O galo e a raposa

Fugindo as Galinhas e o Galo de uma Raposa, subiram na árvore. Como a Raposa não poderia fazer-lhes mal lá de baixo, cautelosamente disse ao galo: Vocês podem descer tranqüilamente, que agora decidiu-se fazer a paz universal entre todas as aves e animais; portanto, desçam aqui para festejarmos juntos este dia! O galo entendeu logo tratar-se de uma mentira; mas com dissimulação respondeu:- Esta novidade por certo é ótima e alegre, mas estou vendo três Cães chegando; vamos esperar por eles e então desceremos para comemorarmos todos juntos. Porém a Raposa, sem mais esperar, deu meia volta dizendo:- Bem, eu temo que eles ainda não saibam das novidades e me matem. E assim a Raposa foi embora bem depressa e as Galinhas e o Galo ficaram seguros.

Fábula de Esopo, vertida do grego por Manuel Mendes, da Vidigueira.
BRAGA, Teófilo. Contos tradicionais do povo português - vol. II.
5.ed. Lisboa: Dom Quixote, 1999. p. 277.

Tenho acompanhado as investigações das CPMIs nas últimas semanas. Apesar da situação decepcionante e desestimulante que estamos todos vivendo, há momentos interessantes e até divertidos para aqueles que observam cada pessoa envolvida nessa trama sem final feliz.

Em meio a tantas curiosidades, o que mais chama minha atenção é a capacidade de mentir, enrolar e omitir dos depoentes. Que teatro!

As mentiras despertaram meu interesse. Comecei a pensar no modo como educamos nossos alunos e filhos. Pensei em quanto de mentira está presente no nosso cotidiano; que tipo de mentira aceitamos, que tipo descartamos e que tipo abominamos. Sei que ela pode significar muita coisa: uma proteção, uma forma de autopreservação, uma necessidade... Ela pode se justificar também pelas mesmas razões.

Na fábula acima pode-se perceber que há uma maneira muito interessante de lidar com uma mentira: inventando outra. O galo preservou nada menos que a própria vida, inventando uma lorota que salvou sua pele e afastou o mentiroso sem causar danos a ninguém. Aplicar uma boa mentira, nesse contexto, foi sensato. Contudo, nem sempre isso é possível. Muitos de nós não consegue ter essa presença de espírito e se ressente de imediato ao ouvir uma mentira (quando é possível detecta-la). Além disso, ela geralmente tem conseqüências nocivas, efeitos prolongados e destrutivos. Quase todos nós tememos isso.

A mentira tem um efeito atordoante; afasta e causa ódio algumas vezes; é poderosa. Quem pode com ela ?!

Talvez a verdade possa mais do que ela. Mas essa competência é privilégio de poucos. É preciso ter coragem e autoconfiança para fazer a opção pela verdade.

O mentiroso pode ser alguém com muitos recursos e imaginação fértil, mas que ao mesmo tempo fica prisioneiro de uma imagem, não faz laços, não se entrega.

Quem escuta e acredita numa mentira contribui para manter viva uma ilusão, ou um lugar imaginário que o mentiroso deseja ocupar. Através dela o mentiroso realiza um desejo. Esse desejo pode servir de referencial para uma ambição ou projeto de vida. A mentira é, algumas vezes, uma conspiração da imaginação, uma fantasia planejada. Mas pode ser perigosa quando substitui a realidade.

Segundo o dicionário Aurélio, “mentir é negar o que se sabe ser verdade, proferir como verdadeiro o que é falso; degenerar...”

Mentir é iludir, enganar, despistar.

Há como mentir sem prejudicar alguém? Quando nossos alunos e filhos mentem, o que fazemos? Como nos sentimos? Qual a orientação que podemos dar a eles?

Lidar com a mentira não é tarefa fácil.

Quando nossos filhos e alunos precisam mentir, parece-me que é porque não encontram espaço para se exporem. Mentem quando são pressionados. Mentem se a resposta for também uma mentira.

Creio que é preciso mostrar a eles que compreendemos a razão e a necessidade de se inventar uma mentira numa situação conflituosa. Acho também que podemos mostrar nosso ressentimento ou, algumas vezes, concordar com suas motivações.

Mas é preciso que cada um tenha clareza daquilo que pode ou não caber numa mentira, e clareza do que ela pode significar.

Um bom exercício para isso é refletir sobre a ética.

Ética é um conceito subjetivo que todos compreendemos sem saber explicar direito. Ética tem a ver com o bem e o mal; é princípio. É permanente, enquanto a moral, por exemplo, é temporal. Ética é universal.

Freud escreveu que a ética faz parte do superego cultural. Ou seja, é ela que nos oferece uma idéia dos limites que precisamos respeitar ao nos relacionarmos uns com os outros.

A família e a escola precisam ser éticas e críticas, para ensinar, formar e transformar. Os pais e educadores têm um papel importante nessa questão.

Lembro-me de um caso interessante que aconteceu comigo na escola pública que estudei:

Aos 12 anos de idade apaguei uma falta do diário de classe da professora, sem me dar conta da gravidade do ato e rindo muito daquela brincadeira (como todo adolescente adora fazer!). Um ou dois dias depois a coordenadora entrou em sala, comentando o ocorrido. Nos primeiros minutos entrei em pânico. Mas à medida que falava, voltei a respirar. Ela deixou claro que gostaria que o aluno responsável se apresentasse à diretoria, apenas para conversar; não haveria castigo ou punição e ninguém ficaria sabendo quem era essa pessoa.

Diante dessa postura discreta e tolerante da coordenadora me senti à vontade para ter essa conversa com o diretor.

A escola tratou o assunto de um modo delicado e competente, oferecendo-me a chance de fazer uma opção. O caso poderia ter rendido mais mentiras desnecessárias, e uma hierarquização negativa da relação entre jovem e adulto.

Foi uma experiência marcante, que revelou um aspecto da minha personalidade, à medida que me permitiu fazer uma escolha: falar a verdade.

A escola pode contribuir sempre para transformar os jovens, e no caso que trato aqui, transforma-los em adultos que saibam colocar a mentira no seu devido lugar.