PUB


 

 

Para uma compreensão multifactorial do abuso sexual em díades (3ª Parte)

1998
acampospt@yahoo.ca
Finalista da licenciatura de Psicologia da Universidade do Porto.

A- A A+
Para uma compreensão multifactorial do abuso sexual em díades (3ª Parte) Índice

Índice

Introdução

Conhecimento da realidade do abuso e agressão sexuais

Definições e concepções do abuso sexual

Factores associados à presença do abuso sexual
 

1ª Parte
   1. Variações das percepções de abuso sexual e consequente comportamento abusivo
        As diferenças nas percepções do abuso sexual
        A Teoria da Socialização do Papel Sexual
        A Hipótese da Atribuição Defensiva
        A "má comunicação" entre os sexos
        Outras variáveis que afectam as percepções de abuso sexual
 
2ª Parte
   2. Diferenças e semelhanças entre os sexos
        As diferenças de género na sexualidade: algumas teorias distintas
        Os papéis de género e as atitudes
        A Teoria do Estatuto Sexual e a “Cultura de Violação"
3ª Parte
        A “Token Resistance”
        Expressividade e Instrumentalidade
        Abuso psicológico e abuso físico
        As agressões directa e indirecta
 
 4ª Parte
   3. Estilos de vinculação e a agressão e abuso nas relações

   4. Poder, domínio e conflito nas relações
 

5ª Parte
Instrumentos utilizados na investigação neste domínio

Reflexões finais

Bibliografia

6ª Parte

 

2. Diferenças e semelhanças entre os sexos

As diferenças de género na sexualidade: algumas teorias distintas

Todos sabemos que existem diversas teorias explicativas das diferenças de género na sexualidade. E uma vez que o principal objectivo deste trabalho é tentar levantar pistas para a compreensão mais ou menos eclética do abuso sexual em díades heterossexuais, faz todo o sentido reflectirmos sobre alguns desses modelos.

Neste sentido, vou, aqui, desenvolver sumariamente algumas dessas teorias, nomeadamente a Teoria Sociobiológica, a Teoria Psicofisiológica, a Teoria da Aprendizagem Social, a Teoria do Papel Social, e a Teoria do Guião (estas duas últimas já abordadas neste trabalho).

Convém salientar que todas estas teorias estão de acordo ao preverem que as mulheres terão um número menor de parceiros sexuais do que os homens, e que as mulheres apresentarão atitudes mais negativas relativamente ao sexo fortuito e pré-marital. Aliás, estas diferenças entre sexos (e particularmente aquela relativa às atitudes acerca do sexo fortuito) é confirmada pelo estudo de Oliver e Hyde (1993) embora sejam levantadas algumas questões acerca da fiabilidade dos resultados.

No entanto, e acima de tudo, pretende-se que estas teorias forneçam o seu contributo para a compreensão dos mecanismos que poderão estar por trás das diferenças entre sexos.

 

A Teoria Sociobiológica

A Teoria Sociobiológica tenta aplicar a biologia evolutiva na compreensão das causas distais dos comportamentos sociais humanos. Assim, e como consequência do seu estudo acerca da existência do double-standard (as atitudes permissivas da sociedade para com a promiscuidade masculina e a intolerância para com a promiscuidade feminina) os sociobiólogos apresentam esta teoria.

Tal como Oliver e Hyde (19939) referem, os sociobiólogos salientam que os espermatozóides são abundantes (o corpo masculino produz milhões por dia) enquanto que o óvulo (em comparação com os espermatozóides) é bastante raro (é produzido apenas um por mês). Assim, faz sentido evolutivamente que o homem (o macho) insemine muitas mulheres (fêmeas) enquanto que estas sejam particularmente cuidadosas com os genes (espermatozóides) que fecundam o seu raro óvulo. Aliás, na maior parte das espécies é a fêmea que finalmente decide se acasala ou não (in Gleitman, 1993); além disso, é a fêmea que arca com os maiores custos da reprodução e têm maior responsabilidade biológica que o macho.

As previsões da sociobiologia acerca das diferenças de género no comportamento são, então, claras: os homens deverão ser mais permissivos relativamente a sexo fortuito e deverão ter um maior número de parceiros sexuais diferentes, enquanto que as mulheres deverão ser menos permissivas relativamente a sexo fortuito e deverão ter um menor número de parceiros diferentes.

Os sociobiólogos defendem que, embora os homens possam ser um pouco mais permissivos que as mulheres relativamente ao sexo extra-conjugal praticado por si próprios, eles mostram uma particular desaprovação do envolvimento das mulheres neste. Uma vez que a certeza de paternidade é menor que 100%, uma gravidez resultante de uma relação extra-conjugal poderá querer dizer que o cônjuge está a utilizar os seus recursos para criar a criança de outro homem, e não a transmitir eficazmente os seus próprios genes à próxima geração. Estas são, então, origens do ciúme sexual dos homens, e dos seus esforços para controlar a sexualidade das mulheres (Smuts, 1992; cit. in Oliver e Hyde, 1993).

Sem querer menosprezar esta teoria, há que referir que a selecção natural para os padrões de comportamento sexual ocorreu em sociedades muito diferentes da actual. Neste sentido, é provavelmente impossível testar devidamente as predições da sociobiologia na sociedade actual, tão diferente das sociedades ancestrais, nas quais a selecção natural presumivelmente ocorria.

Buss e Schmitt (1992; ibid.) desenvolveram uma teoria da evolução dos padrões de acasalamento mais adaptada com a sua Teoria das Estratégias Sexuais. Trata-se de uma teoria da psicologia evolutiva que toma em consideração tanto padrões estabelecidos pela evolução como padrões estabelecidos no presente contexto cultural. Estes autores defendem que os homens e as mulheres têm diferentes estratégias sexuais e, ainda, que as estratégias diferem para cada um, dependendo do facto do contexto ser de acasalamento a curto-prazo (ex.: sexo fortuito) ou a longo-prazo (ex.: casamento). O acasalamento a curto-prazo constituirá uma maior componente da estratégia sexual masculina do que da feminina (i.e., os homens concordam mais com e estão mais interessados em sexo fortuito do que as mulheres), e as mulheres, de uma forma geral, necessitarão de sinais mais fiáveis de que um homem está comprometido com elas a longo-prazo como um pré-requisito para acontecerem relações sexuais (i.e., no geral, as mulheres não estão interessadas em sexo fortuito porque nesse contexto elas não podem estar certas dos recursos do homem ou da disponibilização desses recursos para a mulher).

Por defenderem que as diferenças de género são controladas pelo património genético resultante de gerações de selecção natural, os sociobiólogos não conseguem lidar com a mudança desenvolvimental ao longo do ciclo vital. Contudo, algumas tentativas mais recentes de aplicar os seus princípios têm defendido que a selecção natural das estratégias reprodutivas com mais sucesso poderá ter diferentes efeitos em diferentes etapas do desenvolvimento e em diferentes contextos sociais (ex., Belsky et al., 1991; ibid.).

Com base no estudo de Oliver e Hyde (1993), as grande diferenças entre sexos ao nível do número de parceiros sexuais defendidas por esta teoria parecem esbater-se um pouco na actualidade. Uma possível explicação passa pela existência de contraceptivos altamente eficientes, os quais poderão muito bem ter mudado a natureza das estratégias reprodutivas das mulheres. Quando a actividade sexual não envolve reprodução, e segundo o quadro de leitura da sociobiologia, as mulheres poderão ter tantos parceiros sexuais quanto os homens sem fazerem investimentos parentais insensatos. Isto assume, como é óbvio, uma perspectiva cognitiva relativamente às decisões acerca do comportamento sexual que está omissa na teoria sociobiológica.

 

A Teoria Psicofisiológica

A principal diferença entre a sexualidade humana e a sexualidade animal diz respeito à flexibilidade do comportamento sexual. Comparados com os animais somos muito menos automáticos nas nossas actividades sexuais, muito mais variados e muito mais influenciados pelas experiências anteriores (...) sobretudo as experiências precoces (Gleitman, 1993).

Esta diferença entre comportamento sexual humano e comportamento sexual animal é particularmente nítida no que respeita ao efeito das hormonas. Em ratazanas e gatos o comportamento sexual está, sobremaneira, dependente dos níveis hormonais: Machos castrados e fêmeas ovariectomizadas deixam de copular alguns meses depois de lhes terem sido retiradas as gónadas (Gleitman, 1993). Na nossa espécie, no entanto, a actividade sexual pode persistir durante anos ou décadas após a castração ou a ovariectomia desde que a operação se tenha realizado depois da puberdade (Bermant e Davidson, 1974; in Gleitman, 1993)

A autonomização do sexo relativamente ao controlo hormonal é evidente nas fêmeas humanas. É verdade que as mulheres se encontram sujeitas a um ciclo fisiológico, mas este tem relativamente pouco impacto no comportamento sexual, pelo menos se comparado com os efeitos profundos observados nos animais.

Embora a nossa espécie não seja, como outras, escrava das próprias hormonas, isto não significa que os factores hormonais não tenham efeito. Injecções de androgéneos em homens que tenham níveis hormonais excepcionalmente baixos aumentam, em geral, a sua motivação sexual.

Outra demonstração dos efeitos das hormonas provém de estudos sobre o ciclo menstrual. Apesar de as mulheres se encontrarem sexualmente receptivas durante todo o ciclo, existem algumas variações dentro desse período. A apetência e a actividade sexuais tendem a ser mais elevadas durante a fase média do ciclo, quando ocorre a ovulação (Hamburg, Moos e Yalom, 1968; in Gleitman, 1993).

Um dos principais argumentos para o facto dos homens serem vistos tão frequentemente como mais agressivos que as mulheres são as presumidas ligações testosterona–agressão e androgénio-agressão. Assim, é também importante reflectirmos sobre este mito, e pensarmos se ele é ou não verdade.

A ligação entre o nível de testosterona presente no soro sanguíneo humano ou na saliva e a agressão não está estabelecida, e a ligação testosterona–agressão é muito incerta, no que diz respeito ao homo sapiens (Björkqvist, 1994). É verdade que em vertebrados não humanos os machos são, de uma forma geral (fisicamente) mais agressivos que as fêmeas. Em alguns mamíferos, esta diferença na combatividade é evidente mesmo nas brincadeiras infantis (in Gleitman, 1993). Isto não é, contudo, verdade para todas as espécies, tal como Adams (1992; cit. in Björkqvist, 1994) mostra.

Os resultados respeitantes aos humanos são inconsistentes: alguns autores afirmam que pode ser estabelecida uma ligação (por ex., Donovan, 1985; ibid.); níveis altos de testosterona no sangue dos machos estão relacionados com uma maior agressividade, enquanto que níveis de testosterona inferiores correspondem a uma menor agressividade. Esta generalização parece ser verdadeira não só para mamíferos, tendo sido estudada sobretudo em ratos, macacos e machos da nossa espécie (Davis, 1964; in Gleitman, 1993).

Pelo contrário, outros autores, tais como Benton (1983a, 1983b, 1992; cit. in Björkqvist, 1994) são da opinião de que, com base nos dados existentes, não há nenhum motivo para sugerir que a agressão humana esteja relacionada com o nível de testosterona. Benton (ibid.) salienta que a defesa de uma relação entre testosterona e agressão está baseada primariamente em dados animais. Nos humanos, os mecanismos sociais e cognitivos desempenham um papel muito superior ao dos factores fisiológicos. Quanto mais perto do homem está o animal, menor a influência da testosterona na agressão. No homem, afirma Benton (1992; ibid.), o comportamento agressivo é um reflexo da história psicossocial e as diferenças na agressividade pouco podem ser atribuídas ao nível de testosterona.

Björkqvist et al. (1993a; ibid.) salientam que os estudos que sugerem uma relação entre testosterona e agressão podem ter a ver com a nossa cultura, onde se partilha o já referido "mito" acerca da agressividade masculina e da mulher submissa, estabelecendo-se relações de causalidade, uma vez que o homem apresenta maior taxa de testosterona no soro sanguíneo.

Os investigadores tendem também a discordar da ligação androgénio–agressão: enquanto alguns estudos encontraram uma relação entre o nível de androgénio e a agressividade (por ex.: Olweus et al., 1980; ibid.), outros não (por ex.: Lindman et al., 1992; ibid.). Foram relatadas recentemente quatro experiências nas quais eram induzidos androgénios a sujeitos masculinos e o nível era medido com diferentes instrumentos. Três destes estudos não detectaram um aumento na agressividade como consequência da toma de androgénio (Björkqvist et al., 1993; ibid.), enquanto que no outro estudo (Hannan et al., 1991; ibid.) foi detectado um aumento. Neste sentido, uma vez que os resultados nulos são menos susceptíveis de serem publicados é possível, e mesmo provável, que o número de estudos conduzidos com um resultado negativo ultrapasse largamente aqueles com resultado positivo.

As diferenças sexuais na agressão são mais susceptíveis de serem desenvolvidas através de mecanismos de aprendizagem e não estarem ligadas directamente a hormonas. Tal como foi salientado atrás, não existe nenhuma relação óbvia entre hormonas e agressão nos humanos – talvez porque o desenvolvimento de funções cerebrais superiores nos humanos tornou possíveis outros estilos de agressão além dos físicos: métodos mais subtis mas, ainda assim, altamente eficazes, nos quais o poder físico directo não é um pré-requisito (Björkqvist, 1994).

Assim, e uma vez que a sexualidade humana é muito mais flexível e menos automática do que a dos animais, devemos tomar em consideração esta teoria como um contributo para o presente trabalho, devidamente relativizada pela força que os mecanismos de socialização têm.

 

A Teoria da Aprendizagem Social

Segundo a Teoria da Aprendizagem Social as diferenças de género são moldadas através dos reforços positivos que são dados aos comportamentos compatíveis com o papel de género definido, enquanto que os comportamentos não compatíveis são ignorados ou talvez punidos, tornando-se, assim, menos frequentes.

Assim, a teoria da aprendizagem social faz duas predições acerca dos padrões das diferenças de género no comportamento sexual. Primeiro, é defendido que pode haver mudança ao longo do tempo nas diferenças de género em função da mudança das normas para o comportamento sexual e em função da mudança das imagens veiculadas pelos media, as quais fornecem modelos para imitação. Segundo, é apresentada a double-standard (Sprecher et al., 1987; ibid.) a qual, em termos de aprendizagem social, significa que as mulheres são punidas por actividades sexuais tais como ter numerosos parceiros sexuais ou envolver-se em sexo fortuito, enquanto que os homens não tendem a ser punidos mas, pelo contrário, recompensados (através de admiração, ou superior status social) por esses comportamentos. Neste sentido, a teoria da aprendizagem social prevê um menor número médio de parceiros sexuais para as mulheres do que para os homens. Também prevê que as mulheres apresentam atitudes mais negativas acerca do sexo fortuito do que os homens. Finalmente, defende que existe uma diferença de género na permissividade sexual, mais concretamente no sentido da menor permissividade das mulheres.

 

A Teoria do Guião

Os guiões (sociais) normalizam as interacções para minimizar o risco nas fases iniciais de uma relação (Holmes, 1981; cit. in Semonsky e Rosenfeld, 1994), definindo de forma eficaz quem as pessoas são e os papéis que desempenham (Holzner & Robertson, 1980; ibid.).

Embora existam numerosos guiões normalizadores dos nossos comportamentos e posturas nas mais diversas esferas da nossa vida, os guiões sexuais são particularmente importantes. Assim, podemos encontrar uma articulação clássica da Teoria do Guião aplicada à sexualidade na obra de Gagnon e Simon (1973; ibid.) "Sexual Conduct". Estes autores utilizam o termo "guião" (script) de duas formas: Uma lida com o interpessoal, no qual o guião organiza as convenções partilhadas que permitem que duas pessoas participem num acto sexual complexo que envolve interacção mútua; a outra lida com os estados internos e motivações onde o indivíduo tem certos guiões que produzem activação e predispõe para a actividade sexual.

A teoria do guião enfatiza o significado “simbólico” dos comportamentos. Gagnon e Simon afirmam que o significado da sexualidade está bastante ligado ao prazer individual nos homens e à qualidade da relação nas mulheres.

Mosher e Tomkins (1988; ibid.) desenvolveram a teoria do guião no seu trabalho sobre o “Macho Man” e a personalidade de “macho” nos homens. Segundo estes autores, a personalidade “macho” consiste na crença de que a violência é “de macho”, e a crença de que o perigo é excitante. Nem todos os homens, obviamente, se tornam “Macho Men”, mas a existência do guião significa que ele influencia todos os homens, alguns mais, outros menos (Oliver e Hyde, 1993).

 

A Teoria do Papel Social

A articulação entre a Teoria do Papel Social e a sua aplicação ao papéis de género e às diferenças de género foi efectuada por Eagly (1987; cit. in Oliver e Hyde, 1993) e Eagly & Crowley (1986; ibid.).

Esta teoria assenta, basicamente, no facto de não existirem dúvidas de que os comportamentos sexuais são governados por “papéis” e “guiões”. Assim, a heterossexualidade é vista como fazendo parte de ambos os papéis masculino e feminino (Bem, 1981; ibid.), à medida que, e segundo esta teoria, a homossexualidade será vista como uma violação mais séria dos papéis para homens e mulheres, já que entra em nítida contradição com esses guiões.

Também à luz desta teoria se pode enfatizar a double-standard sexual atrás discutida (Sprecher et al., 1987; ibid.), já que esta se mostra crítica na definição dos papéis masculinos e femininos no reino da sexualidade.

Com base em tudo isto, a teoria do papel social, à semelhança da teoria da aprendizagem social, pode compreender e prever a mudança, ao longo do tempo, dos padrões das diferenças de género, à medida que os papéis de género mudam.

 

Os papéis de género e as atitudes

As diferenças dos papéis de género (estereotípicos) entre homens e mulheres parecem ser uma das possíveis explicações tanto para as diferentes percepções de situações de abuso por parte dos dois sexos, como para as diferentes atitudes e comportamento entre sexo masculino e sexo feminino.

Parece existir uma tendência para percepcionar os homens de forma mais negativa do que as mulheres quando estes transgridem o seu papel de género (Jackson & Sullivan, 1990; Martin, 1990; Moller, Hymel, & Rubin, 1992; cit. in McCreary, 1994). Pais, pares e professores mostram mais preocupação quando os homens (tanto crianças como adultos), ao contrário das mulheres, se desviam das suas prescrições de papel de género tradicionais (Lytton & Romney, 1991; ibid.). Os homens descritos como tendo atitudes ou comportamentos tradicionalmente femininos são, ainda, percebidos como sendo menos atraentes e menos populares do que os homens descritos como tendo atitudes tradicionalmente masculinas (Jackson & Sullivan, 1990; Martin, 1990; ibid.).

Estas atitudes parecem estar relacionadas com os dados que mostram que os homens têm maior tendência para ser punidos por actuarem como “maricas”, enquanto que as mulheres que actuam como “maria-rapaz” tendem a ser toleradas e mesmo recompensadas pelos outros (Archer, 1984; 1993; Hemmer & Kleiber, 1981; Maccoby, 1986; ibid.). Ficou demonstrado que as acções dos pais e dos pares afectam significativamente a demonstração que as crianças fazem dos comportamentos “típicos” do seu género. Os pais, especialmente os progenitores masculinos, compensam mais os rapazes que as raparigas por demonstrarem formas de brincar congruentes com o seu género. Também tendem a punir os rapazes de forma mais severa do que as raparigas pelos desvios às normas de papel de género (Langlois & Downs, 1980; Lytton & Romney, 1991; ibid.). Similarmente, os homens influenciam os seus pares do mesmo sexo8 através da recompensa e punição sociais; aqueles que actuam de uma forma estereotipicamente feminina serão mais provavelmente gozados ou, num extremo, rejeitados pelos seus grupos de pares masculinos (Moller, et al., 1992; ibid.).

As reacções dos pares às raparigas que se desviam do seu papel feminino tradicional é bastante diferente; o seu comportamento tende a ser ignorado e algumas vezes mesmo recompensado com alto estatuto social nos seus grupos de pares femininos (Thorne, 1986; ibid.).

A punição e reforço qualitativa e quantitativamente diferenciados para as transgressões do papel de género conduzem muitos homens a evitarem aquilo que a sociedade prescreveu como sendo femininamente valorizado. O “evitamento da femininidade” emergiu como um factor significativo em todos os estudos que tentam compreender as dimensões subjacentes à masculinidade e ao papel de género masculino (Thompson, Pleck, & Ferrera, 1992; cit. in McCreary, 1994). Porque evitam o papel feminino, falta aos homens a capacidade para experienciar tanta “femininidade” quanto as mulheres experienciam a “masculinidade”, e como resultado encontram um maior grau de restrição no desenvolvimento e expressão do seu papel de género. Este conceito foi referido como a rigidez do papel de género masculino (Archer, 1993; cit. in McCreary, 1994).

Estes dados deverão fazer-nos pensar acerca da forma como o abuso sexual é compreendido na investigação, assim como sobre a operacionalização das relações possuidoras ou desprovidas de situações de abuso.

Um dos possíveis modelos que tentam explicar o desenvolvimento da referida rigidez do papel de género masculino é a Hipótese da Orientação Sexual. Esta hipótese assume que as características e comportamento de papel de género observadas estão intimamente ligadas à orientação sexual percebida nos homens, mas não nas mulheres. Logo, a assimetria das percepções das pessoas aos desvios de papel de género masculinos e femininos é motivada, em parte, pelo pressuposto implícito de que as transgressões masculinas são sintomáticas de uma orientação homossexual.. Uma vez que a sociedade é homofóbica no global (mas especialmente para com os homens), ser homossexual é um resultado negativo e deverá ser evitado (ex: Herek, 1984; cit. in McCreary, 1994).

Quando se descreve um homem ou uma mulher que actua de uma forma contra-género, os sujeitos atribuem mais frequentemente uma maior probabilidade do alvo ser homossexual. O estudo de Antill (1987; cit. in McCreary, 1994) acerca das crenças parentais sobre a sexualidade e os papéis de género mostra que, mesmo embora acreditassem que a homossexualidade tinha uma base biológica, os pais mesmo assim tenderiam a considerar um comportamento contra-género como um sinal de homossexualidade nos rapazes mas não nas raparigas. Isto leva estes pais a demonstrarem um maior grau de preocupação acerca do comportamento contra-genéro dos rapazes.

Estas observações assumem uma dimensão ainda maior dentro do tema deste trabalho quando interpretamos a maior frequência de abuso masculino à luz de um cruzamento entre esta hipótese e a socialização mais estrita e reduzida, e a menor liberdade para se desviar do seu estereótipo que os homens parecem viver (Harrison, 1978; Morin & Garfinkle, 1978; Hatfield, 1983; cit. in Semonsky e Rosenfeld, 1994).

 

A Teoria do Estatuto Sexual e a “Cultura de Violação”

Segundo a literatura acerca do sexo e estatuto aplicados a estas situações, os homens têm mais apoio que as mulheres para se afirmarem em situações sexuais: é esperado que os homens iniciem as relações, desempenhem os avanços sexuais (Blumstein & Schwartz, 1983; cit. in Semonsky e Rosenfeld, 1994); e estejam numa posição de controlo, poder e dominância (Hendrick et al., 1985). Por outro lado, existem dados que indicam que os homens estão mais limitados pela socialização do papel sexual do que as mulheres (O´Leary & Donoghue, 1978; cit. in Semonsky e Rosenfeld, 1994).

A socialização dos agressores masculinos e as pacifistas femininas contribuem para a "cultura de violação" que encoraja os comportamentos de abuso (Bart, 1979; Wood, 1993; cit. in Semonsky e Rosenfeld, 1994). Também contribui para a "cultura de violação" a tendência da sociedade para colocar a culpa nas vítimas em oposição aos agressores (Burt, 1980; Calhoun et al., 1976; Giocopassi & Dull, 1986; ibid.), fenómeno que também é conhecido pelo “não”9 que significa “sim”, o denominado mito da violação que, segundo Scully & Morolla, (1984; ibid.), é usado frequentemente por violadores para justificarem as suas acções.

Numa estrutura social onde é dado tradicionalmente o controlo aos homens, seria lógico que estes tivessem mais apoio social na determinação do seu comportamento sexual. Porque é suposto, na sociedade norte-americana, que sejam os homens a iniciar os encontros sexuais, e porque as pessoas que iniciam maior intimidade têm maior poder e controlo nas relações (Henley & Freeman, 1984; cit. in Semonsky e Rosenfeld, 1994), os homens deveriam ter mais apoio social do que as mulheres para a sua auto-determinação sexual.

Surpreendentemente, o estudo de Margolin (1990; ibid.) acerca dos apoios sociais disponíveis para a auto-determinação sexual em relação a violações sexuais "menores" detectou o oposto. Neste sentido, Margolin (ibid.) afirma que “os homens recebem menor apoio social para determinarem e afirmarem o seu comportamento sexual do que as mulheres”, já que este autor observou um fornecimento de menor apoio social aos homens do que às mulheres para afirmarem ou reivindicarem a sua sexualidade (i.e. violar o consentimento e não dar consentimento relativamente a um abuso “menor”, nomeadamente “dar um beijo”). Apesar de não pretenderem estudar os apoios sociais disponíveis para a auto-determinação sexual, Semonsky e Rosenfeld (1994) também observaram esta diferenciação do apoio social.

Embora a sociedade coloque os homens na posição dominante, eles são socializados de forma mais estrita e reduzida, e têm menos liberdade para se desviar do seu estereótipo do que as mulheres (Harrison, 1978; Morin & Garfinkle, 1978; ibid.). Os papéis sexuais definem o homem como ansioso por sexo (Hatfield, 1983; ibid.), como dominante e em controlo (Maccoby & Jacklin, 1974; ibid.) e como iniciadores sexuais (Axelrod, 1993; ibid.).

Margolin (1990; ibid.) considera a possibilidade deste menor apoio social para a acção em abusos sexuais “menores” ter a ver com os seus papéis dominantes masculinos, os quais são reforçados socialmente, o que faz com que sejam percebidos como ameaçadores. Também, se os homens estão mais limitados pela socialização do papel sexual do que as mulheres (O´Leary & Donoghue, 1978; ibid.), então um desvio das normas sociais (i.e., não dando consentimento para um beijo) poderá relacionar-se com uma correspondente perda de confiança para os homens, mas não para as mulheres.

No seguimento dos trabalhos de Margolin, Semonsky e Rosenfeld (1994) observaram que, na sociedade americana, por um lado se verificava intolerância relativamente aos comportamentos de abuso e violação, (independentemente do sexo do violador), enquanto que por outro, e apesar disto, existiam fortes diferenças sexuais nas percepções das violações e abusos sexuais e duplos critérios no apoio social para determinar o comportamento sexual.

Em primeiro lugar, as avaliações dependiam da severidade percebida das situações e do tipo de comportamento do abusador. De facto, observou-se que quando uma situação de potencial abuso sexual se caracterizava por “dar um beijo” (situação sem consentimento explícito mas de severidade ligeira), os sujeitos não viam esse comportamento como se tratando de uma verdadeira situação de abuso (Margolin, 1990; cit. in Semonsky e Rosenfeld, 1994).

Outra conclusão importante do estudo de Semonsky e Rosenfeld (1994) é a diferenciação de percepções dos comportamentos abusivos quando estes são efectuados por indivíduos do sexo masculino ou do sexo feminino. Quando as situações de abuso são promovidas por uma mulher estas são vistas como menos previsíveis, mais elogiosas do abusado, menos ameaçadoras e menos agressivas do que quando é um homem a ter este comportamento. Inclusivé, esta diferenciação em função do género do abusador poderá fazer a diferença entre considerar-se a presença ou a ausência de uma situação de “abuso”. Esta realidade é, ainda, apoiada pelas diferenças de sexo observadas por Björkqvist (1994) na maior utilização de estratégias agressivas directas (físicas, verbais) nos homens, e indirectas (verbais, manipulação social) nas mulheres, sendo as primeiras aquelas socialmente associadas ao abuso.

A explicação base para esta diferenciação de cenários é o desvio dos papéis sexuais. Os papéis sexuais criam um modo normativo para interacção e fornecem uma base de identidade para a acção em situações de dating (Wood, 1993; ibid.). Desviando-se dos guiões sociais para uma interacção determinada socialmente, os interactores desenvolvem dúvida quanto à sua identidade social, uma identidade que é vital para a existência da confiança (Goffman, 1959; ibid.).

Outro motivo poderá ser o facto das mulheres e homens serem percebidos de forma diferente quando iniciam o toque. Quando as mulheres iniciam o toque são vistas como aumentando a intimidade, enquanto que os homens são vistos como exercendo poder e controlo (Hall, 1984; ibid.).

Uma terceira explicação é, como Margolin (1990; ibid.) refere, os homens geralmente serem vistos como mais ameaçadores do que as mulheres, em virtude de, principalmente, terem mais força física. Assim, o cenário Mulher Agressora não contém o mote da ameaça presente no cenário Homem Agressor, o qual está mais perto do paradigma da violação comum (Semonsky e Rosenfeld, 1994).

Também ao nível do género dos indivíduos que emitem uma percepção da provável situação de abuso se verificam diferenças: Os homens, mais do que as mulheres, consideraram o desvio da mulher relativamente à socialização do seu papel sexual como menos ameaçador, menos agressivo, mais elogioso do abusado, e mais aceitável do que o desvio de um homem das suas expectativas do papel sexual (Semonsky e Rosenfeld, 1994).

Um motivo possível para os homens avaliarem as mulheres de forma mais positiva como agressores poderá ser, tal como Margolin (1990) defende, a existência de uma fantasia de violação masculina. Outra explicação poderá passar pelo facto do sexo ser central para o auto-conceito masculino (O´Neil, 1981; cit. in Semonsky e Rosenfeld, 1994): os homens são socializados para serem sexualmente activos e sempre ansiosos por relações sexuais (Gagnon & Simon, 1973; ibid.), enquanto que as mulheres são limitadoras da actividade sexual (Hatfield, 1983; ibid.). Aliás, esta explicação é reforçada não só por os homens mostrarem maior apoio do que as mulheres para as acções que conduzem à actividade sexual, mas também pelo facto dos homens fornecerem menos apoio do que as mulheres para os comportamentos sexuais limitativos (recusa explícita) (Semonsky e Rosenfeld, 1994).

Por sua vez, no estudo de Katz et al. (1996) as mulheres pareceram ser menos tolerantes às situações de abuso ou “assédio” sexual do que os homens, apresentando-se mais susceptíveis de interpretar interacções hipotéticas como “assédio sexual”, sendo as avaliações dessas perseguições superiores quando o abusador era um homem. Surpreendentemente, isto mostrou-se verdade também quando o abusador e observador eram mulheres. A divergência de percepções segundo a variável “interacção abusador-vítima” sugere que os homens aplicam uma medida diferente para definir o “assédio”, dependendo de ser o homem a importunar a mulher, ou a mulher a importunar o homem, mesmo embora o comportamento em questão seja o mesmo. Em contraste, as mulheres parecem ser mais consistentes e equilibradas nas suas interpretações, independentemente do sexo do abusador (Katz et al., 1996).

O facto de homens e mulheres não diferirem nas suas percepções quando se tratava de uma situação hipotética de abuso masculino é uma descoberta potencialmente importante porque contradiz os postulados de outros investigadores que vão no sentido de que as mulheres são menos tolerantes do que os homens acerca da perseguição sexual por homens (Charney e Russell, 1994; Jones e Remland, 1992; cit. in Katz et al., 1996).

Em contraste, nas situações onde a mulher é a abusadora e o homem a vítima, os sujeitos masculinos e femininos do estudo diferiram nas suas percepções.

Independentemente da situação os homens avaliaram a perseguição pelas mulheres de forma menos negativa que as mulheres. Este dado sugere que os homens poderão estar mais inclinados para interpretar a perseguição por mulheres como lisonja ou sedução (Shea, 1993; ibid.). Muitos homens poderão também não acreditar que um homem possa ser perseguido por uma mulher, ou, poderão considerar de forma menos séria esse comportamento porque as mulheres são normalmente consideradas como fisicamente menos poderosas. Ainda, por oposição à publicidade que é frequentemente dada aos abusos masculinos, tem sido feita uma menor divulgação pública dos abusadores femininos, com particular relevo para a excepção que o livro de Michael Crichton (1992; ibid.) constituiu, e o qual acabou por originar o filme “Disclosure” (com Michael Douglas e Demi Moore).

Por sua vez, existem várias interpretações possíveis para as mulheres responderem de forma semelhante em ambas as situações de perseguição masculina e feminina: uma é a de que as mulheres poderão estar mais sensíveis aos comportamentos de "abuso sexual" porque, historicamente, a perseguição sexual tem sido uma ofensa cometida por homens contra mulheres (MSPB, 1988; ibid.). Neste sentido, elas poderão ter tido um acesso mais frequente a informação sobre este tipo de abuso sexual (ou mesmo tê-lo experienciado), ou serem capazes de se identificarem com as potenciais vítimas independentemente do género da vítima (Charney e Russell, 1994; ibid.).

A teoria da atribuição (Kelly e Michela, 1984; ibid.) é utilizada frequentemente para explicar estes dados. Segundo Pryor (1985; ibid.), por exemplo, ver-se (ou não) determinado comportamento como “assédio sexual” depende da informação contextual, das expectativas do observador e, em particular, do quanto o comportamento é visto como excessivo para o abusador. Por exemplo, em situações heterosociais, os homens são, mais que as mulheres, socializados para iniciar a actividade sexual (Crooks e Baur, 1993; ibid.). São frequentemente encorajados para serem sexualmente agressivos, para serem dominantes e fortes fisicamente. Como resultado, as diferenças perceptivas entre homens e mulheres poderão reflectir um processo de atribuição causal que os homens aplicam selectivamente aos outros homens mas não necessariamente a outras mulheres na mesma situação.

 

Notas

  1. O termo “sexo” é usado para denotar a categoria de pertença baseada no sexo biológico (Deaux, 1993). O termo “género” é usado para referir os muitos aspectos socialmente construídos os quais são utilizados frequentemente para identificar a pertença à categoria sexual.
  2. Consultar o item deste trabalho dedicado à “token resistance”.