Estava fazendo um passeio vespertino pelo centro da cidade, quando cheguei a um local pouco ecológico, um sebo de livros. Sei que ali é um ‘cemitério de árvores’, mas sempre que adentro ao santuário agradeço aos vegetais pelo prazer que nos proporcionam após a sua morte.

Arregacei as mangas para iniciar a gloriosa tarefa de garimpeiro. Normalmente passo pela peneira centenas de “grãos de areia” para, no último instante, deparar-me com uma pepita - um livro não lido e já com sua edição esgotada. Subi no banquinho “macetoso” da livraria e comecei a vasculhar na última prateleira. De repente, como que saltando no espaço, caiu um livro. Olhando do alto do banquinho, vi, pela cor da capa, que era o livro de C. G. Jung, Memórias, Sonhos, Reflexões, desci e completei a identificação do quase suicida: Rio, Nova Fronteira, 1978. Ele caiu com a lombada para cima e, conseqüentemente, aberto em alguma página. Ao olhar curioso para a página ofertada, deparei-me com o capítulo “Visões”. Ali mesmo, comecei a releitura daquela narrativa, certamente uma fase muito crucial na vida de Jung. É claro, levei aquele exemplar para casa; nunca deixo de atender as súplicas de um livro já velho, vivido e, até de certo modo, muito oferecido.

No mesmo dia estava ao telefone com o Fernando Rocha Nobre, quando ouvi a sugestão para escrever um artigo no jornal Sonhos. Não tive dúvidas, o artigo seria sobre o capítulo “Visões”, e aqui estou eu, prestando esta singela homenagem ao mestre Carlos Gustavo.

Convoco os leitores a uma lida ou relida no referido capítulo; assim, vão saborear a narrativa na pena do próprio Jung. Neste ínterim, apresento um resumo do capítulo com destaque para alguns aspectos das visões ali narradas.

Jung adoeceu gravemente (provavelmente um “infarto agudo do miocárdio”) logo após uma queda, ocorrida em 26 de janeiro de 1944; escorregou na calçada com neve transformada em gelo, na velha Zürich. Jung nasceu em 26 de julho de 1875, portanto, estava, na época, com 68 anos. A princípio, a queda não provocou o infarto, parece que foram dois avisos do inconsciente, primeiro um menor e o outro maior, logo em seguida.

De acordo com sua narrativa, a lesão cardíaca foi extensa e resultou em longo tempo de internação. Jung nos conta que dois dos medicamentos que tomou foram: o “oxigênio” e a “cânfora”. O oxigênio continua em voga, mas a cânfora foi abandonada nesse tipo de tratamento. A cânfora é anestésica e estimulante da respiração; provavelmente, a lesão cardíaca provocou uma insuficiência do coração e também um edema pulmonar. Acontece que um dos efeitos da cânfora é estimular o “Sistema Nervoso Central”, podendo ter facilitado o aparecimento das “Visões” de Jung. Num estado de coma superficial ou torpor, começou a ter uma série de visões que ficaram marcadas em sua lembrança. Felizmente, a narrativa das visões e sensações destes 21 dias, que passou relutando para viver, foi preservada nas suas Memórias.

Sua narrativa começa no espaço, de onde olhava para a Terra, como que se despedindo dela. Jung tinha a idéia de estar se afastando desse mundo e da sua vida terrena. Nessa visão do espaço sideral, encontrava-se suspenso a, mais ou menos, 1500 km da Terra e, de lá, apreciava o nosso planeta azul. Via o Ceilão aos seus pés e a Índia bem a sua frente; para a esquerda, podia vislumbrar um pedaço do Mediterrâneo. No espaço a sua direita percebeu um enorme bloco de granizo com um templo escavado nele.

O templo, ele comparou com o que visitou no Ceilão, na cidade de Kandy, chamado “Templo do Dente Sagrado”, onde está o dente de Buddha. Uma lenda diz que o dente de Siddharta Gautama foi retirado da pira funerária e conservado como a única relíquia do corpo que o Avatar usou na terra. O templum, para os romanos, era o espaço sagrado em forma de quadrilátero onde se observava o vôo dos pássaros e era feita uma leitura do futuro. Nesse templo com características indianas, Jung ia receber seus auspícios. Lá, ia perder parte de seus conhecimentos adquiridos na vida terrena, mas também receber informações de sua existência maior.

Dirigiu-se para o templo como que voando. Quando estava pronto a entrar e talvez largar de vez o seu corpo, o seu médico atendente - doutor Theodor Hämmerli - vindo da Terra, se dirigia para ele. Ele não estava com suas roupas próprias do século XX, mas vestido como Basileus de Cós. Sabemos que Hipócrates, considerado o pai da medicina, nasceu na ilha de Cós e era tido como um rei (Basileu é o termo grego para rei). Dizem que aprendeu medicina com o próprio deus Asclépio, filho de Apolo. Portanto, o médico encarnava o poder curativo original ou primitivo que todo médico tem ou deveria ter. O médico veio com um recado: ele deveria voltar! Na Terra protestavam contra sua partida, não queriam que ele morresse tão cedo. Lembremos que Jung morreu em 6 de junho de 1961, 17 anos após esse episódio.

Percebeu então que a visão do médico na forma primária significava que a morte dele estava próxima e seria no seu lugar. Quando começou a recuperar-se e sair do torpor - possivelmente parou de tomar cânfora - Jung tentou avisar ao seu médico do perigo que corria. É claro que o médico não deu muita importância às colocações de Jung, mesmo sendo ele já famoso naquela época.

Resultou daí que, em 04 de abril de 1944, Jung sentou-se na cama pela primeira vez e nesse dia seu médico deitou no seu leito, com septicemia, e de lá não levantou, vindo a morrer.

Depois desta visão, Jung ainda ficou três semanas para decidir voltar à vida. Achava que chegou bem perto de uma transformação e queria ver o interior daquele templo.

Dizer que alguém morreu no nosso lugar é um tanto subjetivo, mas a vida é subjetiva e objetivo é o nosso inconsciente. No mínimo foi uma grande coincidência, como diria qualquer um, ou uma sincronicidade, como diria Jung. Podemos entender esses acontecimentos como uma mensagem do inconsciente, como um sonho ou aceitar como um fato ocorrido realmente. Os mais céticos diriam que Jung ainda tinha em mente a recordação de sua viagem iniciada em dezembro de 1937 e encerrada em fevereiro de 1938, portanto seis anos antes do acontecimento. Nessa viagem esteve na Índia e depois no Ceilão, atual Sri Lanka. O capítulo do livro trata de outras visões, mas essa com certeza é a mais contundente.

Comecei a pensar na “morte adiada” de Jung e a imaginar se teríamos outros exemplos na expressão artística. A morte já é um fato irrevogável que suscita nossa imaginação e nossa atenção; revi na memória acontecimentos e relatos que poderiam ser no mínimo parecidos com o de Jung. De pronto lembrei do gatinho Willie e faço um resumo para vocês.

No magnífico livro de Albert Kreinheder, Conversando com a Doença – Um diálogo de corpo e Alma, São Paulo, Summus, 1993, o autor começa o livro com a morte do seu gato Willie, que, diz, morreu em seu lugar. Ele conta que ainda estava no hospital, após ter feito uma cirurgia exploratória abdominal para avaliar a extensão de um ‘melanoma’, quando recebeu o telefonema de sua esposa avisando que o gato tinha morrido. Murmurou, como para si mesmo: - “Oh, meu Deus, aqui estou eu vivo e Willie, morto. Estou vivo porque Willie está morto. Ele morreu para que eu pudesse viver”.

Pela lógica aristotélica, coincidentemente ocorreu a morte de um ser com a melhora de outro, mas temos as palavras do autor afirmando que um membro da sua família deveria morrer, e o gato era o mais generoso. Isso é semelhante à história de Admeto (que contarei adiante), onde a figura mais nobre foi sua mulher Alceste, que se dispôs a morrer por ele em nome da melhor educação para os filhos. No caso de Jung, não temos muita informação sobre a generosidade ou a nobreza do seu médico, mas também não temos nada que desabone sua conduta.

Albert segue pelo livro narrando sua luta com três doenças importantes que ocorreram na sua vida. A última doença, o câncer, o levou em 1990, quando tinha 76 anos. Nos deixou as palavras de seu mestre Kieffer Frantz, no capítulo “O Guia Espiritual”: “O objetivo da cura não é permanecer vivo, mas sim caminhar em direção à plenitude. A morte é a cura final”.

Na área cinematográfica encontramos o belíssimo filme, ‘Encontro Marcado’ (Meet Joe Black), de Martin Brest, 1998. O filme começa com o milionário Bill Parrish (Anthony Hopkins) acordando - no meio da noite - de um sonho onde tinha ouvindo uma voz que dizia: - “Sim”. Lava o rosto e a voz continua a dizer: - “Sim”.

Pela manhã, sua filha mais velha, Allison, está preparando sua festa de aniversário de 65 anos. Bill sai para seu escritório com sua filha caçula, Susan (Claire Forlani), e aconselha-a a escolher um namorado que a arrebate, pois não tem sentido viver sem amor, sem paixão. Chega a afirmar que tem que acontecer algo extraordinário e diz: - o céu pode se abrir para você.

A cena corta para uma lanchonete onde o jovem interpretado por Brad Pitt conhece Susan e ocorre uma paixão recíproca. Logo após a despedida do casal, a morte provoca um atropelamento e toma o corpo do jovem.

Na hora do jantar da família Parrish, a morte, no corpo do jovem, aparece. A morte explica, reservadamente, a sua intenção de levar Bill, declarando-se disposta a lhe conceder alguns dias de vida em troca de ficar na sua casa e conhecer o mundo num corpo mortal. Afirma que escolheu Bill devido à sua paixão pela vida. Quando Bill pergunta porque ouvia a palavra “Sim”, a morte afirma que respondia a questão dele e de todos nós: “Eu vou morrer?”

O filme é muito bem conduzido e correm algumas histórias paralelas que fogem ao tema do artigo. Vale citar a cena da morte (no corpo do Brad Pitt) no hospital conversando com uma senhora de idade, muito humilde, que está para morrer. Ela reconhece a morte, e acha que ela está ali para buscá-la e, é esse o seu desejo.

Com o desenrolar do filme, Susan se apaixona pela morte no corpo do jovem e a morte se apaixona por ela.

Num segundo encontro da morte com a velha, ainda no hospital, é a velha senhora que ajuda a morte a entender os fatos; de certa maneira, convence a morte a alterar sua postura perante o amor a uma mortal.

- Me leva e vem comigo!, diz a velha para uma morte conflitada.

- Aqui também estamos sozinhos!, afirma a velha, quando a morte quer justificar o rapto do seu amor, pela necessidade de ter uma companhia.

No final, temos a grande festa. Bill está conformado com a sua ida e aproveita a presença da morte para desmascarar um dos seus sócios que está passando-o para trás. Muito sugestivo que a morte se faz passar por um funcionário da Receita Federal, um fiscal do imposto de renda.

A morte está disposta a levar Susan consigo, tal como Hades, quando raptou Perséfone, filha de Deméter; só que percebe que Susan tinha se apaixonado pelo corpo que ela usava. A morte não abre mão de levar Bill, mas devolve o corpo para a alma do jovem que era o amor de Susan. Quando o amor é verdadeiro preferimos ficar longe da amada, desde que ela fique bem. Numa conversa entre Bill e a morte, ele afirma: - “O amor não pode causar dano ao amado!”

Para o nosso trabalho, devemos realçar que a morte não perdoa Bill, mas prolonga a vida do jovem para satisfazer a bem amada. A cena final é belíssima. Numa colina perto da casa a morte vai andando com Bill e desaparece numa ponte convexa. Susan dá alguns passos em direção à ponte vazia. De repente, o jovem começa a surgir na parte ascendente da ponte como que sendo reconstruído aos poucos da cabeça até aos pés. É sutil a colocação final, seu corpo já conhece a namorada, mas a sua alma esteve ausente.

No final todos ganharam. Bill ficou com alguns dias e, principalmente, pode se preparar para o inevitável, morrer. O jovem que já tinha morrido obteve sua vida de volta; e talvez, quem aproveitou toda esta experiência, foi a morte. A morte chega a lacrimejar e diz para Bill: - obrigado pelo tempo que você me proporcionou. Bill retruca e diz: - é... é difícil largar isso tudo.

Procurando pela “morte adiada” na expressão musical, tive a ajuda de João Carlos Taveira, que sugeriu o drama Rigoletto. Giuseppe Verdi (1813-1901) escreveu uma ópera trágica que levou o nome final de Rigoletto, tirado de um dos seus personagens. A ópera é baseada na história de Victor Marie Hugo, chamada O Rei se Diverte. O drama de Hugo era ambientado na corte de Francisco I de França e a censura da época não aprovou a história numa corte real.

O Duque de Mântua, personagem principal, é um homem sem escrúpulo que vive de romances furtivos com todas as damas ao seu alcance. Rigoletto é o seu Bufão que pega uma carona na sua empáfia e vive debochando dos maridos e pais de esposas e filhas seduzidas. Um desses pais inconformados, o Conde de Monterone, roga uma maldição em Rigoletto, pois sabe que ele tem uma jovem filha chamada Gilda.

A filha de Rigoletto leva uma vida reprimida pelo pai e, numa rara saída para a missa, acaba enamorando-se do Duque de Mântua. É claro que ela cai ‘nas malhas’ do duque e Rigoletto fica transtornado. Resolve, então, matar o duque e contrata um assassino profissional, Sparafucile. Esquece - ou não quer ver - que a filha está apaixonada pelo duque e não avalia bem a situação como um todo. Quando o duque está para ser morto, a facadas, no quarto de uma estalagem, Gilda sem ninguém saber, toma seu lugar e morre pelo seu amado. Quando Rigoletto recebe um saco fechado imaginando que seria o corpo do duque, ao abri-lo, vê a filha morrendo toda ensangüentada. Daí, entende que a maldição funcionou; o duque continuava vivo...

Aqui temos a sobrevida de uma pessoa sem virtudes. Podemos pensar: seu mérito foi despertar o amor carnal na jovem e a sua morte pode ter sido uma libertação do julgo do pai. Toda jovem um dia vai se iniciar sexualmente... será que temos a pretensão de saber quem é melhor para nossa filha?

Quando falava com o Taveira ao telefone, sua esposa Aglaia Souza se interessou muito pelo tema da ‘morte adiada’. Como estava compondo um livro de contos, pegou na caneta e escreveu “O Anjo da Morte”. O conto é inédito, pois ainda vai ser editado no livro que sairá no final do ano, mas ela me autorizou a citá-lo.

O anjo Ielehiah vem à Terra para levar a alma de uma camponesa que vivia sozinha numa chácara muito simples. Lá chegando, encontra uma velhinha vivendo muito feliz com a vida que Deus lhe deu. Conversando um pouco, ele percebe que, embora cega, ela enxerga mais do que ele, um anjo e imortal. Pede em seguida para ficar no seu lugar e promete-lhe uma vida de imortal, provavelmente um lugar no Olimpo ao lado de Zeus. Ela aceita. O anjo começa sua vida de mortal e a senhora prolonga sua vida pela eternidade.

O conto acaba e não ficamos sabendo se a velha senhora também não vai enjoar da imortalidade e trocar de lugar com outro mortal. Se isso acontecer, com certeza ela ganhou mais um tempo de vida.

Aprendemos muito com os arquétipos - os deuses; e, com certeza, os deuses também aprendem muito conosco, portanto, com o decorrer dos tempos os deuses se transformam. Talvez por isso eles estão nos dando um tempo de vida maior. É claro que os cientistas vão dizer que a média de vida aumentou com o evoluir das ciências de um modo geral e talvez, principalmente da medicina. Podemos lembrar a eles que a medicina - quase que somente - evoluiu no diagnóstico, e que remédio, se fosse bom, chamava-se curativo... Remédio não cura, só remedia...

No âmbito dos Contos de Fadas encontramos vários com o tema morte adiada, mas é nas mãos de Jacob e Wilhelm Grimm que o assunto adquiriu notoriedade. Os irmãos Grimm coletaram uma história muito rica: “Madrinha Morte”. Um homem tinha 12 filhos e ainda lhe nasceu o décimo terceiro. Muito preocupado com o futuro do filho, saiu pela estrada para arranjar um bom padrinho. Encontrou Deus, e recusou dar como afilhado o menino. Depois encontrou o Diabo e também o recusou para padrinho. Então veio a morte e ele entregou o filho para batizar.

A morte transformou o afilhado num grande médico, ensinou-lhe a mexer com ervas e sempre aparecia quando ele visitava um paciente. Se ficasse na cabeceira da cama, o doente seria salvo com as ervas, se ficasse nos pés do leito, o doente seria levado pela madrinha. Quando, numa noite, atendia ao rei, viu a morte aos pés da cama; então ficou muito aflito, pois iria perder o seu rei para a morte. Maquinou um meio de enganá-la... Inverteu o nobre paciente na cama, mas a morte não gostou nada e repreendeu o afilhado.

Mais tarde, a princesa caiu doente e a morte de novo estava nos pés da cama. O médico, enamorado da jovem, de novo inverteu a posição na cama e ela se salvou. Só que, desta vez, a morte pegou o afilhado pelo braço e levou-o para debaixo da terra. Lá, o médico encontrou uma infinidade de velas, umas se apagavam e outras se acendiam. A morte mostrou uma vela se apagando e disse que era a vida do médico. Ele implorou para acender outra vela na dele, mas a madrinha não perdoou e levou o afilhado.

A morte tolerou a rebeldia por uma vez, mas não tolerou por duas. O médico teve sua morte adiada uma vez pelo amor ao seu rei, mas não foi adiada pelo amor pessoal pela princesa. Na realidade, o rei e a princesa tiveram sua morte adiada pelo esforço angustiado de um médico que achava que podia sobrepujar a morte, pelo simples fato dela ser da sua intimidade.

Na mitologia encontramos bastante material envolvendo a morte e o prolongamento da vida. Um personagem muito interessante chama-se Sísifo (filho de Éolo e Enarete) e também teve a vida prolongada. Ele não possuía grandes virtudes, mas era tido como muito esperto, um malandro que vivia de enganar os outros e não se deixar enganar.

Sísifo era rei de Corinto, anteriormente chamada Éfiro, por ele construída. Casou-se com Mérope, uma das sete Plêiades, tendo com ela um filho, Glauco.

Certa vez, sobrevoou a sua cidade uma grande águia que levava nas garras uma jovem. Ele reconheceu a jovem Egina, filha de Asopo, um deus-rio, e viu, na águia, uma das metamorfoses de Zeus. Mais tarde, o velho Asopo veio perguntar-lhe se sabia do rapto de sua filha e qual seria seu destino. Sísifo logo fez um acordo: em troca de uma fonte de água para sua cidade ele contava o paradeiro da filha. O acordo foi feito e a fonte presenteada recebeu o nome de Pirene e foi consagrada às Musas.

Desconfiado de que Zeus mandaria a morte no seu encalço, pediu a sua mulher, caso ele morresse, que ela não realizasse os funerais. Assim aconteceu, e quando Sísifo chegou ao Hades, logo foi notado que seu funeral não tinha sido feito e ele pediu autorização para voltar e reclamar com a esposa. De fato foi liberado, mas não voltou ao Hades conforme o combinado.

Passados alguns anos, morreu de velhice e sua alma foi para o Hades. Como castigo, pelo golpe aplicado, recebeu uma ocupação constante: ficar rolando uma pedra colina acima e, quando esta estava quase no topo, escorregava de suas mãos e voltava para o pé do monte. Sísifo foi considerado um grande rebelde e teve um castigo, juntamente com Prometeu, Títio, Tântalo e Ixíon.

Sísifo acabou sendo conhecido por executar um trabalho rotineiro e cansativo. Por vezes esquecemos que este trabalho foi um castigo para mostrar-lhe que não temos liberdade como os deuses. Temos, no máximo, a liberdade de escolher a quem ficar presos. Devemos, pois, nos concentrar na vida cotidiana e vivê-la na sua plenitude, sendo criativos na repetição e na monotonia.

Outra morte adiada, encontrada na mitologia, é a de Báucis e seu esposo Filêmon.

Nas montanhas da Frígia, na Ásia menor, existia um carvalho e uma tília que nasciam de um mesmo tronco. Conta Ovídio, que Zeus era o protetor dos viajantes e da hospitalidade dispensada a esses. Um belo dia, Zeus pegou Hermes pelo braço e, disfarçados em viajantes cansados e famintos, foram para a Terra inspecionar e testar a bondade dos humanos. Percorreram toda uma vila, batendo de casa em casa, tanto simples casebres quanto mansões. De todos recebia a porta na cara e a negativa de comida e hospedagem. Já iam desistindo da procura, quando, no alto da colina, avistaram uma choupana, a mais pobre já vista. Lá chegando, foram recebidos por dois sexagenários que moravam sozinhos.

Os filhos já tinham ido embora e eles viviam simplesmente, sem grandes ambições. Sem perceber que os viajantes eram dois grandes deuses do Olimpo, mandaram os caminhantes entrarem e serviram o que tinham de melhor. Já no meio da refeição, perceberam que o vinho oferecido não esvaziava na jarra, apesar de já terem bebido bastante. Assustados, caíram de joelhos e pediram desculpas por não terem reconhecido os dois grandes deuses. Zeus sempre magnânimo levantou a senhora, de nome Báucis, e Hermes fez o mesmo com o senhor, chamado Filêmon. Levaram os dois para fora, e lá de cima do monte mostraram-lhes a antiga vila, que agora era uma grande lagoa. O casal piedoso ainda chorou pelos vizinhos, mas logo transformaram choro em espanto, quando sua cabana transformou-se em um reluzente templo.

Zeus afirmou que, além de terem a vida poupada, eles poderiam pedir o que quisessem. Foram para um canto confabular e, após alguns minutos, formularam os seus pedidos: ser os sacerdotes daquele templo e ter a graça de morrerem juntos, para nenhum dos dois sofrer com a ausência do outro.

Assim foi feito... Viveram até quase os 100 anos cuidando do templo, e num dia de lindo pôr-do-sol, ao pé da lagoa, viram seus corpos se transformarem em árvores, ele em carvalho e ela numa tília. Só tiveram tempo de sussurrar: - “até a eternidade, meu grande amor”.

Como já havia mencionado, encontramos, no mito de Admeto, a suprema bondade de sua esposa Alceste, que dá a vida pela família. Admeto é um herói grego filho de Feres e rei de Feras, na Tessália. Participou da expedição dos Argonautas - juntamente com seu pai - indo em busca do Tosão de Ouro; Jason era o comandante da frota.

Pélias, rei de Iolco, inventou de dar sua filha Alceste em casamento, somente para quem conseguisse chegar ao seu palácio em um carro puxado por um javali e um leão; possivelmente, para não ter de entregar a filha a ninguém. Acontece que Apolo, muito agradecido pela hospitalidade de Admeto, e sabendo da paixão dele por Alceste, deu uma mãozinha e atrelou esse carro feroz. Admeto casou com Alceste, mas nos rituais de agradecimento esqueceu-se de homenagear a deusa Afrodite. Logo quem, que só perde em fúria para Hera! Ela, de raiva, encheu o quarto nupcial de serpentes. Mais uma vez, Apolo interferiu, e o casamento se consumou.

Admeto teve dois filhos e vivia feliz. Foi quando Apolo soube pelas Moiras ou Queres que a vida de Admeto seria encurtada. Apolo, mais uma vez, foi o salvador de Admeto, só que desta vez a morte (Tânatos), que na Grécia é masculina, exigiu uma outra alma no lugar de Admeto. Com certeza, o barqueiro Caronte estava de “caixa baixa”, porque Asclépio não deixava ninguém morrer.

Admeto saiu em busca de alguém para morrer em seu lugar. Esse pedaço da história é narrado na bela peça teatral de Eurípides que leva o nome de Alceste e quem quiser ouvi-la e vê-la, a opção é a ópera de Glück com o mesmo nome. Admeto procurou entre os servos e nada. Todos muitos dedicados, mas morrer pelo patrão, jamais... Solicitou a seus pais, já velhinhos, e obteve a mesma resposta: eles queriam curtir o restinho de vida. Finalmente, sua esposa Alceste ofereceu-se para ir em seu lugar, e ele aceitou...

Veio a morte da esposa, os funerais, e eis que surge Héracles, amigo e companheiro de jornada no navio Argos. Héracles estava de passagem, pois tinha que realizar o seu Sétimo Trabalho, capturar as Éguas de Diomedes. Encontrou Admeto choroso, mas este não contou que o funeral era da esposa. Na Grécia antiga, a hospitalidade era um assunto muito sério, e o funeral poderia afastar o amigo. Para passar o tempo, Héracles ficou “numa boa”, bebendo e comendo em um anexo do palácio. Quando soube da morte de Alceste, ficou muito chateado com a situação, e resolveu fazer uma surpresa para o amigo. Foi até o cemitério, esperou Tânatos chegar para pegar Alceste e se embolou com ele. Acabou vencendo a luta e conseguiu Alceste de volta, entregando-a ao amigo Admeto.

Estamos diante de um homem desesperado com a proximidade da morte e pedindo a todo o mundo que morra em seu lugar. Alceste se ofereceu voluntariamente em prol do bem-estar da família, com grande disposição para o sacrifício total. Em um ato de amor extremo, deu a vida pela família, sendo recompensada - com a vida - por um amor fraterno, proveniente do herói Héracles.

No “Mito de Er”, ninguém morreu em seu lugar, mas Er teve sua morte adiada para transmitir conhecimentos aos mortais. Esse mito é narrado por Platão no último capítulo do livro A República. Fala sobre os caminhos da alma, desde a morte do corpo até a sua reencarnação. Er era um soldado natural da Panfília, na Ásia Menor, morto em batalha. Passados 10 dias do combate, vieram recolher os restos mortais dos guerreiros e encontraram o corpo de Er intacto e preservado. Resolveram levá-lo para sua terra natal e queimá-lo em pira funerária, como mandavam os costumes da época. No 12° dia de sua morte, para surpresa de todos, ele ressuscitou e disse que os “juízes” assim tinham determinado, para que ele contasse aos mortais o que se passava com as almas quando enfrentavam as Moiras (Cloto, Láquesis e Átropos) e se preparavam para reencarnar.

O mito de Er é muito expressivo e ilustrativo, mas é extenso para ser narrado aqui, fugindo um pouco da linha deste trabalho. O importante para nós, no momento, é o fato de um ser humano (o soldado Er) ter sua vida prolongada para poder trazer uma mensagem às almas encarnadas. Ele foi escolhido para observar tudo que se passava no “outro mundo” e narrar aqui, no “mundo dos vivos”. Um aspecto do amor dos deuses pelos seres humanos é oferecer conhecimentos; na tentativa, sempre constante, de elevar a alma humana para cada vez mais perto do Olimpo.

A data da recuperação de Jung é muito sugestiva, 4/4/44; o número quatro, símbolo da plenitude e da individuação é repetido por quatro vezes. Poderíamos supor que Jung alcançou sua individuação aos 68 anos de idade. Eu acredito que foi mais um estágio da espiral ascendente da vida humana; o processo de individuação começa, mas não termina; estamos sempre conseguindo um pequeno avanço na nossa jornada espiritual.

Se observarmos os escritos de Jung após 1944, nos deparamos com uma produção abundante e de peso; cito os livros, deixando de lado os artigos e prefácios: VIII/3 – Sincronicidade (1950); IX/2 - Aion. Estudos sobre o Simbolismo do Si-mesmo (1951); X/1 - Presente e Futuro (1957); X/4 – Um Mito Moderno sobre Coisas Vistas no Céu (1958); XI/4 – Resposta a Jó (1952); XIV/1 e XIV/2 - Mysterium Coniunctionis (1954); XVI/2 – Psicologia da Transferência (1946); Memórias, Sonhos, Reflexões (1961); O Homem e seus Símbolos (1964). Por esta listagem, podemos imaginar que sua morte, em 1944, teria sido uma grande perda para a humanidade. Se aceitarmos que seu médico possa ter morrido em seu lugar, resta saber se vamos ficar comovidos com a morte de um jovem médico ou vamos deixar a hipocrisia de lado e admitir que, entre Theodor e Carl Gustav, ficamos felizes que a sobrevida tenha sido de Jung.

Depois de tantos acontecimentos de morte adiada, devemos rememorar as visões de Jung para ver o paralelismo com as histórias acima apresentadas. Ao compararmos o episódio de 1944 com as expressões artísticas apresentadas encontramos várias diferenças, mas me proponho a citar as “coincidências”.

Observamos o gato Willie que morreu pelo seu dono. Albert nos legou um livro que é um marco na história da psicossomática. A morte foi adiada como uma troca, para que Albert pudesse cumprir com sua missão de narrar sua luta com a doença. Albert demonstrou seu grande amor pela vida.

Depois, no filme Encontro Marcado, um jovem teve sua vida prolongada pela própria morte, para que ele não deixasse Susan, seu grande amor. A morte provou do amor e soube não ser destrutiva por ele.

Na ópera Rigoletto, Gilda preferiu morrer pelo seu grande amor. O Duque de Mântua teve sua morte adiada em prol do amor despertado em Gilda e não pelos seus méritos.

No conto “O Anjo da Morte”, Ielehiah viu uma senhora cega que amava a vida e enxergava com os olhos da alma. Deu sua imortalidade para ela e curtiu um pouco daquele amor pela natureza que só os mortais possuem.

Na história dos irmãos Grimm, o médico já fora advertido pela sua madrinha, mas, por amor à princesa, desafiou a morte e pelo amor morreu, embora antes tenha adquirido um tempo a mais de vida quando, por amor à profissão, salvou o rei, contrariando pela primeira vez a madrinha morte.

Sísifo era um rei gozador, brincalhão, descontraído e amava a sua cidade, Corinto. Por ela contrariou Zeus, para dar uma fonte de água a seus súditos. Pelo amor à vida, enganou Hades e viveu mais um pouco.

Báucis e Filêmon tinham um grande amor um pelo outro; pela sua hospitalidade e carinho com os deuses, viveram mais um pouco e morreram juntos.

Admeto obteve mais um tempo de vida, dado pela sua esposa que o amava e amava principalmente a seus filhos. Seu amor era grande o bastante para um sacrifício pela família. O amor da amizade ainda fez com que Héracles trouxesse de volta Alceste, tirando-a das garras da morte.

Pelo amor ao conhecimento, à sabedoria, à “Sophia”; os juízes deram mais tempo ao soldado Er, que tinha morrido em batalha.

E Jung, viveu mais 17 anos por amor? Se foi, qual o foco do seu amor? Eu acredito que Jung amou a doação, doou sua alma para o seu mito. Viveu sua vida impulsionada pelo inconsciente. O amor é uma força, um arquétipo, algo que existe a priori, só precisamos admiti-lo e deixá-lo nos invadir, nos tomar, nos possuir. Talvez o amor seja o único arquétipo que, ao nos possuir, não cause doença, nem física, nem psíquica. Talvez o amor seja o arquétipo central, Deus...