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A poesia do brincar

2018
affonsocalebe@gmail.com
Graduando em Psicologia pela Faculdade Pernambucana de Saúde (Brasil)

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A poesia do brincar

Quando um poeta escreve seus poemas, penso que ele queira no mínimo passar algo com isso. Em cada estrofe e união de letras, há algo potencialmente seu. Cada palavra podendo conter diversas metáforas, seus silogismos unindo afetos, e assim se vai um compactado de vivências em alguns escritos que muitas vezes não puderam ser postos em palavras. Digo isso não só porque possuo grande apreço pelo fazer poético, mas porque pretendo fazer um paralelo com algo que, em minha opinião, pode ter funções similares. A de dizer aquilo que não foi ou não pôde ser falado. Me refiro ao brincar.

Brincar, não jogar. Quando falamos de um jogo, estamos situados no campo das regras preestabelecidas, que já estão prontas para ser usadas por várias pessoas. Podem até tentar burlá-las, mas estarão se desviando de um caminho já existente. O brincar não oferece nada já estabelecido, a não ser a fantasia daquele que brinca.

O brincar se desfaz das lógicas binárias do “sim” ou “não”, do que é “verdadeiro” ou do que é “falso”. Quando uma criança brinca não se busca sentido naquilo, muito menos fica-se tentando interpretar o que vemos, como faz um bom interpretador de texto. Não é preciso fazer razão, como diz Manoel de Barros¹ em “O meu quintal é o maior do mundo”:

 

O menino ia no mato

E a onça comeu ele.

Depois o caminhão passou por dentro do corpo do menino

E ele foi contar para a sua mãe.

A mãe disse: Mas se a onça comeu você, como é que o caminhão passou por dentro do seu corpo?

É que o caminhão só passou renteando meu corpo

E eu desviei depressa.

Olha mãe, eu só queria inventar uma poesia.

Eu não preciso de fazer razão.

 

É no não fazer razão que o sujeito que nos interessa é pego. Falo do sujeito do inconsciente. Esse que, talvez de forma sutil ou de maneira abrupta se revela por meio da beleza da fantasia de quem brinca, ou até mesmo em um chiste ou ato falho. O ato de não fazer razão nos leva a romper com uma manifestação social que demanda que ao final - e se é que existe um - de um processo terapêutico, resultados, que socialmente chamamos de cura apareçam. O brincar não oferece um objeto final, tal qual um tecido que é levado para uma costureira e com ela se torna um vestido. Brincar diz respeito a não responder a demanda do utilitarismo capitalista.

Voltando a comparação entre a poesia, ou melhor, o poeta e aquele que brinca, posso falar com certa tranquilidade sobre o efeito catártico. Ao brincar/ao poetizar, a criança/o poeta tem a possibilidade de deslocar para fora seus medos, angústias ou qualquer outra questão interna que de alguma forma as façam sentir sensações desagradáveis. Gosto da posição do Jerusalinsky² quando afirma que o brincar é o sintoma constituinte da infância.

Tenho minhas dúvidas se realmente o brincar faz parte do momento da infância como algo “natural”, já que tenho em mente que até o próprio pensamento sobre o que é infância ou uma criança são construções sociais. Mas se pensarmos sobre o momento da infância e a sua relação com a linguagem, podemos falar sobre uma “imaturidade” linguística. A possibilidade de colocar em palavras e significar certas problemáticas existentes em seu psiquismo ainda não existe. Com isso, aquela que brinca poderá falar com pouco sobre si.

Falar com pouco de si sem se responsabilizar sobre isso. No campo da fantasia, a criança pode se atrever a executar aquilo que tanto deseja sem ser responsabilizada pelos valores sociais, já que não ouve ato. Podemos pensar na educação que vem daqueles que as criam, e afirmar que muitas crianças não brincam de determinadas brincadeiras. Eu concordaria com você, porém, a ação do brincar não precisa vir como a ação primaria, ou seja, em vez de matar meu amiguinho que está com o brinquedo que eu tanto queria, eu posso forjar um grande duelo entre um grande vilão e um grande herói, onde certamente um deles será derrotado. Peço que não pensem que isso seja uma regra. Levem mais como um simples exemplo.

É interessante observar como as brincadeiras e parcerias entre crianças se constituem. O brincar pode ser feito de maneira solitária ou em conjunto, sendo compartilhada com outros parceiros. Penso que o que contribui para tais formações são as similaridades das fantasias. Caso se identifiquem o suficiente brincarão juntas. Nesse ato de parceria, posições estarão em jogo. Ativos, passivos, ambos ativos ou ambos passivos nos papéis. Tudo a depender das negociações. Negociações essas que também serão sobre o que cada objeto irá ser.

Ao brincar entramos no campo do faz de conta, onde tudo pode ser tudo como ótimas metáforas e deslocamentos. Um graveto pode ser uma arma mortal, uma roda quebrada de um carrinho velho pode ser uma granada que está prestes a explodir. Brinquedos não são necessários para se brincar. Fantasias são! Ainda com Manoel de Barros¹ em “Uma didática da invenção”.

 

Desinventar objetos. O pente, por exemplo

Dar ao pente funções de não pentear

Até que ele fique à disposição de ser uma begônia

Ou uma gravanha.

Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma.

 

Isto frequentemente implica poder brincar com certos conteúdos que são intoleráveis para os pais e que, inclusive, tangem temas proibidos pelo meio familiar ou escolar, tais como melecas, transbordamentos, palavrões, questões sexuais etc. Tal acontecimento pode ser central para a criança, fazendo com que ela seja a detentora de um saber que lhe permita separar-se da posição de objeto do fantasma parental.

Um caso em específico me faz descrevê-lo pela possibilidade de embasar alguns ditos no texto. O chamarei de Torre de Babel. O caso bíblico, no qual os homens com a ambição de chegar ao céu provocaram a ira de Deus, o fazendo jogar uma praga onde cada ser ali existente passasse a falar um idioma diferente para que não houvesse comunicação. É justamente por conta do idioma que eu o nomeei assim.

Logo que fui apresentado a ela (a criança), tentei me aproximar, como normalmente faço socialmente. Estendi a mão perguntando qual era o seu nome. Obtive a resposta, mas não por sua boca. Ela nem olhava nem falava comigo. Resumia seu tempo em brincar com um ou dois brinquedos que a atraiam até que pedisse para ir embora. Particularmente, não sabia o que fazer, até que percebi que não seria pela fala que nós iríamos nos comunicar.

O brincar se apresentou ali como um idioma. Com ele nós pudemos de certa forma falar a mesma língua. Aos poucos pude conhecer mais sobre ela e ter o conhecimento sobre alguns de seus limites. Com o passar do tempo, algumas de suas fantasias foram compartilhadas comigo em um processo transferencial. Agora essa criança demonstrava mais interesse não só no brincar, mas em ir ao lugar onde talvez agora ela supunha que fosse escutada.

Virando o lado e falando sobre aquele que se propõe em escutar o brincante, e reafirmo em dizer que é aquele que se propõe em escutar e não aquele que brinca junto. Caso brinquemos juntos, duas fantasias estarão entrelaçadas dando voz a contratransferência. Em dado momento caí em minha fantasia de que agora aquela criança tinha melhorado, e que estava em um caminho melhor em seu desenvolvimento. A velha e caricata fantasia de ser herói. Com o tempo pude notar que na verdade só houve uma mudança ali e não foi a da criança. Ela permaneceu a mesma desde o começo, só que agora eu conseguia, mesmo que com muita limitações, falar com ela.

Diante dessas questões, acredito que posso afirmar com entusiamo que quando uma criança que brinca diz que está ocupada, perante um pedido de largar o que está fazendo para atender uma demanda do outro, ela realmente está ocupada. Pensemos que talvez aquela brincadeira cujo consideramos banais ou sem importância, estejam servindo para a elaboração de algo, seja de qual ordem for.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

¹ Barros MD. Meu quintal é maior do que o mundo. Rio de Janeiro: Objetiva. 2015.

² Jerusalinsky A, Tavares EE. O brincar é a realidade: acerca de algumas questões de atualidade na psicanálise da infância. AAPOA Boletim. 1992 Aug;3(7):6-9.