ao esperado, a oferta de informação diminuía a complexidade cognitiva dos indivíduos na representação do mundo profissional.

Estudos posteriores permitiram clarificar melhor esta questão. Mais precisamente, constatou-se que a simplificação cognitiva estava associada a certas características da informação profissional. Assim, enquanto a informação positiva sobre as profissões diminuía a diferenciação cognitiva do sistema de construtos vocacionais, a informação negativa ou mista aumentava os níveis de diferenciação. Por outras palavras, a capacidade dos indivíduos para construir representações multidimensionais e complexas do mundo profissional, depende da violação das suas expectativas (Gomes, 2002).

Hoje, perante o actual cenário de incerteza e de imprevisibilidade que o futuro descarrega no presente, em que as relações entre formações, profissões e empregos são cada vez mais precárias e incertas, a intervenção da orientação profissional deve ser perspectivada como um processo de transformação da relação que cada indivíduo estabelece com o meio envolvente, passando a racionalidade da decisão para plano secundário.

Segundo esta perspectiva, dita de exploração reconstrutiva do investimento vocacional, (Campos e Coimbra, 1991), não se considera o sujeito e o mundo como duas realidades independentes entre as quais é necessário estabelecer relações. O ponto de partida é precisamente a relação que o sujeito mantém permanentemente com o mundo (escolar, profissional, social, etc.). Desta forma, a intervenção da orientação profissional consiste em criar condições para que a relação sujeito-mundo se vá progressivamente (re)construindo, proporcionando aos jovens experiências de aproximação à vida activa susceptíveis de os ajudar a transformar a sua relação com o mundo (Gomes, 2002). É no seio dessas experiências de acção, de contacto directo com pessoas e situações representativas da vida adulta e do mundo profissional, que os jovens vão construindo os seus interesses e melhorando o conhecimento de si próprios e da realidade circundante (Campos e Coimbra, 1991). Tais experiências devem ser significativas para os sujeitos, isto é, devem corresponder às suas necessidades, interesses e desejos (por outras palavras, devem fundamentar-se na relação actual de investimento) e devem, tanto quanto possível, ser originadas na insatisfação sentida pelo sujeito.

Segundo a concepção de exploração reconstrutiva, aptidões, capacidades, interesses e motivações de cada um constituem não um dado a constatar, descobrir ou avaliar, mas sim atributos a construir, desconstruir e reconstruir no decurso das experiências de vida (Imaginário, 1997/1998). De acordo com o referido modelo, a escolha de uma formação ou uma profissão não resulta tanto da relação de conhecimento que o jovem estabelece com o mundo (variável de ordem cognitiva), mas sim da articulação desta com variáveis afectivas, motivacionais e comportamentais, o que transforma o processo de escolha vocacional numa contínua (re)negociação dos compromissos estabelecidos, pelo sujeito, entre as suas expectativas e desejos pessoais e as oportunidades e os constrangimentos sociais.

Contudo, para que as experiências de aproximação à vida activa não se mostrem improdutivas do ponto de vista de desenvolvimento vocacional dos jovens, é necessário articular essas experiências de acção com ocasiões regulares de integração, as quais poderão, por exemplo, ter lugar através de discussões de grupo orientadas pelo Conselheiro de Orientação Profissional. Só desta forma será possível promover nos indivíduos uma sucessão equilibrada de momentos de desestruturação-estruturação, dotando-os de uma capacidade crescente para compreender e agir sobre os meios escolar e profissional.

 

2. Objectivos desenvolvimentais e estratégias de intervenção

Face à turbulência e imprevisibilidade das mudanças que ocorrem no mercado de trabalho, hoje, mais do que nunca, a construção de um projecto de vida é um problema que diz respeito a todos – jovens e adultos, empregados ou desempregados, ainda que se confrontem com problemas diferentes, todos têm necessidade de usar os seus conhecimentos e competências para desenvolver e concretizar objectivos realistas que contribuam para a sua satisfação pessoal e profissional. De entre as múltiplas dimensões que constituem os projectos de vida, há uma que assume particular importância – trata-se do planeamento e gestão da carreira profissional, o que, no caso dos jovens, é genericamente designado por processo de transição para a vida activa.

No caso dos jovens, planear uma carreira encerra, hoje, mais incógnitas do que certezas. Planear significa obter um diploma e projectar a sua vida sem saber quando obterão o primeiro emprego, quanto tempo durará, se esse e os empregos ou actividades que se lhe seguem terão algo a ver com a formação inicial ou quantas vezes terão de mudar de emprego ou mesmo de área de actividade ao longo da vida profissional (Azevedo, 1999). Por outras palavras, perante um tal cenário de imprevisibilidade, em que as carreiras profissionais se desenvolvem em “voo de borboleta” (Azevedo, 1999), a adaptabilidade afirma-se, desde o ingresso na vida activa, como uma condição essencial no que respeita ao desempenho do papel de trabalhador.

Mas, apesar de todas as indefinições, o caso acima retratado (ingresso na vida activa devidamente certificado escolar e profissionalmente), ainda é o dos indivíduos melhor preparados para enfrentar o desafio de construção e de implementação de projectos profissionais. E que dizer dos milhares de jovens que todos os anos abandonam o sistema de educação-formação sem certificação escolar e sem qualificação profissional? Estes jovens, ingressando na vida activa nesta situação de dupla desqualificação, estão (praticamente) condenados a trajectórias de vida caracterizadas, do ponto de vista profissional, por uma empregabilidade reduzida, ocupação de postos de trabalho precários, indiferenciados e mal remunerados, com todos os riscos que essa situação comporta em termos de (potencial) exclusão social futura (Detry e Cardoso, 1996). Nesta perspectiva, em vez de se falar em transição para a vida activa, mais adequado seria falar-se em transições, tal a diversidade possível de situações dos jovens à saída do sistema de educação-formação.

Mas as tarefas de escolha vocacional não se restringem a uma determinada altura da vida das pessoas. Essas tarefas vão emergindo sob a forma de problemas que fazem a sua aparição ao longo da existência das pessoas. Longe vai o tempo em que, feita a formação inicial, preferencialmente antes do ingresso na vida activa, e adquirida uma determinada qualificação profissional, um indivíduo podia projectar, com uma elevada dose de segurança, uma carreira profissional. Hoje, mesmo os trabalhadores empregados e qualificados, devem prestar especial atenção à gestão da sua profissionalidade e da sua própria carreira profissional, mantendo, dessa forma, um elevado nível de empregabilidade ao longo da vida activa. Esta necessidade advém tanto da actual reconfiguração acelerada das profissões (introdução de novas tecnologias e consequente obsolescência rápida das qualificações, emergência de novos perfis profissionais, etc), como, fruto da globalização e das reestruturações de empresas e ou de sectores de actividade um número crescente de trabalhadores ver-se na contingência de operar profundas reconversões nas suas carreiras, enveredando por profissões diferentes. Hoje, ingressar e permanecer no mercado de trabalho, exige lidar, adequadamente, com as tarefas previsíveis e imprevisíveis relacionadas com o desempenho do papel de profissional, ou, por outras palavras, exige uma crescente capacidade de adaptabilidade e de flexibilidade perante os desafios e uma permanente disponibilidade para formação ao longo da vida.

Em consequência da flexibilização das leis laborais e da crescente precarização dos vínculos contratuais, da passagem, ao longo da vida activa, por vários períodos de emprego e de desemprego, a intervenção em orientação vocacional deve ser perspectivada como apoio sistemático à gestão de carreira, isto é, como apoio ao processo através do qual, jovens e adultos, implementam e monotorizam objectivos e estratégias vocacionais dirigidos para a concretização das aspirações, desejos e necessidades inerentes à relação mantida com a aprendizagem e com o trabalho (Coimbra, Parada e Imaginário, 2001).

Esta mudança de perspectiva, decorrente da evolução do mercado de trabalho, mostra-se mais congruente com a actual reconfiguração das carreiras profissionais. Tradicionalmente, entendia-se por carreira profissional a progressão regular e hierárquica desenvolvida no contexto de uma profissão ou sector de actividade (Castro e Pego, 1999/2000). Esta noção, assente no pressuposto da estabilidade das qualificações e dos empregos, não se mostra compatível com a actual dinâmica do mundo profissional. Hoje a noção de carreira não pode ser concebida como a concretização de um único e grande projecto, mas antes como a concretização de uma série de pequenos projectos, eventualmente orientados por um objectivo, envolvendo (ou podendo envolver) uma multiplicidade de trajectos. Nesta acepção, carreira remete para o sentido pessoal e individual dos investimentos educativos e profissionais, para a sucessão de aprendizagens, experiências de trabalho, empregos e períodos de formação dos sujeitos ao longo da vida activa. Nesta perspectiva, cada indivíduo constrói e reconstrói, permanentemente, a sua carreira nos processos de exploração da sua relação com o mundo.

Recentrando novamente a discussão em torno do processo de transição dos jovens para a vida activa, é fundamental que a intervenção em orientação vocacional, na perspectiva de apoio sistemático à gestão de carreira, promova nos jovens os seguintes objectivos desenvolvimentais:

Constituindo o desenvolvimento vocacional dos jovens um processo cumulativo de construção de significados pessoais a partir de situações e de experiências reais de aproximação à vida activa, é necessário que essas experiências sejam significativas para os sujeitos (neste caso, jovens).

Os modelos tradicionais de orientação privilegiam as estratégias de tipo instrutivo e tendem a utilizar a simulação e as actividades de dramatização (jogo de papeis ou role-playing). Ainda que este tipo de estratégias possa ter, sobretudo com os sujeitos mais novos, grande utilidade para a aquisição de algumas rotinas básicas que sejam condição para acesso a operações mais complexas, promovendo, dessa forma, a autonomia dos sujeitos, têm revelado alguns problemas de validade conceptual. Um primeiro problema ter a ver com a ênfase intrapsíquica deste tipo de abordagem – fortemente centradas nos indivíduos, ignoram os contextos de vida das pessoas. Por outro lado, assumindo um carácter predominantemente informativo, enfatizam a aquisição de conhecimentos ou comportamentos em situação artificial e não nas situações reais de interacção sujeito-mundo. Por último, revelam consideráveis limitações ao nível da generalização das aquisições aos contextos reais de vida das pessoas.

No sentido de tentar ultrapassar as limitações acima referidas, as estratégias de exploração reconstrutiva, reconhecendo aos indivíduos um papel activo no processo de construção de significados, assentam em experiências de vida relevantes. A relação do sujeito com o mundo é indissociável da acção – daí a importância das situações reais de contacto directo com pessoas e com situações representativas da vida adulta e do mundo profissional (assunção de papeis ou role-taking), tais como: visitas a empresas e observação de postos de trabalho, experiências de trabalho e estágios em empresas, acompanhamento permanente de profissionais em exercício e entrevistas a profissionais.

Em síntese, conceber o processo de transição para a vida activa como a construção e implementação de um único e grande projecto de vida, mais ou menos linear, não se revela congruente com a actual reconfiguração acelerada das profissões. Hoje, em consequência das mudanças imprevisíveis no mundo do trabalho em geral, melhor será perspectivar a intervenção em orientação escolar e profissional como apoio sistemático à gestão da carreira profissional. Esta forma de conceber a intervenção em orientação revela-se mais adequada com a actual dinâmica do mundo do trabalho, na medida em cada vez maior número de trabalhadores vê-se confrontado, ao longo da sua vida activa, com problemas variados e complexos (alterações no modo de desempenho das funções, mudanças de actividade profissional) relacionados com a sua profissão. Isto é, hoje em dia, carreira profissional é, sobretudo, sinónimo de adaptabilidade profissional.

Citando o professor Bártolo Campos (1992), “ (...) não é recorrendo ao dicionário de palavras e alinhando uma série delas que se produzem frases significativas; também não é recorrendo ao catálogo das actividades e alinhando uma série delas, ao longo de semanas, que é legítimo esperar algo de consequente. Num e noutro caso, têm de estar subjacentes regras de produção quer seja de frases com sentido quer seja de uma intervenção de orientação significativa para as pessoas ”.

 

Referências bibliográficas

Azevedo, J. (1999). Voos de borboleta: Escola, trabalho e profissão. Porto, Edições ASA.

Campos, B. P. (1992). A informação na orientação profissional. Cadernos de Consulta Psicológica, 8, 5 – 16.

Campos, B. P. e Coimbra, J. L. (1991). Consulta psicológica e exploração do investimento vocacional. Cadernos de Consulta Psicológica, 7, 11 – 19.

Castro, J. M. e Pego, A. (1999/2000). A carreira já não é o que era. Cadernos de Consulta Psicológica, 15/16, 13 – 20.

Coimbra, J. L. (1997/1998). O meu “grande” projecto de vida ou os meus “pequenos” projectos: Linearidade ou recorrência no desenvolvimento vocacional e suas implicações educativas. Cadernos de Consulta Psicológica, 13/14, 21 – 27.

Coimbra, J. L., Parada, F. e Imaginário, L. (2001). Formação ao longo da vida e gestão da carreira. Lisboa, Ministério do Trabalho e da Solidariedade.

Detry, B. e Cardoso, A. (1996). Construção do futuro e construção do conhecimento. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.

Gomes, C. F. (2002). Exploração vocacional e diferenciação cognitiva. OP OnLine, 2, 1 – 4.

Imaginário, L. (1997/1998). Questões de orientação. Cadernos de Consulta Psicológica, 13/14, 39 – 46.