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O gato e o joio - III

2019
pvpassos@gmail.com
Psicólogo clínico - Braga, Portugal

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O gato e o joio - III

 “Comprar gato por lebre”

“Separar o trigo do joio”

 

Maria Augusta era mais uma criatura que se confundia com a banal promiscuidade entre a ambição e a capacidade.

Tinha leccionado diversas matérias, contempladas no currículo do curso da universidade onde estava empregada.

Sentia um já saturado e embaciado orgulho, mas que ainda alimentava o quase pleno prestígio de realização, cuja ressonância lhe era constantemente canalizada para a intimidade falseada e magoada, mas silenciada pela compulsão ao disfarce, a que estava tão familiarizada.

Ainda assim, continuava Maria Augusta, a fomentar a miraculosa utilitária mania, quase fetichista, no seu enquadramento profissional.

Era uma ferramenta em constante actualização e, tanto quanto transparecia das intrigas internas ao seu serviço, era um elo de ligação geral das pessoas que ali se moviam.

Quase toda a gente tinha e sustentava essa ferramenta, protegida num secretismo individualizado e fortificado.

Mais não era do que um caderno com referências bibliográficas, títulos de livros, nomes de autores, citações, máximas, premissas, enfim uma vasta panóplia auxiliar dos segredos de cada um, materializados numa cábula crescente e auxiliar em todo o percurso profissional

Era um recurso constante, enfeitador do manancial redigido e oratório.

Titularia (industrial) no seu esplendor.

O conhecimento era muito mais amplo em títulos do que em conteúdos.

Da grande maioria dos livros só o título e o nome do autor se tinham cruzado com o olhar (às vezes… também a editora).

Mas isto não era impeditivo para grandes divagações, grandes discursos, conversas, comentários, expressões de deleite até, todos dignos de moldura. Poucos liam. Liam apenas o essencial (um resumo, uma sinopse…) para construção da confabulação, eventualmente necessária para transparecer num ou noutro contexto.

Era uma competição, eram homens e mulheres em silenciosas preces divinas, disfarçadas de conhecimento, a ver quem exibia o primor da novidade mais clássica ou da mais actual, constante no cadernito (agora em formato electrónico) e adquirido, descoberto ou copiado em última hora.

O sentimento partilhado estava tão entranhado pelo comportamento infantilizante, de esconder o tesouro de cada um, que impedia que se tornassem conscientemente maduras as atitudes dentro da universidade.

Um monte de papéis na mão e um ar apressado, meio sério e longínquo, preferencialmente com um lápis apontando subtilmente para os raciocínios que se vão fingindo ter, serve eficazmente para representação de invejável qualidade na tarefa e com a garantia de qualidade (ou de “excelência”, como em voga).

Império da perícia neste disfarce, a que se fingiam alheios.

Cenário montado… infausto elenco em palco.

Como professora, Maria Augusta, era só mais uma que ia participando e vivendo neste declarado enredo, entre os sorrisos das cores que a cada um fosse conveniente e consumisse menos combustível humano.

Nisto “também sou perita”, pensava de si, num invisível sorriso.

Tinha a particularidade do exagero, que se reflectia igualmente na matéria de recolhas.

Era uma acumuladora, tal como a compulsão para o coleccionismo.

Tinha cadernos e cadernos cheios com tudo o que se possa imaginar que fossem títulos, nomes de autores, excertos e citações.

Mas impunha e cumpria a regra de apenas as consideradas grandes referências no assunto. Tudo o que não fosse assim balizado, não constava nos cadernos das cábulas de Maria Augusta, sendo considerados escritos que integravam a heresia e a ofensa académicas, apenas por generalização do preconceito e não por terem sido julgadas por leitura avaliativa.

Eram inconcebíveis e proibidas, estava banalizado, tais misturas, no interior daquelas domésticas (apesar de ferozes) guerras. Não havia brecha possível. Desde que não estivessem balizados pelas medidas estipuladas nas ocasionais valorizações institucionais, muito material escrito era condenado sem julgamento. Um texto era crucificado, sem ter sido lido, apenas porque era proveniente de alguém, lugar ou instituição, que constasse na rigorosa lista a abater.

O prestígio era o alcance geral e valia tudo para o conseguir, ou manter, ainda que apenas por construção, subjectivamente, internalizada.

Despudor de qualificação máxima.

Farsa de boa roupagem.

Esbanjador despudor… despudor ao público.