PUB


 

 

O gato e o joio - II

2019
pvpassos@gmail.com
Psicólogo clínico - Braga, Portugal

A- A A+
O gato e o joio - II

“Comprar gato por lebre”

“Separar o trigo do joio”

 

Floreado pelo insistente e competitivo aparato maníaco, Maria Augusta narrava a sua história (convenientemente divergente da história vivida), num cenário viciado por um irredutível e acrítico formato bélico.

Nela, para além de toda a indústria titular académica existente, constava tudo o que era “pós”.

Eram pós-graduações, eram pós-formações, eram pós-especializações e até pós-sub-especializações, predominantemente, sublinhava, adquiridas em universidades credenciadas socialmente, sobretudo internacionais.

(Vá-se lá saber como!).

Aliás, Maria Augusta fazia questão de não ter nenhuma referência a formações que não tivessem, no respectivo diploma, uma luminosa e brilhante ribalta circundante do aparatoso logótipo da instituição, de invejável apreciação.

Este ornamentado manancial curricular (tão em voga) era o quase único responsável pelo excesso de confiança que a assolapava, sobretudo nas aulas e, como tanto gostava, nas exibições nos congressos em que participava. Nestes, quanto maior o nível de importância por ela atribuído, menor a gradação da confiança.

Está de se ver que, se o nível de importância não fosse de topo, na sua avaliação (mais social que outro qualquer registo), o manifesto excesso de confiança ladeava, seguramente, o delírio e a bizarria.

Nunca Maria Augusta ficava até ao fim dos congressos, por ela tabelados abaixo do topo. Nestes, apresentava a sua comunicação (nos formais trejeitos e cânones escolares, exibidos com os apetrechos da mais encenada confiança) e logo se retirava com o desprezo de segura vedeta.

Retirava-se com a rapidez que era necessária à conveniente imagem de pessoa muito requisitada.

Quase sempre, o intencional motivo que debitava para se ir embora, era um avião para apanhar ou uma reunião agendada (no mínimo, de alto gabarito).

Assim enfeitava a necessidade e o desejo de admiração e de grandiosidade, para além de uma certa inveja que também estava no intento e que Maria Augusta admitia gerar.

Acreditava, quase piamente, na perfeição dos cenários por si criados, impedindo-se, assim, de perceber que era a única pessoa a crer em tão banais e disparatados disfarces.

As delirantes viagens, invariavelmente para o estrangeiro e a convite de algum meritíssimo colega académico, para integrar o programa de um, também, meritíssimo evento, tinham o condão de esconder o café que iria tomar na esplanada da esquina da rua onde morava.

Era ali, já sentada, que se aliviava das dores nos pés que os sapatos de saltos altos lhe causavam.

Tirava apenas os calcanhares, numa disfarçada aflição, que pousava no rebordo traseiro dos sapatos.

Os latejantes joanetes, já libertados, ressoavam alívio sob a forma do suspiro que, controladamente lhe saia pela boca.

(Quando sentia os calos apertados, reforçava a dissimulação e o cinismo, crendo que se safava de mais um confronto.

Mas repetia-se até à exaustão das circunstâncias.

Maria Augusta, sabia em sintomas, mas não sabia em consciência, que não pertencia à elite que ela balizava, mas que tudo fazia para se sentir integrante do elenco dessa protagonização).

Esquecia-se sempre que, tentar enfiar os deformados e doridos pés, novamente dentro da forma dos sapatos, era um trabalho que nem a sua perícia em dissimulação conseguia esconder.

Nunca enxergava que o seu feitio não a favorecia perante a crueldade de tais imposições corporais.

Traía-a o corpo, escarrapachando-se nas feições as expressões do dolorido esforço.

Aos desequilíbrios, tentava Maria Augusta, desviá-los de si e sem os entender.

As dores… escondia-as num sorriso amordaçado.

Cambaleando e de mente embaciada, ia-se traindo…!