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Pela lembrança quase tudo se alcança

2019
pedrosampaiominassa@gmail.com
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (Brasil)

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Pela lembrança quase tudo se alcança

As coisas falam, mesmo que nem sempre estejamos atentos para ouvi-las. Na verdade, elas sussurram, não gritam ou fazem alarde, comunicam-se no silêncio, esperando um ouvido receptivo aos seus sons. Quando digo “coisas”, refiro-me tanto aos objetos, quanto aos lugares. No fundo, todos sabemos que eles falam. O interessante é que não seguem um idioma específico, senão uma língua universal, a qual chega aos ouvidos de diferentes sujeitos, de distintas formas. Vejamos: um determinado lugar pode dizer muito sobre minha infância, sobre meus avós, meus amigos e, por isso, dizer muito a mim, ao tempo que nada à outra pessoa.

O significado das coisas transparece com as lembranças que carregam. Este é o diálogo que estabelecem. O canal comunicativo se dá pelas lembranças. Quando revemos um lugar, aquela imagem se dirige imediatamente ao cérebro e ocorre como se, dos arquivos cognitivos, fosse retirada a ficha de lembranças daquele lugar. A ficha é solta e cai em direção ao órgão vital, essencial das emoções e sentimentos: o coração. É a partir dali que conseguimos escutar a voz do lugar. Em suma, passamos a nos escutar, a revisitar nosso inconsciente e a reviver situações que já se foram, ou a rever pessoas que já se perderam no “tempo-espaço”. As memórias ficam nessas “fichas cerebrais”, que só precisam de um elemento reativo para que voltem a todo vapor a nos trazer emoções. Mas, ora, como desarquivar fichas velhas de lembranças eternas? Revisitando lugares, revendo objetos e revivendo momentos.

Vejamos um exemplo das lembranças que lugares podem despertar: quando criança, costumava frequentar muito a casa de meus avós no interior do país e lá sentia a presença afetiva dos dois, seja por meio do cheiro da comida que vinha da cozinha da minha avó, seja do som da viola que saía da sala principal, onde meu avô passava boa parte de seu tempo. Os dias era assim, passavam mais lentamente e, com o tempo, tudo foi impregnando-se naquele lugar e na minha mente. Hoje, quando retorno à velha casa, já não encontro mais o fogão aceso, a viola cantando, nem mesmo a voz dos dois, mas ali está o lugar dos meus avós, da minha infância, da experiência do afeto, é o lugar falando que, apesar da ausência, permanece presença nas memórias que fazem de mim o que sou.

As lembranças, assim, são um ato de ressureição, porque pressupõem a morte para ressignificarem a vida. São oportunidades de corrigir o passado pelas portas que novamente se abrem no presente, portas que darão em cômodos futuros. São a forma de cura a quem as procura. Se toda gente a todo tempo pudesse relembrar lugares, pessoas e coisas para poderem viver melhor, talvez o mundo estivesse mais pleno de autenticidade, afinal cada um saberia exatamente onde mora seu melhor referencial e seu pior mal. As lembranças nos tornam nada mais que crianças, porque ao trazerem memórias bonitas, promovem o rito vital da esperança.

Ah, se todos voltassem no tempo e conseguissem escutar as vozes silentes e, ao mesmo tempo, inquietas da própria razão...

Ah, se toda gente pudesse ter lembranças, pudesse ser lembrada...

Ah, se todos fossem eternas crianças...

Ah, se toda aliança trouxesse, em si, esperança...

Ah, se todo homem soubesse que pela lembrança quase tudo se alcança!

Pedro Sampaio Minassa

Pedro Sampaio Minassa é brasileiro, graduando (já finalista) em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo e cronista nos tempos livres. É colaborador de diversos portais e jornais, tais como o P3 (Público, Portugal), Portal DUO, Portal do Envehecimento, Crônicas da Editora KBR.

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